N° de acessos:

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

À procura de Lois Weber - Uma Ousada Tentativa de Revisão da História

A história, tal como nos é contada, é por vezes excludente, unilateral e, por isso, cruel com a memória daqueles que deveriam ser lembrados mas são legados ao ostracismo. É verdadeira a máxima atribuída a George Orwell que diz que 'a história é escrita pelos vencedores', pressupondo-se aí a exclusão da versão dos vencidos. É necessário que, em qualquer narrativa, questionemos quem são naquele contexto os 'ganhadores' e os 'perdedores'. Penso que todo relato, por mais simples e objetivo que ele seja, está sujeito às opiniões e visões de mundo de quem o escreve. Não acredito em imparcialidade, nem quando o narrador a tem como meta, tão pouco quando seu objetivo é justamente destruir ou reforçar alguma convenção ou construção social. A história do cinema e de seus principais personagens está repleta de injustiças, descréditos, subvalorizações e distorções da verdade, o caso de Lois Weber é apenas um dentre tantos. 

A pergunta que motivou a pesquisa e que norteará a reflexão proposta por este breve artigo é a seguinte: Por que tão pouco se fala da genialidade e pioneirismo de Lois Weber? - Na verdade, eu poderia ter escolhido, como objeto de estudo, a história (ou falta dela) de Alice Guy, Max Linder e tantos outros nomes de importância imensurável na história da sétima arte, que hoje estão ausentes das rodas de debate tanto na academia quanto nas discussões informais entre cinéfilos. Optei por Lois Weber porque no caso dela a injustiça é ainda maior, pois o crédito de seus feitos continua sendo concedido a outrém. É importante não só que lembremos suas realizações (o que chega a ser necessário, visto que é quase impossível achar publicações sobre ela em português), mas também que analisemos os porquês delas serem frequentemente negadas pela história oficial. 


A trajetória de Lois Weber me impressionou desde o primeiro momento em que eu soube de sua existência, não creio que seja exagero afirmar que o cinema tal como o conhecemos hoje é um legado dela, bem como o é de tantos outros que ousaram, experimentaram e caminharam à frente de seus tempos. Ela, durante o tempo em que esteve em atividade, dirigiu, de acordo com dados do The Internet Movie Database (IMDb), 135 filmes, escreveu 114 e atuou em 100. Seu mérito, no entanto, não está na quantidade, mas na qualidade de suas obras. Weber criou planos ousados, foi a primeira a usar o split screen, técnica que consiste na divisão da tela para mostrar ações simultâneas e, o mais importante, ela inovou na forma de contar uma história, rompendo com a narrativa entrecortada e episódica, que caracterizou o cinema em seus primeiros anos, para dar unidade dramática à obra. 

D. W. Griffith, diretor de obras como O Nascimento de uma Nação (1915) e Intolerância (1916), continua sendo apontado na academia e fora dela como o "pai da narrativa fílmica clássica", quando na verdade, apesar da importância de seus feitos, este mérito não pertence tão somente a ele, mas também a Lois Weber (e, talvez, a tantos outros também esquecidos), que já utilizava em seus filmes elementos que mais tarde seriam apontados, por estudiosos e teóricos (dentre eles o também cineasta Serguei Eisenstein), como inovadores nas obras de maior renome de Griffith, que, diga se de passagem, são posteriores às dela. Em Suspense (1913), aquela que talvez seja a sua obra mais lembrada e uma das poucas que sobreviveram ao passar dos anos, Weber antecipa o estilo de narrativa que dois anos mais tarde seria tido como genial em O Nascimento de uma Nação. Não por acaso, durante muito tempo a autoria de Suspense foi creditada a Griffith e não a ela.


Para que se possa tentar intender a injustiça da qual Lois foi vítima é preciso voltar aos primórdios do cinema nos Estados Unidos, na primeira década do século passado a grande indústria ainda não existia, na década seguinte ela começava a engatinhar com o surgimento de estúdios como a Universal (1912), a Paramount (1916), a Fox (1915) e a United Artists (1919). Naquela ocasião, fazer cinema era coisa pra louco, um investimento megalomaníaco e de alto risco, que atraia o interesse mais de gente ligada às artes do que de executivos. Ainda sem a noção do quão promissor poderia ser aquele negócio, as primeiras produtoras atraiam artistas e outros profissionais que optaram por seguir à margem do que era tido como "alta cultura" na época. Por não ser um negócio muito bem visto e por não ser levado à sério, era natural que o cinema despertasse o interesse de mulheres, imigrantes, escritores sem espaço no mercado editorial e outras minorias. Este foi um dos períodos de maior ebulição artística do cinema americano, afinal de contas ainda existia uma relativa liberdade de criação.

Luis Weber e Alice Gyy (outra grande figura dos primórdios do cinema, que dirigiu mais de 400 filmes e foi a primeira mulher à frente de um grande estúdio) são apenas dois exemplos de mulheres que se destacaram neste período. Mais da metade dos filmes produzidos na embrionária Hollywood até o final da década de 30 foram escritos por mulheres, algo impensável nos dias de hoje. Porém, com a consolidação da indústria e mais tarde com o advento do cinema sonoro, que era muito mais caro e difícil de ser realizado, o cenário começa a sofrer grandes alterações. A descoberta tardia de que o que existia naquele caldeirão era uma mina de ouro esperando para ser explorada despertou o interesse de homens de negócios de Wall Street e a partir daí a arte começa a ceder espaço para o dinheiro, e é aqui, neste ponto, que a história começa a ser reescrita. A concepção da máquina de produzir sonhos abrangia não só a perspectiva de futuro, mas também a reconstrução do passado; era preciso criar os primeiros mitos e estes precisavam ser homens, brancos e enquadrados na linha ideológica de quem passou a comandar Hollywood: as grandes corporações financeiras.


Luis Weber não se enquadrava neste estereótipo, ela era ousada e estava décadas à frente de seu tempo, ela, para se ter uma ideia, filmou o primeiro nu frontal feminino da história do cinema em Hypocrites (1915) e abordou temas como aborto (com uma visão conservadora para os dias de hoje, mas ousada para a época) e controle de natalidade em Where Are My Children? (1916); D. W. Griffith, ao contrário de Weber, era perfeito para o modelo de herói que o cinema comercial intentava criar, ele era branco, americano, de posições ultra-conservadoras e, o principal, ele era homem, e isto era o que bastava para que a autoria de vários filmes de Lois passasse a ser atribuída a ele, juntamente com o crédito pelas inovações técnicas e pela ousadia estética presentes nas obras dela... uma grande injustiça que ainda precisa ser reparada.

Penso que cabe a nós, jornalistas, blogueiros, cinéfilos e demais interessados, o dever de questionar sempre a história oficial e duvidar de supostas verdades absolutas. A noção de que a história é maleável, estando sujeita a interesses escusos, e de que os relatos estão na maioria das vezes impregnados de ideologias das mais diversas é importantíssima para que possamos chegar o mais perto possível de uma verossimilhança dos fatos. Vou além e ouso afirmar que cabe a nós o dever de recolocar nomes injustiçados, como o de Lois Weber, nas rodas de discussão, nos blogs, nas revistas, livros, documentários e em qualquer outra mídia ou meio que assuma para si a responsabilidade de contar a história da sétima arte de seus personagens mais importantes... À memória dos esquecidos! 


Confiram abaixo o filme Suspense (1913), uma obra-prima de Lois Weber: