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quarta-feira, 4 de novembro de 2015

À procura de Lois Weber - Uma Ousada Tentativa de Revisão da História

A história, tal como nos é contada, é por vezes excludente, unilateral e, por isso, cruel com a memória daqueles que deveriam ser lembrados mas são legados ao ostracismo. É verdadeira a máxima atribuída a George Orwell que diz que 'a história é escrita pelos vencedores', pressupondo-se aí a exclusão da versão dos vencidos. É necessário que, em qualquer narrativa, questionemos quem são naquele contexto os 'ganhadores' e os 'perdedores'. Penso que todo relato, por mais simples e objetivo que ele seja, está sujeito às opiniões e visões de mundo de quem o escreve. Não acredito em imparcialidade, nem quando o narrador a tem como meta, tão pouco quando seu objetivo é justamente destruir ou reforçar alguma convenção ou construção social. A história do cinema e de seus principais personagens está repleta de injustiças, descréditos, subvalorizações e distorções da verdade, o caso de Lois Weber é apenas um dentre tantos. 

A pergunta que motivou a pesquisa e que norteará a reflexão proposta por este breve artigo é a seguinte: Por que tão pouco se fala da genialidade e pioneirismo de Lois Weber? - Na verdade, eu poderia ter escolhido, como objeto de estudo, a história (ou falta dela) de Alice Guy, Max Linder e tantos outros nomes de importância imensurável na história da sétima arte, que hoje estão ausentes das rodas de debate tanto na academia quanto nas discussões informais entre cinéfilos. Optei por Lois Weber porque no caso dela a injustiça é ainda maior, pois o crédito de seus feitos continua sendo concedido a outrém. É importante não só que lembremos suas realizações (o que chega a ser necessário, visto que é quase impossível achar publicações sobre ela em português), mas também que analisemos os porquês delas serem frequentemente negadas pela história oficial. 


A trajetória de Lois Weber me impressionou desde o primeiro momento em que eu soube de sua existência, não creio que seja exagero afirmar que o cinema tal como o conhecemos hoje é um legado dela, bem como o é de tantos outros que ousaram, experimentaram e caminharam à frente de seus tempos. Ela, durante o tempo em que esteve em atividade, dirigiu, de acordo com dados do The Internet Movie Database (IMDb), 135 filmes, escreveu 114 e atuou em 100. Seu mérito, no entanto, não está na quantidade, mas na qualidade de suas obras. Weber criou planos ousados, foi a primeira a usar o split screen, técnica que consiste na divisão da tela para mostrar ações simultâneas e, o mais importante, ela inovou na forma de contar uma história, rompendo com a narrativa entrecortada e episódica, que caracterizou o cinema em seus primeiros anos, para dar unidade dramática à obra. 

D. W. Griffith, diretor de obras como O Nascimento de uma Nação (1915) e Intolerância (1916), continua sendo apontado na academia e fora dela como o "pai da narrativa fílmica clássica", quando na verdade, apesar da importância de seus feitos, este mérito não pertence tão somente a ele, mas também a Lois Weber (e, talvez, a tantos outros também esquecidos), que já utilizava em seus filmes elementos que mais tarde seriam apontados, por estudiosos e teóricos (dentre eles o também cineasta Serguei Eisenstein), como inovadores nas obras de maior renome de Griffith, que, diga se de passagem, são posteriores às dela. Em Suspense (1913), aquela que talvez seja a sua obra mais lembrada e uma das poucas que sobreviveram ao passar dos anos, Weber antecipa o estilo de narrativa que dois anos mais tarde seria tido como genial em O Nascimento de uma Nação. Não por acaso, durante muito tempo a autoria de Suspense foi creditada a Griffith e não a ela.


Para que se possa tentar intender a injustiça da qual Lois foi vítima é preciso voltar aos primórdios do cinema nos Estados Unidos, na primeira década do século passado a grande indústria ainda não existia, na década seguinte ela começava a engatinhar com o surgimento de estúdios como a Universal (1912), a Paramount (1916), a Fox (1915) e a United Artists (1919). Naquela ocasião, fazer cinema era coisa pra louco, um investimento megalomaníaco e de alto risco, que atraia o interesse mais de gente ligada às artes do que de executivos. Ainda sem a noção do quão promissor poderia ser aquele negócio, as primeiras produtoras atraiam artistas e outros profissionais que optaram por seguir à margem do que era tido como "alta cultura" na época. Por não ser um negócio muito bem visto e por não ser levado à sério, era natural que o cinema despertasse o interesse de mulheres, imigrantes, escritores sem espaço no mercado editorial e outras minorias. Este foi um dos períodos de maior ebulição artística do cinema americano, afinal de contas ainda existia uma relativa liberdade de criação.

Luis Weber e Alice Gyy (outra grande figura dos primórdios do cinema, que dirigiu mais de 400 filmes e foi a primeira mulher à frente de um grande estúdio) são apenas dois exemplos de mulheres que se destacaram neste período. Mais da metade dos filmes produzidos na embrionária Hollywood até o final da década de 30 foram escritos por mulheres, algo impensável nos dias de hoje. Porém, com a consolidação da indústria e mais tarde com o advento do cinema sonoro, que era muito mais caro e difícil de ser realizado, o cenário começa a sofrer grandes alterações. A descoberta tardia de que o que existia naquele caldeirão era uma mina de ouro esperando para ser explorada despertou o interesse de homens de negócios de Wall Street e a partir daí a arte começa a ceder espaço para o dinheiro, e é aqui, neste ponto, que a história começa a ser reescrita. A concepção da máquina de produzir sonhos abrangia não só a perspectiva de futuro, mas também a reconstrução do passado; era preciso criar os primeiros mitos e estes precisavam ser homens, brancos e enquadrados na linha ideológica de quem passou a comandar Hollywood: as grandes corporações financeiras.


Luis Weber não se enquadrava neste estereótipo, ela era ousada e estava décadas à frente de seu tempo, ela, para se ter uma ideia, filmou o primeiro nu frontal feminino da história do cinema em Hypocrites (1915) e abordou temas como aborto (com uma visão conservadora para os dias de hoje, mas ousada para a época) e controle de natalidade em Where Are My Children? (1916); D. W. Griffith, ao contrário de Weber, era perfeito para o modelo de herói que o cinema comercial intentava criar, ele era branco, americano, de posições ultra-conservadoras e, o principal, ele era homem, e isto era o que bastava para que a autoria de vários filmes de Lois passasse a ser atribuída a ele, juntamente com o crédito pelas inovações técnicas e pela ousadia estética presentes nas obras dela... uma grande injustiça que ainda precisa ser reparada.

