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quarta-feira, 26 de junho de 2013

Um Beijo Roubado

Um Beijo Roubado (My Blueberry Nights) - 2007. Dirigido por Kar Wai Wong. Escrito por Kar Wai Wong e Lawrence Block. Direção de Fotografia de Darius Khondji e Pung-Leung Kwan. Música Original de Ry Cooder. Produzido por Kar Wai Wong e Jacky Pang Yee Wah. Block 2 Pictures, Jet Tone Production, Lou Yi Ltd. e StudioCanal / Hong Kong | China | França.


Uma crítica frequentemente direcionada a Um Beijo Roubado, primeiro filme do cineasta chinês Kar Wai Wong rodado nos Estados Unidos, é a de que seu roteiro não foi tão bem sucedido em sua reconstrução do american way of life. Há a acusação de que a moldura na qual ele coloca o outro étnico teria destacado traços dos personagens que seriam frutos de impressões erradas e preconcebidas acerca da cultura que ele tenta retratar. Eu, no entanto, não vejo desta forma, em primeiro lugar porque não é tão somente a cultura que dita as reações do indivíduo aos estímulos do meio, portanto, não se pode pressupor que americanos reagiriam de uma mesma forma em uma mesma situação pelo simples fato de serem americanos; em segundo lugar, porque o que fica evidente na construção dos personagens não é nenhum tipo de lugar comum, mas sim a confirmação de que independente da cultura, algumas reações, como a dor provocada por uma perda, são bem parecidas.

Se no ótimo Amor à Flor da Pele (2000) Wong retrata as agruras de uma intensa paixão não realizada, neste seu foco sai daquele que poderia ser o início de um relacionamento e vai para o final, o rompimento. Um Beijo Roubado fala de separação e superação, todos os personagens, inclusive os protagonistas, se vêm obrigados a lidar com a dor de ter perdido alguém que amava. A bela Elizabeth (Norah Jones) descobriu que o namorado estava a traindo e pôs fim ao relacionamento, mas, sem conseguir superar este término traumático ela continua alimentando a esperança de um dia reatar o que fora rompido. Jeremy (Jude Law), um inglês radicado em Nova Iorque, foi para os Estados Unidos na esperança de recomeçar uma vida nova,  seus planos de se manter em constante movimento foram abandonados com o passar do tempo. Ele abriu um pequeno bar, que acabou se tornando uma espécie de muleta para ele. Com a desculpa de que precisa cuidar do estabelecimento, ele acabou se acomodando. 


Elizabeth vai para o bar para tentar esquecer o ex-namorado, é lá que ela conhece Jeremy, rapidamente os dois se tornam amigos. Um mesmo ritual passa a se repetir todas as noites, enquanto trocam confidências, a moça degusta uma das especialidades da casa, a torta de blueberry (daí vem o título original do filme), iguaria desprezada pelo restante da clientela. O trauma provocado pelos seus relacionamentos anteriores impede os personagens de enxergarem o óbvio, eles se gostam e aquele poderia ser o início de uma nova paixão, porém, as feridas ainda estão abertas em ambos. Por conta de seu comodismo Jeremy não consegue sair de sua zona de conforto e o medo de voltar a se machucar impede Elizabeth de se entregar a um novo amor com a mesma intensidade de antes. Esperando fugir de seus próprios fantasmas, a garota decide colocar o pé na estrada e começa então uma viagem que lhe trará autoconhecimento e inúmeros aprendizados sobre a vida. 


Em cada cidade onde fixa residência por algum tempo, Elizabeth conhece pessoas que também lidam de alguma forma com o rompimento de um relacionamento, o primeiro a despertar sua atenção é Arnie (David Strathairn), um policial que foi abandonado pela esposa, Sue Lynne (Rachel Weisz), devido ao alcoolismo, doença que se agravou após a separação. Nele vemos materializada a primeira possibilidade de futuro que também ronda a protagonista, ela também corre o risco de ver sua vida definhar e para evitar isso ela precisa se desfazer daquilo que a prende ao antigo namorado e que a mantém emocionalmente dependente dele. A segunda personagem em quem Elizabeth encontra uma espécie de projeção de si mesma, é Leslie (Natalie Portman), uma socialite decadente, viciada em poker, que se atormenta com a possibilidade de reencontrar uma pessoa de quem esteve separada por um longo tempo.


Leslie representa uma segunda possibilidade de futuro, esta baseada na negação, a negação da dependência em relação ao amor perdido, que se sustenta na decisão radical de não confiar em mais ninguém e na crença na autossuficiência. O relacionamento entre Elizabeth e Leslie constituí um dos pontos mais interessantes da trama, é através dele que o roteiro aponta um terceiro caminho para a protagonista, este não tão doloroso quanto os outros dois... Durante todo o desenvolvimento da história, o que fica evidente é que a falta de comunicação talvez seja o grande entrave que os personagens se veem obrigados a enfrentar. Arnie não consegue expressar a intensidade de seu amor por sua ex-esposa, Leslie se nega a abrir um canal de comunicação com a pessoa de quem se separou e Jeremy, que só reconhece o que sentia por Elizabeth depois que ela vai embora, passa boa parte do filme tentando, sem sucesso, se comunicar com ela. 


Ao contrário do que parte da crítica especializada disse, Kar Wai Wong foi muito bem sucedido ao retratar a complexidade dos laços afetivos, principalmente ao mostrar que relacionamentos exigem, antes de tudo, entrega e confiança - ainda que tal confiança não tenha à princípio no que se amparar. Como eu disse no início desta resenha, este é um tema universal, afinal de contas separações sempre serão angustiantes e dolorosas independente da cultura na qual aqueles que as vivenciam estão inseridos. A dor e a angústia são tão universais quanto o medo de estar sozinho ou de ter antigas feridas reabertas, temores estes que o filme retrata muito bem e que podem ser percebidos em todos os personagens.


