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quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Quem é o "monstro"? Kore-Eda nos dá espelhos em seu novo filme!


Se você tiver alguma oportunidade, assista ao filme Monster, obra mais recente do cineasta japonês Hirokazu Kore-Eda. É, eu creio que será melhor eu refazer este comando imperativo retirando a condicionante: Simplesmente, assista “Monster”! Não só porque é um dos melhores filmes do ano passado; não só porque o Kore-Eda é um diretor que precisa ser acompanhando de muito perto; não só porque o roteiro foi premiado na última edição do festival de Cannes… eu já falei que é o melhor filme de 2023?

É necessário falar muito sobre Monster, mas o problema é que não dá pra falar muito sobre ele sem estragar a experiência de quem ainda não assistiu. Tentarei fazê-lo, SEM SPOILERS, sob pena de que daqui pra frente o texto fique ainda mais confuso. Se me serve de justificativa, digo que a culpa pela má escrita é do próprio filme, que assisti aqui em BH no Cine Una Belas Artes, ainda estou inebriado, sob o efeito poderoso desta sessão. E, antes que me ataquem, o que se desenrola nestas linhas tortas talvez seja mais um relato de experiência que uma crítica.

Feitas as ressalvas, vamos lá! A trama é simples: percebendo o comportamento estranho do filho e que ele chegou machucado da escola, a mãe o questiona e ele acaba contando que foi agredido por um de seus professores. Ela vai ao colégio e tudo o que consegue é um educado, pomposo e ineficaz pedido de desculpas. Quanto mais ela tenta cobrar uma ação efetiva da diretora e dos demais professores, mais perceptível se torna o muro (ou os muros) que a separa de seu intento. É isso. É só isso? Não, é tudo isso!


Parece bobo, parece banal, mas é precisamente o oposto. O filme faz gato e sapato de nossa percepção, usando termos gadamerianos, eu diria que o filme alimenta nossas precompreenssões para adiante demoli-las em uma ampliação de horizontes. A trama brinca com a angústia de nossa condição existencial, somos seres lançamos em um mundo que enxergamos sempre a partir do ponto em que nos encontramos. Somos condenados a não ter uma noção precisa do todo e sem dar conta disso, nos contentamos com os fragmentos.

No livro A verdade e as formas jurídicas, Michel Foucault fala de um meio de produção e validação da verdade existente na Grécia antiga, que está presente inclusive no inquérito no qual o herói trágico Édipo é submetido. Uma mesma pessoa nunca detém toda a verdade, que é uma espécie de quebra-cabeças, cujo sentido só é revelado quando as outras pessoas que detêm as outras partes se pronunciam. Na tragédia de Sófocles só se descobre a gravidade do infortúnio de Édipo, que sem saber casou com a própria mãe e matou o próprio pai, porque surgem pessoas que detém cada uma parte da história.

O roteiro de Monster se vale deste mesmo método de produção da verdade, com a diferença de que nele não há um inquérito, as partes se encaixam e as pontas soltas se juntam na medida em que as perspectivas de personagens distintos vão sendo sobrepostas, revelando um sentido que que não poderia ser encontrado a partir de um horizonte solipsista. E aqui vale dizer que o que o filme faz é uma contundente crítica ao solipsismo que caracteriza o nosso tempo, no qual julgamentos baseados em precompreenssões são poucas vezes pensados e questionados por quem os emite.


Depois de nos revirar de ponta cabeça e ao avesso e de nos sacudir, a reposta para pergunta que é feita em diversos da trama, “quem é o monstro”, se desvela. O monstro sou eu, o monstro é você, o monstro somos todos nós. Monster nos lembra que urge pôr abaixo os muros da incomunicabilidade e ampliar os horizontes, sem isso, na vida assim como no filme, estaremos pecando o tomar o recorte, como um todo capaz de produzir algum sentido.


Monster ganhou o prêmio de melhor roteiro na edição do Festival de Cannes de 2023.

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