Os Sapatinhos Vermelhos (The Red Shoes) - 1948. Dirigido e produzido por Michael Powell e Emeric Pressburger. Escrito por Michael Powell, Emeric Pressburger e Keith Winter, inspirado no conto de Hans Christian Andersen. Direção de Fotografia de Jack Cardiff. Música Original de Brian Easdale. The Archers e Independent Producers / UK.
A efemeridade do sucesso, a busca pela perfeição, as armadilhas do estrelato... Estes temas já renderam excelentes obras no cinema, clássicos como A Malvada (1950) de Joseph L. Mankiewicz e ainda produções recentes como Cisne Negro (2010) de Darren Aronofsky, estes filmes têm comum o fato de que suas tramas funcionam como um retrato sombrio do show business, por mostrar a forma com que ele pode destruir com relativa facilidade a vida daqueles que aceitam participar de seus jogos. Em Os Sapatinhos Vermelhos (1948), obra-prima dirigida por Michael Powell e Emeric Pressburger, tais temáticas também estão estão presentes, seu excelente roteiro aborda a ascensão de duas estrelas, a bailarina Victoria Page (Moira Shearer) e o músico Julian Craster (Marius Goring), ambos são jovens ambiciosos que personificam o prazer do ato criativo e a ânsia de alcançar a perfeição. Boris Lermontov (Anton Walbrook), o diretor do teatro que os contrata, por sua vez, pode ser considerado uma personificação do próprio show biz, ele é um homem elegante, de gosto refinado, porém, detentor de uma aura sombria e de um temperamento rude e cruel.
Na trama, Lermontov descobre Victoria através de uma tia dela, que planejou uma festa em sua casa para ter a oportunidade de expor o talento da sobrinha. Já Julian, se fez ser notado, ele foi até Boris para cobrar pelo uso não autorizado de uma suas composições em um balé produzido por ele. Mesmo não dando o braço a torcer num primeiro momento, Lermontov se rende ao talento dos dois e ambos acabam sendo contratados e, após uma série de eventos, se tornam as estrelas do novo espetáculo da companhia, uma adaptação de Os Sapatinhos Vermelhos, conto trágico escrito por Hans Christian Andersen, autor de clássicos da literatura infantil, como O Patinho Feio, A Pequena Sereia e O Soldadinho de Chumbo. Na estória a ser recontada no palco, a personagem principal é uma bailarina que ganha um par de calçados mágicos e não consegue mais parar de dançar após calçá-los. Sem conseguir tirá-los de seus pés ela dança até não ter mais forças, no final ela cai morta, vencida pela arte que tanto amou.
A trama do filme caminha para um desfecho trágico e a peça encenada é uma espécie de prenúncio do que está para acontecer. Em seu primeiro encontro com Boris, Victoria diz a ele que dançar tinha para ela a mesma importância que viver para ele; não é absurdo acreditar que esta declaração tornou possível a escolha dela para ser a protagonista da nova montagem, naquele momento, ainda que sem saber, ela estava se comprometendo a valorizar mais o balé do que sua própria vida e isso certamente lhe seria cobrado. Ela se apaixona por Julian e o relacionamento iniciado por eles é visto com maus olhos por Lermontov, que não acredita que a moça consiga se entregar com a mesma intensidade aos dois amores, para ele ela deve viver para a dança, tal como havia prometido no primeiro encontro entre eles. A postura do diretor, que à princípio se confunde com mero ciúme, é na verdade muito mais que isso, percebe-se que uma provável atração sexual definitivamente não é o que lhe motiva.
Boris Lermontov é ao meu ver o personagem mais complexo e intrigante do filme, diferente de Victoria e Julian, que não transcendem a condição de um par romântico, ele não deixa perceptíveis quais são suas reais motivações. Comentei anteriormente que ele personifica o próprio show business e isso pode ser notado na relação dele ele com cada um daqueles com quem ele trabalha; pode-se dizer que ele exerce algum tipo de poder sobre a vida de cada um, afinal todos sabem que estarão condenados ao ostracismo caso se distanciem dele e de sua companhia, ele diz quem deve e quem não deve continuar sob os holofotes e sua visão sobre o futuro de algum candidato ao estrelato tem quase o peso de uma sentença. No entanto, é interessante perceber que ele traz consigo sua própria antítese, ele é visivelmente um homem amargurado e constantemente insatisfeito, como se o poder que detém não lhe fosse o suficiente.
Pela sua insaciedade, Lermontov pode ser comparado ao titã Prometeu, personagem da mitologia grega que, após tentar roubar o fogo de Zeus para dar aos homens, foi preso a uma rocha e condenado a ter seu fígado devorado por uma águia, esta o dilacerava e voltava tão logo o órgão se restituía, o que acontecia em menos de um dia. Tal como o Titã, Boris tenta dar aos simples mortais algo de sagrado, todavia, ao invés de fogo, ele oferece a aqueles que se subordinam a ele o prazer da busca pela a perfeição artística. A efemeridade do sucesso é águia que o atormenta constantemente. Enquanto uma estrela tem sua carreira devorada pelo simples passar do tempo, ele precisa buscar uma nova, que possa a substituir a atual à altura ou de melhor forma, culminando num ciclo tão opressivo e interminável quanto aquele no qual Prometeu se viu preso. Lermontov vive sua própria tragédia, ele se atormenta com sua obrigação de erguer novas celebridades, uma busca tão angustiante que o faz ansiar por uma estrela que não se apague tão rapidamente, uma que valorize o espetáculo mais do que sua própria vida...