Todo o elenco entrega atuações condizentes com a proposta do filme, o que pode ser percebido nas sutilezas e na forma com que cada um deles exterioriza, através de suas expressões faciais, da empostação vocálica, ou do olhar os sentimentos que seus personagens reprimem (sentimento reprimidos é um tema recorrente na filmografia do cineasta chinês). A grande surpresa é o desempenho da cantora Norah Jones, estreante como atriz, que não faz feio mesmo quando contracenando com atores e atrizes já renomados como Jude Law, David Strathairn, Rachel Weisz e Natalie Portman.  Sua interpretação justificou a escolha de Kar Wai Wong, que a convidou mesmo sabendo que ela nunca tinha atuado em um filme, ele conseguiu extrair dela o que de melhor ela podia ter oferecido.  Prestem atenção ainda na ponta feita pela também cantora Cat Power.


Um Beijo Roubado é um filme melancólico e um tanto sombrio em algumas passagens, justamente por lidar com questões tão complexas e dolorosas; isso, somado ao fato de ele ter um desenvolvimento lento, que opta pelas sutilezas em detrimento das obviedades, o torna um tanto indigesto e difícil de cair no gosto do público médio, que geralmente repudia obras que não apontam soluções mágicas para os conflitos e não lhe acaricia com a noção absurda de que tudo dá certo e se resolve no final da história. Ainda que ele recorra à algumas fórmulas dramáticas já conhecidas, como o aprendizado oferecido pela estrada (algo típico dos road movies), sua originalidade não pode ser contestada, a marca autoral de Kar Wai Wong está presente em cada aspecto, principalmente nos enquadramentos, na fotografia (que é muito bem trabalhada) e no uso de recursos como a câmera lenta e a saturação das cores, que tornam cada fotograma semelhantes a uma pintura.


Assistam ao trailer de Um Beijo Roubado no You Tube, clique AQUI !


A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.


Confiram também aqui no Sublime Irrealidade a crítica de
 Amor à Flor da Pele (2000)também dirigido pelo Kar Wai Wong.

domingo, 23 de junho de 2013

A Febre do Rato

A Febre do Rato - 2011. Dirigido por Cláudio Assis. Escrito por Hilton Lacerda. Direção de Fotografia de Walter Carvalho. Música Original de Jorge Du Peixe. Produzido por Cláudio Assis e  Júlia Moraes. Belavista Cinema e Produção e Parabólica Brasil / Brasil



Dar voz aos que não têm voz, esta é a principal proposta de Zizo (Irandhir Santos), um poeta anarquista, que edita um zine chamado A Febre do Rato. Ele mora junto com a mãe em um bairro pobre de Recife e divide seu tempo entre a confecção de seu periódico, que ele faz com uma rústica prensa tipográfica em sua própria casa, e a distribuição do mesmo, que é feita tanto na vizinhança quanto nas regiões mais nobres da cidade. Ébrio pela própria utopia, Zizo mergulha com a alma naquilo que acredita e dedica a sua vida à busca por uma liberdade, que inclui a independência em relação às classes dominantes e a superação da moral constituída, contra a qual ele bate de frente com o seu comportamento libertário e transgressor.

É pouco provável que Zizo tenha uma bagagem intelectual que embase sua postura contestadora, mas isso definitivamente não importa, percebemos rápido que a sua identidade vem da vivência prática e não da abstração teórica. Seu comportamento ambíguo não pode ser julgado por uma ótica maniqueísta, sua conduta é, numa última análise, um fruto do meio no qual ele está inserido, que é tão estranho e ambíguo quanto ele próprio. Após uma rápida reflexão sobre a postura do poeta e suas reivindicações, chego à conclusão de que o anarquismo pelo qual ele luta não é aquele que ambiciona a queda do estado e a ausência de governantes, mas sim um anarquismo pessoal, baseado na premissa de que cada um deve ser livre para viver à sua maneira, ainda que à margem do estado e de suas instituições.


É esta a liberdade que Zizo quer e em seu projeto de sociedade livre o amor, a amizade e o apoio mútuo são os elementos capazes garantir a subsistência, mesmo em um contexto social tão adverso quanto aquele no qual ele vive. Com seus versos, ele tenta chamar a atenção para a realidade de sua gente, eles, mesmo estando à margem, querem ter reconhecido o direito de serem tratados como gente. Percebe-se que no ambiente no qual a história do filme se passa não há qualquer tipo de intervenção do estado, nem para a garantia de políticas públicas, nem tão pouco para a repressão, prova disso é que em diversos momentos personagens consomem e comercializam drogas ilícitas e isso sequer parece ser visto como uma contravenção, dada a forma com que o uso das mesmas é aceito pela comunidade. 

Zizo está sempre rodeado por seu grupo de amigos, fato este que o torna um personagem mais humano e cativante, e é interessante perceber de que forma se dá o relacionamento entre eles, há uma espécie de cumplicidade e uma sensação de pertencimento compartilhada, coisas que não são tão fáceis de serem encontradas nos laços cada vez mais frágeis que criamos em nossos próprios relacionamentos. Este peculiar grupo de personagens, que está sempre à volta do poeta, inclui, dentre outros, Dona Marieta (Ângela Leal), mãe do poeta, o traficante Boca (Juliano Cazarré) e a namorada dele, Rosângela (Mariana Nunes), o coveiro Pazinho (Matheus Nachtergaele), melhor amigo de Zizo e sua convivente, a travesti Vanessa (Tânia Granussi) e as senhoras Stella Maris (Maria Gladys) e dona Anja (Conceição Camarotti), parceiras sexuais frequentes do poeta.


O núcleo no qual estão todos inseridos parece entrar em ebulição com o aparecimento da colegial Eneida (Nanda Costa), por quem Zizo fica completamente apaixonado. Ela não dá bola pra ele nem valoriza os seus poemas. O fato de ela parecer ser, à primeira vista, um objeto de desejo inalcançável torna o sentimento que ele passa a alimentar ainda mais intenso e embriagante. Tendo-a como sua musa inspiradora, ele passa a se consumir ainda mais com sua própria arte, como se cada verso de seus poemas fosse uma labareda de fogo ateada contra o próprio corpo.


Há muito da personalidade do cineasta Claudio de Assis na construção do protagonista do filme. Tal como acontece com Zizo, a arte de Assis aparenta ser uma extensão de sua própria personalidade. Abraçando posições radicais em relação ao meio em que atua, o cineasta chama a atenção para aquilo que está fazendo sem precisar para isso se render ao padrão estético exigido pelo mercado. O incômodo que seus filmes causam não pode ser confundido com apelação, como alguns críticos defendem, este incômodo vem na verdade é do choque entre concepções de mundo tão distintas, a dele e a nossa, e é isso que torna sua marca autoral tão instigante e perigosa para as arcaicas concepções do meio.


O último ato do filme começa com uma passagem emblemática, que remete de imediato à atual situação social/política em que o Brasil se encontra, nesta sequência vemos a forma de agir do Estado diante de algo que não compreende e não consegue cooptar - A subversão acaba sendo tratada como mero banditismo e as semelhanças com a realidade não são mera coincidência, o que me leva a classificar A Febre do Rato como um filme completamente político. Paulo Martins, personagem central do clássico Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha, fora alertado de que 'a política e a poesia eram demais para um homem só', ele no entanto se deixou ser consumido pelas duas. Tal como ele, Zizo (a criatura) e Claudio de Assis (o criador), aparentam não temer as contradições que ardem como chamas em suas mentes. 


Não fiz o paralelo acima por acaso, pode ser notada uma forte influência do pensamento e da obra de Glauber Rocha no filme de Claudio de Assis. Os pressupostos da estética da fome, defendida pelo cineasta baiano, estão evidentes em A Febre do Rato, bem como o engajamento político e o experimentalismo formal, que remete também a Godard, que pode ser notado na maneira com que a fotografia de Walter Carvalho e a trilha sonora do Jorge Du Peixe (vocal do Nação Zumbi) integram a narrativa e na opção de filmar situações que fogem ao convencionalismo e ao suposto bom senso das produções maisntreans. A reverência a Godard, por sua vez, pode ser notada numa sutil referência à uma das cenas mais clássicas de Bande à Part (1964), filme escrito e dirigido pelo cineasta francês. 


Destaco por fim o desempenho de todo o elenco, com destaque para a atuação visceral de Irandhir Santos, que aparenta entrar no personagem de corpo e alma, emprestando a ele emoções que chegam a ser quase palpáveis por serem dotadas de uma intensidade brutal e avassaladora que se manifesta nos gestos, no olhar e principalmente na voz. A Febre do Rato definitivamente não é o tipo de filme que tende a agradar aos mais diversos públicos, esta também não é a sua proposta, por isso, ao assisti-lo é necessário que nos dispamos de qualquer preconceito em relação a aquilo que nos é estranho e que estejamos com os nossos olhos suficientemente aberto para captar a beleza que emana mesmo das situações mais incômodas.


A Febre do Rato ganhou o prêmio de Melhor Filme da Associação dos Críticos de Arte de São Paulo.

 Assistam A Febre do Rato completo no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

sábado, 15 de junho de 2013

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro - 1969. Escrito e Dirigido por Glauber Rocha. Direção de Fotografia de Affonso Beato. Música Original de Marlos Nobre. Produzido por Glauber Rocha e Claude-Antoine. Antoine Films, Cinémas Associés, Glauber Rocha Comunicações Artísticas, Mapa Filmes e Munich Tele-Pool / Brasil | França | Alemanha.


Nos anos que antecederam a ebulição do Cinema Novo, acontecida no início da década de 60, a produção cinematográfica brasileira podia ser dividida em dois polos bem distintos, mas que tinham as mesmas referências: o cinema americano e o modelo comercial/industrial dos grandes estúdios. De um lado estava a   Vera Cruz, companhia de produção paulista, que intentava criar em solo nacional uma estrutura cinematográfica que fosse reconhecida e valorizada no mundo todo. De outro estavam as Chanchadas produzidas em larga escala pela Atlântida, que não passavam de meras paródias do formato e da linguagem predominantes em Hollywood naquela época. Ambas as tendências tinham pouca relevância estética e nenhuma ousadia, isso devido às suas pretensões, que eram mais comerciais do que artísticas. 

Durante a década de 50 a Vera Cruz investiu na exportação de profissionais do cinema europeu em busca de know how, eficiência e excelência técnica, mas isso acabou sendo um tiro que saiu pela culatra, pois apesar dos avanços técnicos que favoreceu, a vinda de tais profissionais acabou distanciando cada vez mais a produção de uma identidade nacional, que fosse capaz aproximar o público dos filmes produzidos e dos cineastas e de propiciar um diálogo aberto entre eles, tendo a obra como principal canal de comunicação (neste aspecto, os filmes produzidos pelo Amácio Mazzaropi eram uma exceção). A Atlântida e suas chanchadas se aproximavam do grande público, mas sem oferecer a ele obras que o instigassem a questionar e a intervir em sua própria realidade, dando ao invés disso apenas uma frágil variação de uma mesma fórmula, que era isenta de qualquer marca autoral ou tentativa de inovação.