Penso que cabe a nós, jornalistas, blogueiros, cinéfilos e demais interessados, o dever de questionar sempre a história oficial e duvidar de supostas verdades absolutas. A noção de que a história é maleável, estando sujeita a interesses escusos, e de que os relatos estão na maioria das vezes impregnados de ideologias das mais diversas é importantíssima para que possamos chegar o mais perto possível de uma verossimilhança dos fatos. Vou além e ouso afirmar que cabe a nós o dever de recolocar nomes injustiçados, como o de Lois Weber, nas rodas de discussão, nos blogs, nas revistas, livros, documentários e em qualquer outra mídia ou meio que assuma para si a responsabilidade de contar a história da sétima arte de seus personagens mais importantes... À memória dos esquecidos! 


Confiram abaixo o filme Suspense (1913), uma obra-prima de Lois Weber:


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Um conto sobre intolerância e medo...

Faltava pouco para meia noite quando dona Madalena, aos prantos, empurrou a porta principal e se dirigiu trôpega à mesa grande que ficava na outra ponta do saguão. Ela veio acompanhada de Lúcia, uma vizinha, que em vão tentava acalmá-la. Aquela era a primeira vez que entrava em uma delegacia de polícia e um mal pressentimento a atormentava mais do que a falta de informação sobre o que estava acontecendo. Ainda não conseguia imaginar o porquê de Ricardo, o filho único, ter sido detido. O susto que levou ao receber a ligação do distrito policial foi tamanho, a ponto dela sequer prestar atenção na última informação que lhe foi passada, a de que o filho estava hospitalizado e, provavelmente, só estaria à disposição da polícia para prestar depoimento e outros procedimentos padrões na manhã do dia seguinte - "Cadê meu filho, o que vocês fizeram com ele?" - O desespero aumentou quando contaram a ela que ele estava ferido... 

Ricardo cursava o quinto período de geografia, não era muito de sair de casa e seus companheiros mais frequentes eram os livros, que ele teimava em deixar espalhados pelo quarto sempre que vinha passar o final de semana na casa da mãe. Dona Madalena estranhara o fato de que nos dois últimos finais de semana ele passara muito pouco tempo em casa, o que definitivamente não era normal... Naquela manhã quando saiu, disse apenas que tinha compromissos no centro da cidade. Mesmo não compreendendo a mudança repentina ela não o questionou. "Ele nunca me deu motivos para preocupação", pensou, "talvez seja melhor eu confiar nele"... Tudo tinha se tornado mais complicado após a morte de Antônio, o pai do Ricardo, Madalena fazia milagres com a pensão deixada pelo marido e com a renda que obtinha em sua atividade de costureira. O filho chegou a pensar na possibilidade de trancar o curso e arrumar um emprego fixo para ajudar em casa, mas ela logo o repreendeu, "vê-lo formado era o maior sonho do seu pai, não jogue tudo fora agora"...

Eram oito e meia da manhã quando o celular tocou, Ricardo, que ainda escovava os dentes, demorou para atender. Pela insistência de quem ligava, parecia ser algo urgente... "Porra cara, estamos te esperando aqui já tem mais de meia hora!", era o Adriano, "O Adriano, calma aí cara, tô atrasado mas nem tanto, ainda faltam 20 minutos para as nove, chego aí em 10". "Nove horas? Combinamos às oito e já está todo mundo aqui, agiliza aí!" A confusão de horários fez com que Ricardo desistisse de tomar o café da manhã, ele apenas guardou na mochila aquilo que tinha separado aos pés da cama e desceu apressado, na escada quase trombou com a mãe que voltava de aguar as plantas do pequeno jardim que tinham na frente da casa - "O filho, aonde você indo tão cedo?" - "Tenho alguns compromissos no centro da cidade mãe...". 

Enquanto percorria o caminho entre a sua casa e a praça onde tinha combinado de encontrar Adriano e os outros, Ricardo pensava sobre o sentido daquelas ações. Ele, que nunca fora de se expressar, estava a caminho de sua terceira manifestação. Mesmo tomado por dúvidas acerca da eficácia daquilo que estava a fazer, ele sabia que não podia mais ficar calado, nos últimos meses ele testemunhara o avanço de ideais altamente perigosos, o que muito lhe preocupava. O medo e a intolerância pareciam se propagar como uma onda, que pouco a pouco ia tomando e inundando todos os espaços. O discurso de ódio estava presente na sala de aula, na fila do banco, até na conversa de boteco e não demorou para que tudo aquilo deixasse de ser apenas um discurso. Tinha aumentado assustadoramente os casos de agressão e de linchamento público e o estopim das manifestações fora a morte de Natan, 18 anos, esfaqueado a dois quarteirão de sua casa por estampar em sua camisa uma afirmação de sua sexualidade. 

"E onde que tá o pai do rapaz?", perguntou o delegado após ser abordado por Madalena. "Eu sou a mãe dele, pelo amor de Deus, meu filho é um menino bom, eu sei que ele não fez nada de mal", "Senhora, calma lá que aqui nós não prendemos nenhum menino bom, o filho da senhora é bandido!" 

Ricardo desceu do ônibus a alguns quarteirões de sua casa, apesar de ser uma sexta-feira a rua estava vazia, ouvia-se um latido ou outro ao longe e nada mais. A mãe não gostava que ele voltasse pra casa nas sextas à noite, ela preferia que ele o fizesse nos sábados de manhã - "O bairro está cada vez mais perigoso meu filho" - Ele, no entanto, queria aproveitar parte da madrugada pra adiantar um trabalho e imaginou que fosse ter mais paz em casa do que no alojamento da universidade, onde aconteceria uma festa... Ao dobrar uma esquina ele se deparou com um grupo de homens, um deles, aparentando estar bastante alcoolizado, o encarou e lhe perguntou com um sorriso sarcástico que lhe meteu medo: "Onde a mocinha pensa que vai?" - Ele não respondeu, seguiu andando em meio aos risos do grupo; chegou em casa trêmulo, subiu direto para o quarto e não contou nada para a mãe... Não demorou muito tempo e o silêncio da rua foi quebrado pelo burburinho das pessoas que saiam de suas casas e em seguida pelo som das sirenes das viaturas. Natan fora encontrado já sem consciência, com três perfurações no abdome, morreu a caminho do hospital, nenhum testemunha, ninguém viu nada...

A tropa de choque da polícia tentava dispersar a passeata, aparentemente em vão, o número de manifestantes só aumentava, e não demorou até que recorressem à repressão ultra violenta, que já se tornava costumeira. Cassetetes, balas de borracha, bombas de gás. Ricardo acabou se perdendo de Adriano no meio do tumulto. O suor frio descia e borrava a tinta preta, sinal de luto, em seu rosto. Quando a primeira bomba de gás lacrimogênio explodiu, ele ficou sem reação por alguns segundos. Mas, de repente, veio-lhe a consciência de que, sendo ou não uma ação eficaz, era ali que ele precisava estar. Tomou coragem, tirou a câmera de mochila e começou a capturar as cenas da repressão. A segunda bomba explodiu e desta não foi a consciência que lhe fugiu por alguns instantes, foi a visão. Ao conseguir abrir os olhos, ainda vacilantes, ele se deparou com aquele mesmo sorriso sarcástico - "Onde a mocinha pensa que vai?" - Uma forte pancada no rosto e ele apagou, acordou sob a acusação de ter tentado agredir um policial... 

Quando Madalena chegou ao hospital o filho já não estava mais lá. Tentaram convencê-la de que Ricardo tinha fugido. Todavia, o instinto materno lhe dava a certeza de que não era isso que tinha acontecido. Sabia como ninguém que o filho não era bandido, sabia que ele não tinha porque fugir... 

Ela nunca se conformou com a ideia de que Ricardo não mais voltaria.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Sobre muralhas, segredos e silêncios intransponíveis...

Quanto tempo é necessário para se conhecer alguém de verdade? Paulo se acomodou no sofá e em silêncio continuou a fitar Mariana, que assistia a novela enquanto acariciava Julia, a filha caçula de seis anos que adormecera em seu colo. Em menos de um mês eles estariam completando dez anos de casados. Tinham dois filhos, bons empregos e uma vida invejável. Naquele dia Paulo chegara mais cedo do trabalho, coisa rara, beijou a esposa, a filha e foi direto para o banho. Demorou mais do que de costume e quando voltou para a sala de estar se viu perdido em seus próprios pensamentos. Nem se deu conta quando, antes de adormecer, a filha o chamou e apontou em um comercial algo que todas as outras meninas da escola tinham, só ela não. Mariana, que tinha chegado bem antes de seu trabalho, se mantinha concentrada na novela enquanto o marido divagava em seus universos interiores. 

Por alguns instantes, Paulo pensou no quanto ele próprio havia mudado nesta última década e de repente se sentiu um estranho em sua própria casa. Sabia que estava longe de ser um modelo de pai e marido; apesar de não fazer muito o tipo viciado em trabalho, passara a chegar cada vez mais tarde em casa e, mesmo acompanhando de perto todo o processo de formação dos filhos, ele se sentia alheio a tudo, um invasor, alguém que estava a ponto de ser posto para fora - Imaginou como seria se naquele exato momento policiais adentrassem a sala e o retirassem de lá sob a acusação de invasão de domicílio - Seu devaneio foi interrompido por um singelo chamado do mundo real, era Mariana que, percebendo o seu distanciamento, o trouxe de volta apenas com um olhar, um daqueles seus olhares carregados de algo que poderia ser facilmente confundido com empatia, que foi seguido por um sorriso ameno que denotava, ainda que de forma sutil, carinho e compaixão. 

Paulo, no entanto, se sentiu ainda mais incomodado com aquele sorriso. Era o mesmo sorriso do tempo de namoro, da época em que se conheceram na faculdade, ele cursando direito, ela economia. Foi então que ele se deu conta de que, diferente dele, Mariana não tinha mudado praticamente nada. Ela continuava a mesma, no olhar, no jeito calmo de defender um ponto de vista, na escolha minuciosa das palavras quando se dirigia a um estranho... Mas, naquele dia o estranho era ele. Imaginou que ela, após o sorriso compassivo, estivesse a escolher mentalmente a melhor maneira de perguntá-lo como foi no trabalho e se estava tudo bem. Ela não o fez, continuou em silêncio, mudou levemente a posição de Julia em seu colo e se voltou novamente para a novela.

O contato com a realidade durou pouco, Paulo foi novamente tomado pelo fluxo de pensamentos que jorrava como nunca antes acontecera. De súbito ele se viu imerso em lembranças de um dia específico, um dia que ele aparentemente, sem saber o porquê, tinha deletado de sua memória. Mais de quatro anos se passara desde a tarde em que, ao chegar em casa, ele fora abordado pela vizinha, uma doce senhora, que lhe entregou uma carta sem remetente endereçada à Mariana, que por engano fora deixada na caixa de correios da casa errada. Era estranho, mas podia ser qualquer coisa; um folder com promoções de uma loja, um convite para algum evento, um panfleto político talvez... Ficou curioso, mas relutou em abrir uma correspondência que não lhe pertencia. 

Mariana não conseguiu esconder o desconforto que a entrega da carta lhe causou. O olhar apreensivo contrastava e muito com o olhar ameno ao qual Paulo já estava tão acostumado. Ele quis perguntar do que se tratava, mas, ao tentar seguir a esposa até o quarto, foi impedido por Lucas, o filho mais velho, que tentava lhe mostrar o novo recorde que acabara de bater no vídeo game... Ninguém mais falou sobre a misteriosa correspondência, mas, no meio da noite Paulo acordou e se deparou com a esposa sentada à beira da cama. De costa para ele, ela tentava esconder um choro silencioso, reprimido. Ele a abraçou, como se tentasse protegê-la de uma ameaça que ele próprio desconhecia, e perguntou o que tinha acontecido, quase sussurrando ao seu ouvido, como se ali no quarto existisse mais alguém à espreita. Ela apenas enxugou as lágrimas, sorriu e respondeu que não era nada. O silêncio preencheu novamente cada canto do aposento; Mariana adormeceu primeiro...

Paulo se viu de novo no sofá e, mesmo não tendo dormido, sentiu como se tivesse despertado naquele instante, foi só então que percebeu que a televisão já estava desligada e Mariana já tinha ido levar Julia para o quarto dela e neste momento já devia estar no quarto de Lucas ordenando que ele desligasse o computador e fosse para a cama. Atormentado pelas dúvidas que voltaram à tona, Paulo foi para a varanda, acendeu um cigarro e se debruçou sobre o parapeito - De quem seria aquela carta? Por que ela deixara Mariana tão desconcertada? Por que a memória daquele dia parecia ter sido deletada de sua mente? - Veio-lhe então o pensamento de que talvez naquela madrugada, quando abraçou a esposa tentando confortá-la, eles tenham vivido o último momento real de suas vidas e que desde então tudo se tornara apenas um simulacro do casamento que um dia idealizaram... Talvez tenha sido naquele dia que a relação começou a esfriar e o sexo deixou de ser como era no princípio. Não sabia dizer ao certo, mas era bem provável que o fosse. 

Mais uma vez foi Mariana quem trouxe Paulo de volta para a realidade, desta vez com um carinho delicado em seu rosto, ele se virou um tanto assustado e ela disse apenas: "você precisa fazer a barba". Mariana tirou um cigarro do maço que estava sobre o parapeito, acendeu e se pôs ao lado do marido. Ambos permaneceram calados, lado a lado por longos minutos, os olhares perdidos como se contemplassem algo ao longe... Paulo resolveu quebrar o silêncio e comentou: "falta menos de um mês, a gente precisa começar a planejar a festa"... 


terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Um outro mundo - Um Mergulho no Cinema Iraniano


Na semana passada, os olhares do mundo se voltaram novamente para o oriente médio. O atentato na França, praticado por fundamentalistas islâmicos contra o periódico Charlie Habdo, trouxe novamente à tona discussões sobre os efeitos nefastos do fundamentalismo religioso. E, como já era de se esperar, não tardou para que a discussão ganhasse, em diversos momentos, contornos xenofóbicos e islamofóbicos. Pautados pelo mídia ocidental, frequentemente esquecemos que o fundamentalismo está presente não só no islamismo; os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque com a bandeira do cristianismo hasteada; Israel há décadas massacra o povo árabe em nome da tradição judaica. No entanto, a impressão que ainda se tem é a de que todo muçulmano é um terrorista em potencial, o que, obviamente, é puro preconceito. 

Por acaso, ou por mera ironia do destino, eu tinha começado esta maratona com filmes iranianos poucos dias antes do atentado e, já nos primeiros filmes, eu já tinha refletido sobre a importância desta riquíssima produção cinematográfica, que consegue mostrar uma realidade que tão pouco conhecemos, isso porque simplesmente a mídia, à qual temos acesso, prefere, por questões políticas e econômicas, não retratá-la. Esta reflexão se intensificou após o atentado... Diante de obras dotadas de um humanismo tão belo e tão tocante é praticamente impossível não questionar as impressões preconcebidas que alimentamos durante tanto tempo. O Irã retratado nestas obras é ao mesmo tempo tão distante e tão próximo de nossa própria realidade. Ainda existe o afastamento cultural e geográfico, porém há coisas muito mais profundas que nos aproximam e nos ajudam a compreender uma realidade que ainda nos causa tanto estranhamento.

O Irã é atualmente o maior produtor de gás natural do mundo e possui a 4° maior reserva comprovada de petróleo, não por acaso ele se encontra no eixo afetado pelo conflito econômico (disfarçado de religioso) que há décadas dizima o Oriente Médio. Obviamente, a realidade social, política e econômica do país influencia diretamente sua produção cultural, os ecos dos inúmeros conflitos, da desigualdade social e da falta de liberdade estão presentes em praticamente todos os filmes iranianos que já assisti, porém estes temas são retratados na maioria das vezes de uma forma singela e altamente poética, um efeito natural da censura e da patrulha ideológica que já vitimou, dentre outros, o cineasta Jafar Panahi, que foi condenado a seis anos de prisão e a 20 anos sem filmar, escrever ou sair do país, sob a acusação de conspirar contra o regime de Mahmoud Ahmadinejad e filmar sem autorização prévia do governo. 

Estilisticamente, o cinema iraniano bebe muito da fonte da Nouvelle Vague Francesa e do Neorrealismo Italiano; da primeira escola foi herdado o experimentalismo formal e estético, a construção de tramas minimalistas que ganham significados maiores durante os seus desenvolvimentos e a supremacia do viés autoral em relação ao comercial; da segunda escola foi herdado o fatalismo social, a opção por filmar nas ruas e em locação reais e não em estúdios e a preferência por retratar a dura realidade dos oprimidos e dos menos favorecidos - Sem mais delonga, vamos aos filmes. Desta vez, optei por comentá-los não na ordem em que foram vistos, mas separando-os por autores, pois assim fica mais fácil correlacioná-los. 


Assisti a quatro filmes de Abbas Kiarostami, um dos maiores nomes do cinema iraniano, cuja obra é marcada por reflexões morais e existencialistas. A morte, o sentido da vida, a felicidade e o sofrimento que há no mundo são temas recorrentes em seus filmes, que ganham ares filosóficos ao abordar tais questões. Três dos longas assistidos compõem aquela que ficaria conhecida como a trilogia de Koker. O primeiro deles, Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), tem como protagonista o menino Ahmad (Babek Ahmed Poor), que sai de Koker, o vilarejo onde mora, para procurar a casa de um colega de escola para devolver-lhe um caderno de tarefas que seria avaliado pelo professor no dia seguinte. Em sua busca, o menino acaba se encontrando com diversas outras pessoas com quem acaba interagindo, os diálogos deixam evidente que o plot da trama é apenas um ponto de partida e que ela está na verdade discutindo questões muito mais complexas. Vale destacar a ótima atuação de Babek e a capacidade do cineasta de usar como elementos de linguagem as locações, os enquadramentos e a escolha entre o que mostrar e o que não mostrar - muitas vezes o que não é mostrado diz muito mais do que aquilo que vemos


O segundo filme da trilogia de Koker, Vida e Nada Mais... (1992), retrata a busca de um cineasta (Farhad Kheradmand), alter-ego de Abbas, e de seu filho (Buba Bayour) por notícias de Babek Ahmed Poor, o ator que interpretou Ahmad no filme anterior. A história se passa no ano de 1990, dias após um terremoto que devastou toda uma região do Irã. O cineasta teme que o menino que participara de seu filme esteja morto, assim como tantas outras pessoas da cidade de Keker... O formato do longa é semelhante o de seu antecessor, porém agora os protagonistas, que também procuram desesperadamente por algo, estão em um carro e interagem com pessoas que encontram à beira da estrada. Dos diálogos surgem reflexões sobre a morte e sobre o sofrimento. O fatalismo se faz presente nos depoimentos de pessoas que atribuem tão somente à vontade de um deus a responsabilidade pelo sofrimento que se abatera sobre as suas vidas. O cenário de destruição remete diretamente ao neorrealismo italiano e a relação entre pai e filho mostrada no filme me fez lembrar de um dos maiores clássicos desta escola, Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica.


No último filme da trilogia, Através das Oliveiras (1994), a metalinguagem adquire uma proporção ainda maior. Na história, que se passa no set de filmagens de Vida e Nada Mais..., o diretor (Mohamad Ali Keshavarz), novamente um alter-ego de Abbas, se vê na difícil situação de dirigir um casal de jovens atores, o rapaz (Hossein Rezai) está apaixonado pela moça (Tahereh Ladanian), porém a família dela não aceita o casamento porque ele é analfabeto e não tem uma casa para morar. Ciente de que se trata de um amor impossível ela se recusa a conversar com ele e sequer dá algum tipo de atenção para as inúmeras perguntas e declarações que ele faz. Eles interagem um com o outro apenas nos momentos da gravação, quando estão ambos nas peles de seus respectivos personagens... Neste filme a reflexão proposta sai do campo existencialista e vai, na maior parte dos diálogos, para o social. Sutilmente o diretor chama a atenção para o distanciamento entre as classes e para costumes separatistas que continuam sendo propagados de geração para geração. 


Em O Vento Nos Levará (1999), Kiarostami coloca a morte novamente no foco das reflexões filosóficas ensaiadas pela trama. Na história, um homem (Behzad Dorani) conhecido apenas como o 'engenheiro' chega com sua equipe a uma cidade do interior do Irã com a desculpa de que fará um serviço de engenharia. Mas, o real interesse do grupo é na verdade documentar um tipo de cerimônia religiosa, realizada em sepultamentos, que só acontece naquela região do país. O 'engenheiro' e sua equipe esperam ansiosos pela morte de uma anciã que, acometida por uma doença grave, se encontra impossibilitada de andar e não consegue mais comer. Porém, os dias vão passando e a moribunda começa apresentar sinais de melhoras, o 'engenheiro' se vê então diante de um dilema ético e moral e deste dilema surgem as reflexões sobre a finitude da vida, sobre a sua desvalorização diante da espetaculização da morte e sobre a nossa própria fragilidade e efemeridade.


Majid Majidi, um dos meus favoritos dentre os iranianos, consegue estabelecer um meio termo muito interessante entre o realismo proposto por Bahman Ghobadi - cujos filmes comentarei mais adiante - e  a poética das obras de Kiarostami. Com um olhar sempre singelo, ele retrata através de suas obras a luta de indivíduos para se adaptarem e sobreviverem em meios que lhes são de alguma forma estranhos e hostis. Assuntos como desemprego, pobreza, má qualidade de serviços públicos ganham evidência em suas obras, porém de uma forma que consegue ser contestadora sem perder a ternura e a sensibilidade. Em Filhos do Paraíso (1997), Majidi parte de uma situação simples para construir uma história capaz de nos emocionar e nos fazer questionar uma série de paradigmas. Ali (Amir Farrokh Hashemian) mora com os pais e a irmã, Zahra (Bahare Seddiqi) em um subúrbio de Teerã, capital do Irã, sua mãe está doente e o pai provê o sustento da casa fazendo pequenos bicos. No início da história Ali perde um par de sapatos da irmã e, com medo da represália da mãe, ele não conta sobre o ocorrido. À partir de então ele e a irmã passam a dividir um surrado par de tênis para irem à escola, o que acaba os envolvendo em uma série de confusões. 


A Cor do Paraíso (1999), tem como personagem principal, o menino Mohammad (Mohsen Ramezani), ele, que estuda em uma escola para cegos em Teerã, é levado pelo pai nas férias para reencontrar o restante da família, de quem ele ficou distante por um ano. Apesar de ser cego, o garoto consegue perceber e decodificar o mundo que o cerca melhor do que todos os outros que estão à sua volta. Seu maior desafio, no entanto, é convencer o pai de que pode se virar sozinho e de que tem talento o suficiente para ir muito além de onde ele próprio conseguiu chegar... Tanto em Filhos do Paraíso, quanto em A Cor do Paraíso, as crianças são quem representam uma oportunidade de superação do contexto relativamente opressivo no qual todos estão inseridos. O curioso é que os adultos, presos aos seus dogmas, costumes e legalismos, não conseguem compreender isso e acabam colocando em risco aquilo que pode ser um último fio de esperança de que aconteça uma real mudança nas vidas de todos. Este viés também está presente em A Canção dos Pardais (2008), filme de Majid Majidi já resenhado aqui no Sublime


Bahman Ghobadi trilha um caminho bem diferente dos seguidos por Abbas Kiarostami e Majid Majidi, o realismo de seus filmes é mais seco e muito mais brutal. Suas obras retratam os absurdos dos conflitos armados e do terrorismo de uma forma direta, sem tantos atenuantes. Se outros cineastas citados conduzem à reflexão por meio de metáforas e de sutilezas, Ghobadi o faz pelo choque. Isso no entanto não tira de seus filmes a beleza estética e um certo lirismo que eles trazem consigo. Me perguntei várias vezes, enquanto assistia às suas obras, de onde vinha este lirismo; cheguei à conclusão de que ele vem do destaque que se dá à inocência e à esperança que ainda resistem em meio ao caos, aspecto presente nas duas obras assistidas. Tempo de Cavalos Bêbados (2000) retrata a realidade de atravessadores que cruzam as montanhas geladas da fronteira do Irã com o Iraque com produtos e/ou emigrantes ilegais. Ayoub (Ayoub Ahmadi) e Ameneh (Amaneh Ekhtiar-dini), os protagonistas, são apenas crianças, mas já trabalham em uma feira e dividem com o pai viúvo a responsabilidade pela criação dos outros três irmãos, dentre eles Madi (Madi Ekhtiar-dini), o caçula, que tem uma grave doença. Com a morte do pai eles se vêm obrigados a assumir todas as responsabilidades sozinhos e a necessidade os levam a se envolver com os grupos de atravessadores. 


