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sábado, 27 de janeiro de 2024

Anatomia de uma Queda - Reflexões sobre Direito, justiça e verdade a partir de um dos melhores filmes da temporada!



Anatomia de uma Queda, filme francês dirigido por Justine Triet e vencedor da Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, possui uma trama aparentemente simples: A escritora Sandra (Sandra Hüller) mora em um chalé na montanha com o marido, Samuel (Samuel Theis), que é um ex-professor e aspirante a escritor, e o filho, Vincent (Swann Arlaud), um menino com deficiência visual. Samuel é encontrado morto por Vincent, e aquilo que a princípio parecia ser apenas um acidente passa a ser visto pelas autoridades responsáveis pela investigação como um possível assassinato e Sandra passa a ser a principal suspeita. 

Na medida em que a trama se desenrola, fatos novos surgem, indícios vão aparecendo, e o roteiro, que é muito bem escrito, permite que ora acreditemos na inocência da personagem, ora duvidemos de que não tenha sido ela a responsável. De uma forma muito interessante o filme mostra que o fato original não pode ser recriado, as intenções dos envolvidos não podem ser acessadas e o que se tem é apenas um quebra-cabeças que pouco a pouco aparenta estar sendo montado a partir dos horizontes apresentados pela mulher, pelo filho e pelos indícios encontrados.

É a partir destes horizontes entrecortados que já no tribunal uma trama dentro da trama começa a ser desembolada. Passamos a nos questionar: o que nos faz crer que a personagem é inocente ou culpada são indícios concretos ou nós, expectadores sem visão privilegiada dos fatos, estamos tão sujeitos, assim como o tribunal, a aquilo que se apresenta como mera narrativa e que não necessariamente corresponde à verdade? É curioso perceber que os flashbacks presentes nesta parte do filme não servem para nos conduzir aos fatos originais, mas tão somente à uma reconstrução criada à partir da versão de algum dos personagens. E mesmo as versões apresentadas por peritos e especialista não são objetivas, são igualmente baseadas na interpretação, onde na maior parte das vezes os preconceitos dos intérpretes falam mais que as coisas analisadas em si.


Em um dado momento, um dos personagens afirma que no processo a verdade dos fatos não é o que importa, mas as impressões criadas e alimentadas; outra personagem, mais adiante, afirma que é necessário decidir mesmo diante de uma dúvida substancial e que o decidido tem validade, tem valor de verdade, como se a decisão consistisse em uma última análise em uma substituição da verdade factual pela verdade solipsista daquele em quem está investido o poder de julgar.

Aqui já é possível ensaiar algumas reflexões sobre a diferença entre a verdade factual e a verdade processual. A verdade processual sempre resultará de atos de interpretação, é a partir da linguagem que uma recriação da situação original é possível, o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer nos lembra que “o ser que pode ser conhecido é linguagem”, o que quer dizer que acessamos as coisas sempre tendo a linguagem como condição, e no processo a verdade se forma como uma narrativa que resulta da apresentação de um horizonte por um dos lados, pela contraposição deste horizonte ao horizonte apresentado pelo outro lado da lide e pela ampliação destes horizontes pela produção/dilação probatória.

Há, no entanto, situações em que os horizontes apresentados, mesmo após contrapostos e ampliados, se mostram insuficientes para que a verdade insurja, é o que na linguagem jurídica é chamado de dúvida substancial. Uma situação deste tipo traz o questionamento proposto pelo filme: há justiça no ato de entregar a alguém, que decidirá conforma sua consciência em uma situação de incerteza, o poder de destruir a vida de outrem? Este é um dos dilemas fundamentais da justiça, é o problema com o qual a deusa Palas Atena se depara no último ato da peça As Eumênides, escrita na Grécia no ano de 458 a.C por Ésquilo. É o mesmo dilema que os jurados enfrentam no clássico Onze Homens e uma Sentença (1957), de Sidney Lumet.


Em Anatomia de uma Queda a justiça é representada por um dos personagens (e tem um elemento óbvio que comprova esta minha tese), é este personagem que faz questionamentos pertinentes em uma dada passagem da trama e é a ele que cabe, ainda que indiretamente, a mesma decisão que no clássico grego coube à deusa Atena.

Anatomia de uma Queda é um filme que merece ser visto e muito debatido, é um excelente material para uma aula de Teoria do Direito ou de Processo Penal, principalmente em um tempo em que estamos, como sociedade, tão entregues à sanha punitivista que nos faz confundir justiçamentos com justiça. 


Anatomia de uma Queda, que estreou no Brasil na última quinta-feira, está indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Melhor Direção (Justine Triet), Melhor Atriz (Sandra Hüller), Melhor Roteiro Original e Melhor Edição. Deveria estar indicado também na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira, mas a França apostou em La Passion de Dodin Bouffant, que não recebeu nenhuma indicação. A cerimônia do Oscar acontecerá no dia 10 de março.


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