Quando começam a ser produzidas as primeiras obras que seriam consideradas marcos do Cinema Novo, a Vera Cruz já estava com sua falência decretada e por isso se tornou uma espécie de modelo do que não deveria ser feito. Não por acaso, o slogam "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", defendido por Glauber Rocha (um dos nomes seminais da nova escola), contrariava tudo aquilo em que os executivos da mega produtora paulista tinham acreditado e investido; o que cineastas como ele, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues e Ruy Guerra defendiam eram um rompimento com o modelo vigente até então e o advento de um novo cinema que estivesse próximo da realidade do país, tanto em suas temáticas e reflexões, quanto nas questões econômicas indissociáveis do processo de produção. 

Eles acreditavam que era possível fazer filmes de baixo orçamento, rodando-os em locações e não em grandes estúdios, usando a criatividade ao invés do dinheiro para viabilizar todo o processo. Acima de tudo, eles defendiam uma reestruturação do formato e da linguagem dos filmes nacionais, o que os libertaria da influência de Hollywood, que era considerada por eles altamente nociva. Em tais posicionamentos, é possível notar a influência do contexto histórico, de outras escolas cinematográficas, como o Neorrealismo Italiano e a Nouvelle Vague Francesa, e ainda de outras correntes de pensamentos e vanguardas, como o antropofagismo modernista, o barroco e a arte engajada defendida pelos Centros Populares de Cultura (os CPCs).


A negação do modelo anterior, a tentativa de ruptura com o convencionalismo e a crítica ao imperialismo cultural - elementos característicos do Cinema Novo - podem ser notados com relativa facilidade em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), o quarto longa-metragem dirigido por Glauber Rocha, mas o fato dele deixar evidente cada um destes aspectos não quer dizer que ele seja um filme de 'fácil' assimilação. A complexidade de suas inferências e dos inúmeros simbolismos presentes em sua trama o tornam uma obra de difícil digestão, principalmente para aqueles que não conhecem as origens e a proposta da marca que Glauber tentava imprimir em cada uma de seus filmes. 

O cineasta retoma nesta obra questões que já tinham sido abordadas em seus trabalhos anteriores, como o conflito entre classes, a repressão imposta pelas instituições e a resistência cultural daqueles que estão à margem. A história contada pelo filme gira em torno de Antonio das Mortes (Maurício do Valle), personagem que já havia aparecido em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), ele é um jagunço matador de cangaceiros que atua a mando de coronéis e da igreja. Depois de matar Corisco, braço direito de Lampião e último cangaceiro, sua vida perde o propósito e ele entra em uma espécie de crise existencial, que o faz repensar, pela primeira vez, sua própria conduta e o significado de suas ações.


O aparecimento de um jovem chamado Coirana (Lorival Pariz), que diz ser a reencarnação do próprio Lampião, faz com que Antônio das Mortes parta em uma nova missão, talvez a sua última. À pedido do covarde delegado Mattos (Hugo Carvana) ele vai para Jardim das Piranhas, uma pequena cidade do sertão nordestino onde o suposto novo chefe do cangaço se encontra. Tal como Antonius Block, o personagem central de O Sétimo Selo (1957) de Ingmar Bargman, o jagunço se depara com um enorme vazio ao olhar para o seu passado e para cada uma das atrocidades que cometera em nome de uma causa que nunca teve qualquer sentido para ele. Antonio e Antonius são muito parecidos, ambos buscam paz de espírito, uma razão maior para as suas respectivas existências e alguma redenção para os erros que outrora cometeram.

Das Mortes é um personagem emblemático e isso se deve à sua capacidade de representar a sociedade da época como um todo. Através da negação do personagem em enxergar a sua própria condição e a estrutura da sociedade na qual ele está inserido, o cineasta estabelece um paralelo com a postura do povo que se nega a reconhecer aquilo que o oprime, se colocando muitas vezes em uma posição que reforça, ao invés de combater, toda a conjuntura social que o agride. Outros personagens do filme também são dotados de elementos que os tornam potenciais alegorias de uma classe ou fato social. O Coronel Horácio (Joffre Soares), um fazendeiro velho e cego, é uma espécie de autoridade ilegítima do local, ele representa toda a estrutura social arcaica que sustenta e perpetua a desigualdade.


O delegado Mattos, por sua vez, representa a ascensão de uma nova nova estrutura de poder, tão opressiva quanto a anterior, é interessante reparar que no discurso dele estão sempre presentes palavras como industrialização e progresso. Ele representa a transição de uma economia latifundiária (representada pelo Coronel Horácio) para uma industrialista, fomentada, vejam bem, justamente pela política imperialista dos Estados Unidos. Coirana, o cangaceiro, é a reconstrução 'cinemanovista' do herói nacional, ele herda de um Lampião mitificado a disposição de lutar pela justiça social, o messianismo e o apreço do povo pobre que o segue em uma espécie de romaria. O roteiro associa Coirana à um messias, que surge para anunciar uma boa nova e trazer esperança para aqueles que já não a têm, ele seria uma espécie de cristo dos desvalidos, um líder em torno do qual os excluídos e oprimidos se reúnem em busca de um sentido para as suas próprias vidas. 

Laura (Odete Lara), a esposa do Coronel Horácio, representa uma parcela da população que é movida apenas pelos próprios interesses, que se associa aos opressores em troca de um mínimo de conforto e de regalias (mesmo sabendo que isso não lhe basta). Há ainda um outro personagem emblemático, o professor vivido por Othon Bastos, ele, que é uma espécie de alter-ego do Glauber Rocha, representa um olhar analítico sobre os eventos retratados pelo filme; ele acompanha Antonio das Mortes e testemunha a catarse que este experimenta no momento em que encontra sua redenção e, não por acaso, no fim das contas acaba nas mãos dele (do professor) a responsabilidade de dar continuidade à transformação social que fora iniciada por outros personagens.


