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sábado, 29 de dezembro de 2018

O Público e as Verdades da Arte


Oscar Wilde chegou a afirmar, por meio de um de seus personagem mais emblemáticos, Lord Henry Wotton de O Retrato de Dorian Gray (seu alter-ego), que o "objetivo da arte é revelar a obra e esconder o artista"... eu concordo em partes com este pensamento. Se por um lado é impossível, por exemplo, compreender a grandiosidade da obra de Kafka (também escritor) sem conhecer, ainda que superficialmente, a sua trajetória e o contexto em que ele viveu, por outro o foco demasiado no artista pode relegar em segundo plano aquilo de mais importante que sua obra possui, e isso frequentemente acontece. Vivemos atualmente uma inversão extrema do pensamento de Oscar Wilde; a mídia cumpre o papel de desnudar a vida do artista, enquanto o público busca nela, e não na obra, os elementos de identificação capazes de produzir empatia. 

Discorrerei rapidamente sobre três situações que vivenciei recentemente e depois tentarei propor uma breve reflexão sobre o assunto. 

- Em agosto deste ano, Oswaldo Montenegro tocou em Piacatuba, distrito de Leopoldina/MG, no Festival de Viola e Gastronomia. Naquele dia, minutos antes de sua própria apresentação ele estava no meio do público assistindo ao show de dois violeiros locais, um casal então se aproximou dele e pediu para tirar fotos, ele não negou, mas enquanto os flashes eram disparados ele permaneceu na mesma posição em que já estava, de braços cruzados e olhar direcionado para o palco. 

- No último dia 8, na edição do festival Circuíto Banco do Brasil, realizada no Rio de Janeiro, a banda americana MGMT foi vaiada por uma parte do público e um dos motivos foi não ter sido "cordial com a platéia". Uma adolescente, fã da banda que tocaria na sequência, que estava logo à minha frente durante a apresentação resumiu o motivo de sua indignação: "entraram e saíram sem ao menos dar boa noite". 

- No último sábado, Maria Rita se apresentou aqui em Ubá, no Festival de Música Ary Barroso. Apesar de ter feito uma apresentação memorável, ela foi criticada por alguns dos que estavam presentes por não ter recebido o público para uma sessão de fotos e autógrafos. Algumas pessoas chegaram a criticar a organização do evento por tê-la trazido, isso pelo simples fato de não ter conseguido se aproximar dela. 

Chegamos ao ponto: O tratamento seco dado pelo Oswaldo Montenegro ao casal que o abordou, a falta de interação verbal do MGMT com o público e a recusa de Maria Rita a receber admiradores em seu camarim, nenhum destes fatos definitivamente não tornou nenhuma das apresentações menos impactantes pra mim e isso porque o essencial, ao meu ver, não é, e nunca será, a postura do artista em relação aos fãs, mas a proposta e a representatividade que sua obra tem para mim. 

Pode parecer uma afirmação dura, mas artista nenhum tem obrigação de paparicar seu público. Admiro muito aqueles que relacionam de forma natural com seus fãs e repudio os que o faz de forma forçada, por mero sentimento de obrigação. Uma parcela do público aparentemente não consegue compreender isso e para ela bom continua sendo o artista estrangeiro que arrisca algumas palavras em português no palco, o que força sorrisos na hora do selfie e o que bajula o público com frases feitas e falsas afirmações.

Pode parecer contraditório eu escrever uma nota com este conteúdo, afinal sou dos que curte ter o disco original autografado e um dedo de prosa com algum artista cuja a obra eu admiro ou respeito. Mas, a questão é que é preciso separar as coisas, não confundir o artista com a obra, pois tal tipo de simbiose na maioria das vezes não se dá de forma tão harmônica. Quem faz este tipo de confusão corre o risco de acabar frustrado ao descobrir que um determinado compositor não é bem aquilo que se pressupunha que ele era divido à uma interpretação pessoal de suas letras.  

Aqui cabe uma rápida reflexão sobre o que é apreciação artística e sobre a forma com que ela se dá. Quando nos colocamos diante de uma obra (seja ela uma música, um filme ou até mesmo um quadro) estamos diante de pelo menos três verdades que podem ou não ser divergentes, a primeira delas é a que é idealizada pelo artista antes e durante o processo de criação, a segunda é a resultante deste processo, que absolve influências externas, inclusive de outras pessoas envolvidas com ele. A terceira e última verdade é a de quem se coloca diante da obra, que é influenciada pela visão de mundo e pela bagagem que cada um traz consigo. 

O que geralmente ocorre é que uma parte do público confunde a sua verdade com a verdade do artista e por isso passa a exigir dele posturas e comportamentos que validem aquilo que até então não passava de meras impressões. Há neste fenômeno uma negação de todo o processo de criação e de consumo da arte. Desconsidera-se o poder que a obre tem de impactar por si própria e o dever de provocar este impacto é delegado ao artista, como se nele se esgotasse todo o processo. Dai surgem as aberrações criadas pela indústria cultural: os artista cuja obra se resumem à uma única verdade, previamente fabricada para um público que já está de antemão apto para decodificá-la e digeri-la sem maior trabalho.

Felizmente ainda existem artistas cuja grandiosidade de suas obras transcende suas próprias posturas, algumas vezes mesquinhas... Oswaldo Montenegro, MGMT e Maria Rita fazem parte deste grupo! 


Escrito originalmente em 20 de novembro de 2014