Tartarugas Podem Voar (2004) também mantém o foco de sua narrativa sobre as crianças. Na história, Satellite (Soran Ebrahim) é um menino que lidera um grupo de crianças órfãs que desenterram minas para revendê-las. A trama, que se passa na fronteira entre o Irã e a Turquia, se desenvolve nos dias que antecedem a invasão americana ao Iraque. No vilarejo todos querem receber notícias sobre a guerra que se aproxima, Satellite propõe então que façam o mesmo que foi feito em outros vilarejos vizinhos, uma 'vaquinha' para comprar uma antena parabólica para sintonizar canais estrangeiros. Com a colaboração de quase todos e com a ajuda do tino que o garoto tem para os negócios, eles acabam conseguindo comprar uma antena por um bom preço (parte do pagamento é feito com minas desenterradas pelo grupo de garotos). As poucas notícias que chegam vão aumentando gradativamente a tenção, mas Satellite parece sentir um prazer estranho diante de tudo o que está acontecendo, ele nutre um certo fascínio pela cultura americana. Fascínio este que demora para ser desconstruído. 


Os três últimos filmes pertencem a cineastas diferentes - O Balão Branco (1995) de Jafar Panahi é uma das obras-primas do cinema iraniano, com sua trama minimalista, que remete às obras de Abbas Kiarostami, de quem Panahi já foi auxiliar de direção, ele consegue emocionar e chamar a atenção para questões que ainda minam a convivência humana, como a falta de diálogo, o egoísmo, a falta de perdão e, principalmente a incapacidade da maioria de estender a mão para alguém que precisa. No filme, a pequena Razieh (Aida Mohammadkhani) consegue convencer a mãe a lhe dar dinheiro para comprar um peixinho dourado para as comemorações do ano novo iraniano (uma antiga tradição no Irã), porém ela acaba perdendo o dinheiro no caminho até a loja. Ele reencontra a nota perdida, porém logo em seguida a perde novamente. Ela então descobre que a cédula caíra em um vão que dá no sub-solo de uma outra loja... Este é apenas o começo da odisseia da menina, que conta com a ajuda do irmão Ali (Mohsen Kafili), pouco mais velho que ela, para tentar recuperar o dinheiro. Sutilmente a trama fala ainda de solidão e desamparo, sentimentos que aparentam serem comuns entre os iranianos. 


Gabbeh (1996), de Mohsen Makhmalbaf, é puro lirismo, nele a fantasia se estende à cada uma das passagens, cada fotograma parece uma pintura. Com inúmeras referências à tradição, à religiosidade e aos costumes iranianos, o filme constitui um belíssimo tratado sobre prazer, a busca pelo amor idealizado, o envelhecimento, a dor da perda e principalmente sobre o decorrer de tempo, que corre inexorável e alheio às paixões e angústias. Eu diria que ele é também um filme de arte sobre a arte, sua trama fala justamente da forma com que a criação artística serve de expressão para as alegrias e as dores que vivenciamos. A história se inicia com um casal de idosos lavando um tapete persa em um rio. Uma linda moça, que aparenta sair do tapete, começa a contar para a casal a sua história; ela é apaixonada por um rapaz que frequentemente aparece em seu vilarejo à cavalo e apenas a observa de longe, um amor avassalador, porém impedido de se realizar pelas tradições seguidas pela família dela. No desenrolar da trama, as duas histórias se entrelaçam, a do casal de idosos (seria esta a realidade?) e a da jovem que anseia viver um amor desmedido (seria esta apenas uma abstração artística?). Gabbeh consegue ser ao mesmo tempo reflexivo e sensorial, é impossível não ser impactado de alguma forma por ele. 


A Maçã (1999) é o filme de estreia da cineasta Samira Makhmalbaf, filha de Mohsen Makhmalbaf. Na trama, duas garotas de 12 anos, Massoumeh (Massoumeh Naderi) e Zahra (Zahra Naderi), gêmeas, são mantidas presas pelos pais dentro da própria casa desde que nasceram. A prisão retardou seus desenvolvimentos intelectuais, elas não conseguem falar e na maioria das vezes não conseguem lidar com situações simples do cotidiano. Um vizinha decide então fazer um abaixo assinado pedindo a intervenção do Departamento de Bem Estar Social; este, representado por uma assistente social, passa a acompanhar a família e pouco a pouco as meninas vão conquistando uma liberdade que nunca tiveram. A genialidade do filme está na forma com que ele, num tom que chega a ser a ser quase documental, remete à origem dos vários tipos de prisões. Uma das passagens mais emblemáticas intercala cenas das meninas presas na casa onde moram com cenas da vizinha, a mesma que fez o abaixo assinado, torcendo roupas na janela de sua casa, em ambas situações as mulheres são retratadas atrás de grades. É a forma sutil da diretora de dizer que a prisão também pode ser a limitação imposta pela vida conjugal em um opressivo sistema patriarcal.


Confiram também aqui no Sublime Irrealidade as resenhas de outros filmes iranianos:

Gosto de Cereja (1997) de Abbas Kiarostami
A Separação (2011) de Asghar Farhadi

Confiram também o post sobre a maratona de cinema argentino: 



sábado, 3 de janeiro de 2015

Um breve, porém intenso, mergulho no cinema argentino!


Não foi algo planejado. Eu estava à procura do filme Relatos Selvagens (2014- coprodução entre Argentina e Espanha, escrita e dirigida pelo Damián Szifron, produzida pelo Almodóvar e com nomes como Ricardo Darín, Darío Grandinetti e Leonardo Sbaraglia no elenco - e, depois de algumas tentativas frustradas desisti de encontrá-lo, foi então que veio a ideia de colocar em dia, ao menos em parte, a enorme dívida que tenho com o cinema argentino. Minha intenção inicial era assistir a dez filmes, acabou sendo nove, pois não consegui encontrar legenda compatível para um deles. A maioria dos filmes assistidos foram lançados no início da década passada, o que não foi intencional, daria para fazer um passeio semelhante passando apenas por obras mais recentes. Esta seleção, no entanto, acabou sendo um reflexo daquele que foi um dos períodos mais prolíferos da cinematografia no país, o auge do 'movimento', surgido na década de 90, que ficou conhecido como Novo Cinema Argentino. 