Integrado à marcha lúgubre dos desvalidos, está o povo, que consegue ensaiar um último levante que intenta romper com todos os poderes estabelecidos até então. Este povo simples começa como um mero coadjuvante e termina como um dos protagonistas da história contada. Suas manifestações culturais e religiosas, são usados por Glauber como um contraponto para a aniquilação da identidade nacional, que é representada pelo já citado imperialismo americano e pela opressão dos mais pobres por aqueles que detêm o poder. Reconhecer o protagonismo dos populares nos ajuda a compreender quem de fato são o dragão e o santo ao qual título faz referência; creio que o dragão seja uma metáfora para a opressão social, enquanto o santo guerreiro não é outro senão o povo unido e ciente de sua própria força.

Glauber Rocha demonstra aqui o mesmo que já havia demonstrado em seus primeiros filmes, um total domínio de sua própria expressão, enquanto cineasta autoral, e pleno controle sobre cada figura de linguagem que usa, extraindo delas significados diversos que se entrelaçam no decorrer do filme e se completam ao final dele. O domínio de técnica demonstrando por ele também é indiscutível, o que pode ser notado na composição de cada uma das cenas, na montagem e no uso da fotografia e da trilha sonora como imprescindíveis elementos da narrativa. O mérito de Glauber pode ser percebido também na forma com que ele mescla de forma harmônica à trama diversos elementos que ajudam a compor a dita identidade nacional,  como as superstições, o folclore e o sincretismo religioso.


Todo o elenco principal, que se vale de elementos teatrais na composição de seus personagens,  demonstra pleno envolvimento com aquilo a que o filme se propõe e isso pode ser notado em praticamente todas as cenas, nas quais o que se destaca não é a 'verdade' das interpretações, mas o potencial alegórico que elas conferem aos personagens. Destaco ainda a participação do povo visivelmente sofrido, que aparece inicialmente no filme como coadjuvante, seus rostos abatidos e seus olhares tristes e carentes de esperança (que vejo como uma herança do neorrealismo italiano) demoram para sair de nosso imaginário, tamanho o impacto que provocam... Ao assisti-lo prestem atenção na cena do duelo entre Antonio das Mortes e Coirana, que foi toda rodada em apenas um take, e na passagem em que o jovem cangaceiro/messias canta sobra a sua via crúcis.

Não creio que
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro represente de fato um rompimento com o cinema americano, o que Glauber Rocha faz é uma desconstrução do formato hollywoodiano, tal como Godard o fizera poucos anos antes, e uma remontagem de seus elementos sob um formato totalmente novo, no qual ele acrescenta os já citados elementos da cultura popular brasileira e os mistura com referências a clássicos do westerns, um de seus gêneros favoritos. A ousadia estética colocou Glauber entre os maiores nomes do cinema de sua época, lugar onde deveria estar até hoje, se nós brasileiros não fossemos tão cruéis com o seu legado, que é hoje, em tempos de antíteses políticas e sociais, mais atual do nunca.



O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro ganhou em Cannes o prêmio de Melhor  Diretor


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A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

domingo, 9 de junho de 2013

Lavoura Arcaica

Lavoura Arcaica - 2001. Escrito, dirigido e produzido por Luiz Fernando Carvalho, baseado na obra de Raduan Nassar. Direção de Fotografia de Walter Carvalho. Música Original de Marco Antônio Guimarães.  VideoFilmes / Brasil.


A primeira cena de Lavoura Arcaica (2001), primeiro e único filme dirigido por Luiz Fernando Carvalho, mostra André (Selton Mello), o personagem central, se masturbando de forma quase compulsiva. Ao contrário do que possa aparentar, esta não é uma passagem agressiva, muito pelo contrário, o ato é retratado de uma forma contida, quase poética. Se há um incômodo nesta sequência, ele vem não da situação em si, mas da forma com que ela é retratada. Em poucos minutos somos expostos à uma gama de significações que dizem muito sobre a trama, funcionando ainda como uma antecipação de revelações que serão feitas no decorrer dela. O personagem está estirado no chão de um quarto escuro e os enquadramentos salientam as contorções de seu corpo, que parece ansiar não pelo orgasmo, mas por expelir para fora de si algo que o angustia.

Durante toda esta sequência de abertura escutamos o barulho crescente de um trem em movimento, que constitui a primeira de uma série de metáforas geniais, construídas á partir de cada um dos elementos cinematográficos que compõem a obra. O trem simboliza numa primeira análise aquilo que André sente, algo de uma força tamanha, que não pode ser controlada. Três elementos que estão presentes neste prólogo, a compulsão sexual, a perda do autocontrole e a fuga (também representada pelo trem em movimento), antecipam aquele que será o mote da complexa trama que começará a ser desenrolada. A história se passa em meados da década de 40, em uma comunidade rural formada por imigrantes libaneses, no centro dela está a conservadora  família de André, constituída sobre um rígido moledo patriarcal no qual o pai (brilhantemente interpretado pelo Raul Cortez) exerce absoluto controle.


Tomado por uma avassaladora paixão, que contraria a moral e os princípios defendidos pelo pai, André foge e vai viver sozinho em um quarto de pensão, longe da abundância de recursos que tinha em sua casa. Sua partida afeta toda a família e deixa evidente a fragilidade de tudo aquilo que tinha sido construído até então. A mãe do rapaz (vivida pela Juliana Carneiro da Cunha) se torna ainda mais melancólica e Ana (Simone Spoladore), uma de suas irmãs, se fecha ainda mais em seu mundo particular de orações e penitências. Vendo a ruína para a qual sua casa caminha, Pedro (Leonardo Medeiros), o primogênito, vai em busca de André com o intuito de persuadi-lo a voltar. O encontro entre os dois é o ponto de partida para as inúmeras reminiscências e devaneios, dos quais a trama é composta, que nos conduzem de volta para a infância e para a juventude de André, épocas nas quais estavam sendo edificadas as bases daquilo que mais tarde o levaria à fuga da fazenda onde fora criado. 

A história de Lavoura Arcaica é uma espécie de reconstrução da parábola do filho pródigo e nela, tal como na bíblia, a figura do pai é uma representação de Deus, enquanto os filhos representam os homens e suas debilidades. Todavia, a história original evoca tão somente a essência de uma divindade capaz de perdoar e apta a reatar um relacionamento rompido; já no filme, o deus representado pela figura paterna é bom, mas autoritário, emocionalmente distante e incapaz de compreender a dor e a fraqueza do filho - o que percebo como um misto de crítica e questionamento herdado da obra literária. Outra leitura possível diz respeito à família patriarcal e sua constituição; em diversas passagens do filme pode ser percebida a posição que o pai ocupa diante do restante da família (o que também tem a ver com sua associação ao deus bíblico). Na trama, a autoridade e a sabedoria do pai são incontestáveis enquanto que a figura da mãe evoca fraqueza e inconstância, atributos que imputam nela a culpa por qualquer mal que venha a afligir a família... 


"Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições ou na hora dos sermões: O pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinham primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda vinha a mãe, em seguida eu, Ana e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as suas raízes. Já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, pela carga de afeto." - Neste trecho da narração em off feita pelo André pode ser percebida a forma com que o modelo patriarcal rompe com a unidade, criando no seio familiar dois seguimentos distintos, um deles formado por aqueles que tiveram suas individualidades aniquiladas pela  submissão ao patriarca e outro por aqueles que o contestam, ainda que de forma velada, com os seus respectivos comportamentos.

Em um de seus sermões à mesa, o pai defende a negação das paixões, a busca de sentido no trabalho duro: "O mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio. Cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a poeira ruiva que lhes turva a vista. Erguer uma cerca, guardar simplesmente o corpo, são esses os artifícios que devemos usar para impedir que as trevas de um lado invadam e contaminem a luz do outro. É através do recolhimento que escapamos ao perigo das paixões. Mas ninguém, no seu entendimento, deve achar que devamos sempre cruzar os braços, ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a terra para lavrar; ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a parede para erguer; ninguém ainda, em nossa casa, há de cruzar os braços quando existe o irmão para socorrer..." Tomado por boas intenções, ele acredita que isso possa trazer o equilíbrio para sua família, mas, mal sabe ele que nestes princípios pode estar a causa da ruína dela. Seu apego à tal doutrina o tornou cego diante do clamor do filho doente, que não consegue se fazer compreendido...


O dilema moral vivido por André é muito bem trabalhado no filme, outra óbvia herança da obra literária. Em momento algum o roteiro tenta defender ou justificar aquilo que o atormenta, afinal de contas trata-se de uma questão moral que é tabu em praticamente todas as culturas. É interessante perceber que nem o próprio personagem espera realizar aquilo que ele anseia de forma tão compulsiva. Ele não espera que sua família aceite sua imoralidade, na verdade ele quer apenas ser compreendido. A liberdade que ele reivindica não é a de fazer o que bem quiser, mas a de pedir ajuda. Ele quer poder chegar ao pai e ser entendido, mas entre os dois há um muro enorme, forjado pelas crenças e pelos dogmas que norteiam cada atitude do progenitor. O silêncio diante do sofrimento filho e a falta de compreensão (intensificada pela rigidez moral) são outros aspectos que podem ser associados à representação de Deus forjada pela obra. Neste ponto, é como se o filho reconhecesse sua própria condição miserável, mas fosse impedido de se achegar ao pai pela barreira que existe entre eles (o legalismo religioso).


Diferente de André, Pedro, o filho mais velho, é um homem de caráter reto e irrepreensível, seu comportamento justifica o fato de ele ser o primeiro à direita do pai na 'hierarquia familiar', no entanto, ele começa a mudar depois que reencontra o irmão. Ele se atormenta ao ser posto em contato com a agonia de André e de repente vemos toda a sua aparente força se desmoronar diante de verdades que ele jamais imaginava encontrar. É como se tudo aquilo em que ele acredita estivesse sendo colocado em xeque e isso o deixa em alguns momentos em um estado de agonia similar ao vivenciado pelo irmão. Ao voltarem para casa, estão os dois já transformados, Pedro mais do que André, o que nos leva à percepção de que as trevas de um lado contaminaram a luz do outro, tal como o pai temia. Perceber isso é de fundamental importância para que compreendamos, ao menos em parte, o porquê do tormento de André - O que acontece com Pedro é justamente aquilo que ele não queria que acontecesse com a família como um todo... 


Lavoura Arcaica é uma tragédia com um pé fincado no barroco e outro no arcadismo. Da primeira escola artística ele herdou o flerte ambíguo com o sagrado e com o profano; da segunda, a exaltação da natureza como uma entidade suprema capaz de trazer a paz para um indivíduo aturdido por sua própria humanidade (o que fica evidente nas passagens em que André roça o pé na terra, ou se cobre com folhas secas numa vã tentativa de fugir de algo que está dentro de si). O filme funciona, em uma última instância, como um contundente estudo sobre o indivíduo e sua relação, muitas vezes conflituosa, com fatos sociais que são anteriores a ele, como a moral constituída, os dogmas religiosos e a organização familiar. Partindo de tal perspectiva, pode-se afirmar que ele tem a potencialidade de se tornar um excelente objeto para análise e debate de diversas questões sociológicas e antropológicas, devido à forma com que ele aborda o choque entre o indivíduo e o meio no qual está inserido, que é no fim das contas algo muito maior e mais complexo do que um mero conflito entre gerações. 