Durante esta pequena maratona foi quase inevitável não fazer comparações entre o cinema argentino e o nosso. No tocante à qualidade das obras, acredito que temos uma produção tão prolífera e boa quanto a deles. A diferença está, não no processo artístico/criativo, mas no mercadológico. Os hermanos têm conseguido contornar problemas nos quais ainda tropeçamos, boa parte deles relacionado ao financiamento público da produção (geralmente feito através de políticas de incentivo) e à distribuição. A impressão que se tem é a de que os filmes de lá não visam apenas o mercado interno (diferente de boa parte daquilo que é produzido hoje no Brasil) e as melhores obras não ficam restritas apenas ao circuíto de mostras e festivais, como ainda acontece por aqui, o que indica que a industria cinematográfica se encontra em estágios de maturidade diferentes nos dois países. [Pretendo voltar à estas questões em um post específico]. 

Recomendo esta breve maratona para todos! Para iniciá-la, dispa-se da rivalidade tola que fora alimentada durante muito tempo entre os dois países, abra a sua alma e se permita ser impactado por ótimas produções de diferentes gêneros, com propostas diferentes, mas pertencentes a um todo, que daria orgulho a qualquer país! Abaixo seguem breves considerações sobre cada um dos filmes assistidos: 


Minha modesta maratona, que durou uma semana, foi iniciada com O Filho da Noiva (2001), uma pequena obra-prima de Juan José Campanella. O filme, que é o segundo da fruto da longeva e bem sucedida parceria do diretor com o ator Ricardo Darín, tem em sua composição dois dos grandes trunfos do cinema produzido pelos hermanos: a sensibilidade e a universalidade. No centro da história está Rafael (Darín), ele se formou em direito, mas acabou assumindo o restaurante do pai por não ter alcançado sucesso na carreira de advogado. Sobrecarregado por afazeres e responsabilidades,  ele ainda precisa lidar com problemas e conflitos familiares. A pressão é enorme, ele tenta segurar as pontas mas não resiste, o preço a ser pago vem na forma de um infarto, que o deixa por vários dias na UTI, período no qual ele se vê imersos em reflexões forçadas sobre a sua vida e as escolhas que fez. A oportunidade de Rafael encontrar alguma paz interior vem quando o seu pai, Nino (Héctor Alterio), anuncia que quer finalmente se casar na igreja com a sua mãe, Norma (Norma Aleandro); uma proposta ousada devido a um pequeno problema, Norma tem perda de memória, provocada pelo mal de alzheimer, e é incapaz de responder pelos seus atos. O desenrolar da história é uma verdadeira ode ao amor e à valorização dos pequenos prazeres. 


O segundo filme da maratona foi Nove Rainhas (2000), longa dirigido por Fabián Bielinsky, também protagonizado por Ricardo Darín. No centro de sua trama estão dois trapaceiros profissionais, Marcos (Darín) e Juan (Gastón Pauls), eles se conhecem quase que por acaso e decidem 'trabalhar' juntos por um dia. É justo neste dia que surge a oportunidade de aplicar um golpe milionário, que envolve a réplica de uma série de selos raros e um perigoso colecionador que está hospedado na cidade. A fluidez da narrativa, os diálogos afiados e as ótimas atuações dos protagonistas dão ao filme um diferencial que o distancia da grande maioria das obras do gênero que são realizadas atualmente. O último ato, que não comentarei pelo risco de entregar algum spoiler, só confirma aquilo que os primeiros já indicavam, trata-se de uma grande obra, que soube aproveitar da melhor forma possível uma boa história, sem para tal precisar recorrer a malabarismos técnicos e a firulas estilísticas desnecessárias. 


O filme seguinte foi Plata Quemada (2000), triller de Marcelo Piñeyro, baseado em fatos reais, que retrata a fuga de uma quadrilha de bandidos, que vão para o Uruguai após assaltarem um carro forte. O assalto não acontecera conforme o planejado e os dois policiais que estavam  veículo acabaram sendo mortos pelos bandidos. Movida pelo desejo de vingar a morte dos dois militares, a polícia local dá início à uma investigação para descobrir o paradeiro da quadrilha. Os próprios assaltantes reconhecem que é uma questão de tempo até que o local em que se refugiaram seja descoberto, no entanto eles decidem permanecer até que um aliado no Uruguai consiga documentos falsos para eles virem pra o Brasil. A trama é protagonizada por dois dos assaltantes, El Nene (Leonardo Sbaraglia ) e Ángel (Eduardo Noriega ), conhecidos no meio como 'os gêmeos'; apesar desta alcunha eles são bem diferentes um do outro, El Nene é racional e se porta como o cabeça do grupo, enquanto que Ángel se deixa guiar mais facilmente pela emoção, sendo movido frequentemente pela culpa que sente por ser um fora da lei e por manter um relacionamento homoafetivo com El Nene. A narrativa desenvolve de maneira muito satisfatórias os seus dois viés, o romântico/erótico, sustentado pelo relacionamento entre os dois personagens e o suspense, que coloca o filme em uma tensão sempre crescente, que se torna angustiante com a aproximação do último ato.


O quarto filme da maratona foi Lugares Comuns (2002), drama dirigido por Adolfo Aristarain que conta a história de um professor de literatura, já idoso, que é aposentado compulsoriamente devido às ideias que defende em sala de aula. Com o país passando por uma grave crise econômica, Fernando Robles (Federico Luppi), o protagonista, se vê obrigado a vender a casa em que mora e a pegar como parte do pagamento uma propriedade rural para onde se muda. O desenrolar da trama retrata o processo de adaptação do professor à nova vida, processo este que é retratado com uma singeleza enorme, que chama atenção não só pela tentativa do personagem de vencer suas limitações, mas também pela forma com que as suas ideias, quando postas em prática na história, acabam nos impactando. No último ato o filme perde um pouco de sua unidade, à partir de dado momento da narrativa ele abandona alguns dos conflitos que tinham sustentado a narrativa até então para se apegar a outros. Isso faz com que o desfecho soe um tanto forçado, como se tivesse sido construído de tal forma apenas para despertar no público algum tipo de comoção. Todavia, o filme continua acima da média e sendo uma boa pedida para quem valoriza atrativos que dificilmente seriam encontrados no cinema comercial. 