A direção de fotografia, assinada pelo Walter Carvalho, irmão do Luiz Fernando, pode ser classificada como experimental e antes de tudo autoral, o que não é nenhum exagero, uma vez que está na iluminação, na escolha das perspectivas de filmagem e na construção de cada plano uma boa parcela da carga de significação e representação que o filme tem (eu ousaria dizer que a parcela de sua linguagem que não foi herdada do livro se encontra, em sua quase totalidade, nos elementos cinematográficos não verbais, como fotografia, direção de arte e montagem). A trilha sonora composta por Marco Antônio Guimarães é uma preciosidade de igual tamanho. Com uma notável influência da música árabe, cada canção evoca sentimentos e sensações que estão em plena harmonia com aquilo que vemos. Há de fato um casamento perfeito entre imagem, som e narração, algo tão belo e perfeito, que só encontro similares em A Árvore da Vida (2011) de Terrence Malick e em Hiroshima meu Amor (1959) de Alain Resnais. 


O intenso trabalho de preparação do elenco, que incluiu oficinas de canto, dança, ordenha, bordado, história da religião, mitologia, literatura, filosofia e cultura árabe, gerou resultados que podem ser notados nos desempenhos de todo o elenco. O Selton Mello está sublime, nesta que é de longe a sua melhor atuação, sua entrega ao personagem é tão visceral quanto a composição do mesmo. O Leonardo Medeiros, que também dá vida a um personagem com considerável nível de complexidade, entrega uma atuação consistente e sem nenhuma aresta a ser aparada. A belíssima Simone Spoladore demonstra seu enorme talento ao interpretar outra personagem complexa, sem precisar dizer uma só palavra durante todo o filme (prestem atenção nas duas cenas de dança, nas quais ela rouba o foco para si e na forma com que ela, através dos movimentos, traz para sua Ana auras distintas em cada um destes momentos). A Juliana Carneiro da Cunha, por sua vez, consegue evocar através de sua interpretação a dor, a melancolia e a força contida de sua personagem, tudo isso de uma forma extremamente sutil. O saudoso Raul Cortez é um monstro em cena,  sua atuação dispensa qualquer comentário...


Lavoura Arcaica é uma obra-prima, uma convergência perfeita entre cinema e literatura. Muitos criticaram o Luiz Fernando Carvalho por ele ter se mantido tão fiel ao livro que deu origem ao filme, no entanto, estes negligenciam o fato de que tal fidelidade não tira da obra cinematográfica a marca autoral que ela tem. O peso da mão do cineasta e seu perfeccionismo podem ser notados na composição de cada plano e, como eu disse anteriormente, estes constituem uma linguagem própria que vem somar e enriquecer aquela advinda da narrativa puramente literária. Lavoura Arcaica não só um dos melhores filmes nacionais de todos os tempos, mas também uma obra seminal do cinema mundial, que está á altura de alguns dos maiores clássicos da sétima arte; defendo isso sem medo de estar pecando pelo exagero... A experiência que Lavoura Arcaica é capaz de nos proporcionar é única, quase religiosa, um genuíno contato com a arte em sua forma mais sublime!


Lavoura Arcaica ganhou o prêmio de Melhor Contribuição Artística no Festival de Montreal; Melhor Filme, Ator (Selton Mello), Atriz Coadjuvante (Juliana Carneiro da Cunha) e Ator Coadjuvante (Leonardo Medeiros) no Festival de Brasília; Melhor Filme, Diretor, Fotografia e Trilha Sonora no Festival de Catagena; Melhor Ator (Selton Mello), Fotografia, Trilha Sonora e Prêmio Especial do Juri no Festival de Havana; Melhor Fotografia de Longa Metragem no ABC Trophy; Prêmio ADF de Fotografia, Prêmio do Público, Prêmio Kodak e Menção Especial para Luiz Fernando Carvalho no Festival de Buenos Aires do Cinema Independente; Melhor Filme pelo Juri Internacional no Festival de Guadalajara; Melhor Atriz (Juliana Carneiro da Cunha) e Fotografia no Grande Prêmio BR de Cinema e Prêmio do Público na Mostra de São Paulo


Assista ao trailer de Lavoura Arcaica no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

domingo, 2 de junho de 2013

Abril Despedaçado

Abril Despedaçado - 2001. Dirigido por Walter Salles. Escrito por Walter Salles, Sérgio Machado, Karim Ainouz, João Moreira Salles e Daniela Thomas, baseado na obra de Ismail Kadare. Direção de Fotografia de Walter Carvalho. Música Original de Ed Côrtes, Antonio Pinto e Beto Villares. Produzido por Arthur Cohn. Bac Films, Dan Valley Film AG, Haut et Court e VideoFilmes / Brasil.


"Em terra de cego, quem tem um olho só, todo mundo acha que é doido...", este aforismo, dito por um dos personagens centrais de Abril Despedaçado (2001), sintetiza bem aquele que é o tema central deste que é o primeiro longa-metragem dirigido por Walter Salles após o enorme sucesso de Central do Brasil (1998). Toda a trama está alicerçada sobre a questão do fatalismo social, que na narrativa se levanta de forma opressiva travestido de costume e tradição. A história contada pelo filme se passa no ano de 1910 e está ambientada no interior do sertão nordestino (no livro do qual o roteiro foi adaptado, a trama está ambientada em uma região rural da Albânia), um lugar castigado pelo clima árido, pela falta de recursos e principalmente pelo endurecimento dos corações das pessoas, que se aniquilam em intermináveis rixas familiares motivadas pelos conflitos de terra e perpetuadas pelo ódio e pelo desejo de vingança, que ambos os lados envolvidos alimentam. No filme, a inércia e a falta de questionamentos acerca dos próprios atos impedem os personagens de se posicionarem de alguma forma contra a realidade que os oprime.  