A História Oficial (1985) foi o próximo a ser assistido. Dirigido por Luis Puenzo, ele foi o primeiro filme latino-americano a ganhar o Oscar na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. É sem dúvidas uma obra-prima, grandiosa em todos os aspectos: Roteiro, atuações (Norma Aleandro está sublime), fotografia, direção de arte, trilha sonora... Todavia, creio que o seu maior trunfo foi ter levado para a tela grande a discussão sobre um tema tão polêmico, tão recente na época, que ainda era uma ferida aberta na história da Argentina. Em sua trama, Alicia (vivida pela Norma) é uma professora de história que preza pela disciplina e pela ordem. Ela não percebe que o rigor de suas posições e a unilateralidade de sua visão sobre aquilo que ensina a têm distanciado da história real de seu país. Alienada das questões políticas e sociais ela se recusa a enxergar a cruel realidade que a ditadura militar representava. No entanto, a suspeita de que a menina, que adotara ainda bebê, possa ser filha de militantes políticos mortos pelo regime, começa mudar a visão que até então ela tinha. Como pano de fundo, o filme retrata a luta da Mães da Praça de Maio, mulheres que se uniram para lutar e reivindicar notícias sobre seus filhos desaparecidos durante a ditadura militar. 


O sexto filme da maratona foi outra obra de Juan José Campanella, O Mesmo Amor, a Mesma Chuva (1998), o primeiro fruto da parceria dele com Ricardo Darín. A trama acompanha o relacionamento entre os dois protagonistas, Jorge Pellegrini (Ricardo Darín) e Laura (Soledad Villamil), durante 20 anos, retratando as crises, os términos, os longos períodos de separação e também os bons momentos, que foi o que manteve uma centelha do sentimento inicial acesa por tanto tempo. Sem os clichês do cinema mainstrean, a narrativa nos apresenta a personagens complexos, dotados de vícios e virtudes, que muitas vezes erram tentando acertar e por isso acabam colocando em risco aquilo que têm de mais importante. Em uma análise mais ampla, eu diria que a história de amor contada funciona como uma metáfora daquilo que o país vivia em cada um dos períodos retratados; começa com a utopia, passa pela esperança (representada na esfera social pela abertura política) e por diversas crises, até chegar à uma espécie de maturidade, onde os problemas ainda não estão todos resolvidos, mas há a sabedoria que impede que erros do passado voltem a ser cometidos.


O sétimo da lista foi Um Conto Chinês (2011), filme dirigido por Sebastián Borensztein, que também traz Ricardo Darín no papel principal. Com sua trama construída sobre a ideia de que talvez exista um porquê associado a questões atribuídas ao acaso, o longa direciona o foco de sua narrativa para a vida monótona de Roberto (vivido por Darín), um homem ranzinza, mas de bom coração, que não faz nada além de administrar sua loja de ferragens. A rotina de Roberto muda completamente depois que seu caminho se cruza por acaso (será mesmo?) com o de Jun (Ignacio Huang), um jovem chinês que fora para a Argentina em busca de um tio com quem nunca teve qualquer tipo de contato. Sem saber uma palavra em Espanhol e sem ter lugar para ficar, Jun acaba sendo acolhido por Roberto. A chegada do rapaz mexe com o pacato comerciante e sutilmente muda a forma com que ele enxerga a si mesmo e o mundo à sua volta. Ao observar o rapaz, Roberto descobre que tem tanta dificuldade de se comunicar como ele, talvez venha daí a empatia que surge entre os dois, sentimento este que impactará a vida de ambos. 


Abraço Partido (2004) de Daniel Burman, o penúltimo filme da maratona, tem como pano de fundo a crise econômica que assolou a Argentina, sua história passa-se quase que totalmente no interior de uma galeria comercial, onde Ariel Makaroff (Daniel Hendler), o protagonista, trabalha. Ariel tenta tirar dupla cidadania (ele é descendente de poloneses) para conseguir finalmente deixar a Argentina e se mudar para a Europa. No entanto, o galho da árvore genealógica que pode o favorecer em sua tentativa de ter a cidadania polonesa aprovada, é o mesmo que o conduz à uma série de dúvidas sobre o seu passado. Seu pai, um judeu idealista, deixara a família pouco tempo depois dele nascer para se alistar no exército de Israel. A recusa da mãe e do irmão mais velho de tocar no assunto indica que pode haver algo que Ariel não sabe. O desenvolvimento da trama retrata a busca do jovem por informações que expliquem o fato do pai não ter voltado e o relacionamento dele com o que sobrou de sua família e com as outras pessoas que também trabalham na mesma galeria. O bom ritmo, a maneira com que diversas sub-tramas são costuradas e a ótima atuação de Hendler ajudam a tornar esta uma grande obra, digna de estar entre as melhores do Novo Cinema Argentino.


Crônica de uma Fuga (2006), dirigido por Adrián Caetano, o último da maratona, é baseado em fatos reais e tem sua trama ambientada durante o período em que a Argentina esteve sob uma ditadura militar. Claudio Tamburrini (Rodrigo de la Serna), o goleiro de um time argentino da segunda divisão, é sequestrado por agentes do governo e levado para uma antiga mansão, usada como campo de detenção e tortura. Lá um grupo de jovens é mantido em cativeiro e submetido a diversos tipos de tortura, métodos estes que são usados para arrancar deles confissões e dados sobre operações suspeitas e outros envolvidos com a militância política de esquerda. Claudio, que não tinha nenhum envolvimento com questões desta natureza, arquiteta junto com outros sequestrados um plano de fuga, que se torna uma última esperança para o grupo, que teme a pena mais alta aplicada pelo tribunal clandestino: a morte. O filme consegue retratar com realismo a angústia e o sofrimento vivenciado no local. A tensão criada pela trama chega a se tornar quase insuportável em alguns momentos. Trata-se, sem dúvidas, de uma grande obra, cujo valor transcende as questões meramente técnicas, é o tipo de história que precisa ser contada para que os erros do passado não voltem a ser cometidos.