Apesar de todo o viés regionalista que Abril Despedaçado adquiriu no processo de adaptação e do fato de ele ser um filme de época, sua trama e a mensagem que ela traz consigo são universais e atemporais e isto explica a força e a urgência que a reflexão proposta por ele tem... É oportuno lembrar que a sociedade está em constante transformação, não sei se posso chamar este processo de evolução, no entanto, apontar  a ausência de mudança e de subversão como algo bom é negar todas as possibilidades de aprimoramento que o 'novo' representa. Não há costume, dogma, ou moral que esteja tão consolidado que não possa ser questionado e subvertido. Entretanto, uma parcela da sociedade se apega ao conservadorismo na tentativa de preservar a ordem vigente e o statos quo, de tal modo que seus olhos se fecham para toda e qualquer possibilidade de mudança (o que pode ser visto com clareza nos dias de hoje nos discursos reacionários, que pipocam nas redes sociais quando temas polêmicos são postos em debate). É a este 'fechar de olhos', que se assemelha à uma cegueira autoinduzida, que o personagem se refere na citação reproduzida no início desta resenha


Pacu (Ravi Ramos Lacerda), o autor da citação, é ainda uma criança, porém a clareza de sua visão o distingue de todos que estão à sua volta. Ele estava presente quando o irmão mais velho foi assassinado por um membro de uma família rival; pouco tempo depois, ele testemunhou o desgosto de Tonho (Rodrigo Santoro), o irmão do meio, que se viu obrigado pela tradição a cobrar na mesma moeda a morte do primogênito; estas são experiências dolorosas que o levam a questionar tudo aquilo em que seu pai acredita. Ciente de que está prestes a ver a ruína de sua família, uma vez que o ciclo de mortes parece não ter fim, o garoto tenta  buscar alternativas e agindo de tal modo ele acaba despertando algo de novo no irmão, que também não concorda com os rumos tomados no conflito, mas não tem coragem o suficiente para escolher um outro caminho. O comodismo é o traço de personalidade mais marcante em Tonho, é ela que o impede de enxergar aquilo que Pacu já vê com tanta nitidez.


Através de uma situação relativamente simples, o roteiro constrói uma metáfora genial acerca do comodismo e da inércia dos personagens: Ainda no início do filme, vemos a família, em torno da qual a história gira, trabalhando na produção de rapadura, atividade de onde tira seu sustento. O rústico engenho que usam para moer a cana de açúcar é movido por bois, que caminham em círculo em torno do equipamento fazendo-o girar. Para que não parem e não interrompam o funcionamento da máquina, os animais são castigados com açoites, que os mantém em movimento enquanto a cana é triturada. Mais adiante, uma outra passagem mostra os bois girando ao redor do engenho, porém desta vez, não tem cana sendo moída e ninguém está trabalhando, mas, eles continuam girando porque foram condicionados para tal, o medo que eles sentem já está internalizado, o que torna dispensável o constante uso da força bruta. A limitação imposta pelo julgo, não permite que tenham outra coisa a fazer senão aquilo a que já estão acostumados.


O comportamento daqueles que são vitimados pelos conflitos de terra são similares ao do gado, que sem questionar repete aquilo para o que programado, sem ter ciência da força que tem, que seria capaz de por abaixo toda a estrutura que os aprisiona. Por meio desta brilhante metáfora, o filme retrata ainda o processo de animalização e de aniquilação da individualidade de cada um dos personagens. Como contraponto a tal situação, o roteiro aponta a arte e o conhecimento como meios através dos quais o fatalismo pode ser subvertido, na trama tais aspectos são personificados por um casal de artistas mambembes, que representam o desapego dos antigos costumes e a subversão dos valores arcaicos que sustentam e perpetuam as rixas. Tal como em O Sétimo Selo (1956) de Ingmar Bergman, o circo, que é uma expressão artística que evoca a simplicidade da cultura popular, representa um humanismo capaz de trazer sentido para uma vida vazia de significado e salvar o indivíduo de sua própria mediocridade.



Abril Despedaçado não alcançou o mesmo sucesso de Central do Brasil, o que é de certo modo justificável, uma vez que nele Salles pecou um tanto pelo excesso em alguns aspectos. Alguns pontos da trama são um tanto forçados pela nítida intenção de comover o espectador e este apelo emocional acaba enfraquecendo, em determinadas passagens, o potencial reflexivo que o filme tem. Estes pequenos problemas, no entanto, não tiram dele o seu inegável mérito, ele continua sendo um filme bem acima da média. Apesar de pecar nos pontos ora mencionados, a trama consegue nos fazer refletir sobre a temática que explora e tornar crível o drama dos personagens, sem tirar dele a poética, que se mantém presente durante todo o desenvolvimento da narrativa. As atuações constituem um dos pontos altos do longa; o Rodrigo Santoro está muito bem, não por acaso este foi o filme abriu as postas para sua carreira internacional; Ravi Ramos Lacerda, José Dumont e Rita Assemany também estão ótimos. 


A fotografia, que capta tanto a beleza quanto a pobreza do sertão, e a trilha sonora, intensa e consonante com os mais diversos sentimentos retratadas na história, ajudam a compor a poética bela e ao mesmo tempo trágica do filme. Travelings e enquadramentos sutis e cuidadosos atuam diretamente na composição da narrativa, associando à ela um olhar cheio de inocência e simplicidade, como se a câmera fosse uma extensão do olhar singelo do menino Pacu... Abril Despedaçado pode não ser a obra-prima de Walter Salles, mas independente disso ele continua sendo, ao meu ver, um grandioso motivo de orgulho para o nosso cinema... 


Abril Despedaçado foi indicado ao Globo de Ouro e ao Bafta na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.

Assistam ao filme completo no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

Confiram também aqui no Sublime Irrealidade a crítica de Na Estrada (2012),
também dirigido por Walter Salles.