Os Sapatinhos Vermelhos não é uma obra genial e à frente de seu tempo somente por causa da brilhante metáfora que cria do show business; trata-se de uma obra impecável também pelos aspectos técnicos, sua direção de arte é impressionante, associada à fotografia, ela ajuda a compor cada um dos ambientes, tornando-os ao mesmo tempo belos e opressivos, o que é reforçado pela constante presença de sombras e cores desbotadas e de objetos cênicos que evocam alguma espécie de negativismo, como flores murchas e peças de decoração soturnas (o que contrasta com o positivismo que emana do comportamento da personagem principal). A melancolia, implícita na maior parte do filme, se torna evidente na passagem de mais de 15 minutos em que a peça baseada na obra de Andersen é encenada, nesta sequência, que é pura perfeição, a morbidez dos ambientes contrasta com o colorido dos sapatinhos usados pela bailarina, cujo vermelho escarlate é destacado pela direção de fotografia, representando bem tanto a intensidade, quanto a fugacidade do sucesso.
A excelente montagem confere ao filme um ritmo crescente, que ajuda a atenuar a ansiedade despertada em nós expectadores acerca do desfecho da trama, ela ainda torna possível a sensação de continuidade e aceleração, tão importante na já citada sequência que retrata a apresentação de Os Sapatinhos Vermelhos. Os movimentos de câmera e enquadramentos têm uma precisão incrível (prestem atenção na forma com que a câmera acompanha a bailarina em alguns momentos da encenação, parecendo dançar junto ela), o que colabora com a narrativa através da criação de rimas visuais e autorreferências (reparem como a sequência final remete à passagem que mostra a apresentação do balé)... Moira Shearer, que realmente filmou cada uma das cenas de dança, está excelente, este é de fato um momento sublime de sua carreira; Anton Walbrook não está menos formidável que ela, ele compõe seu personagem basicamente com sutilezas, que incluem seus olhares, sorrisos sarcásticos e as suas memoráveis feições de desdém e deboche.
Os Sapatinhos Vermelhos é de fato uma obra que não envelheceu, depois de mais de seis décadas sua trama e todo seu aparato técnico continuam tão impactantes quanto imagino que tenha sido na ocasião de seu lançamento, a diferença talvez esteja no fato de que hoje o deslumbramento que ele é capaz de nos provocar seja causado mais pela sua potencialidade reflexiva do que pelos seus méritos estéticos. Sua temática central (a fugacidade do sucesso associada a busca ensandecida pelo momento de glória sob os holofotes) é ainda mais atual e pertinente hoje do que era na época em que o filme estreou nos cinemas, com a diferença de que atualmente a elevação de artista ao estrelato pressupõe seu esvaziamento artístico, o que de fato é contraditório. Ta situação, que o filme sutilmente critica, nos priva de ver nos palcos de hoje em dia um momento de glória tão sublime quanto o vivido pela personagem durante sua interpretação... Sobre esta sequência, Darren Aronofsky, que bebeu bastante da fonte de Sapatinhos Vermelhos para fazer Cisne Negro, provavelmente diria: "Eles foram perfeitos!" - Ultra Recomendado!
Curiosidade: Os Sapatinhos Vermelhos é um dos filmes favoritos do mestre Martin Scorsese, que foi quem investiu no seu processo de restauração, através de sua fundação, a A World Cinema Foundation. Graças ao trabalho do Scorsese temos acesso hoje à uma obra com tamanha qualidade de som e imagem.
Os Sapatinhos Vermelhos ganhou o Oscar nas categorias de Melhor Direção de Arte e Trilha Sonora, tendo sido indicado também nas de Melhor Filme, Roteiro e Montagem.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.
Brunão meu camarada, acho que me diverti e me interessei mais pelo seu texto do que pelo filme... Esse tipo de filme não combina comigo. Acho que eu não consigo enxergar essa arte que você encherga. Hahahahaha. Mas valeu pela ótima resenha!
ResponderExcluirRapaz......não tinha conhecimento sobre a trama desse filme. Sendo um dos prediletos do mestre......fica obrigatório.
ResponderExcluirValeu a dica.
abs
Scorsese é um homem de bom gosto! O filme é sensacional, lida com o show business como nunca antes foi feito e foca em especial no balé, o que dá muito sentido ao uso de cores fortes.
ResponderExcluirAbraços!
Fiquei apaixonado quando vi esse filme. Extremamente maravilhoso!
ResponderExcluirBruno:
ResponderExcluirAdorei esse brilhante resumo. Mais uma vez você demonstrou carinho, leveza e o compromisso de entregar-se 100% àquilo que faz! Existe muita beleza nas suas resenhas e eu fico muito feliz de ver um filme, resenhado por você. Eu vi "A Malvada" e "Cisne Negro" e de acordo ao que li aqui, concordo plenamente que o Darren Aronofsky bebeu na fonte de "Sapatinhos Vermelhos", para fazer "Cisne Negro"; é quase um plágio, eu diria.., rs rs! Fantástico! Parabéns.., (again)!!
Bruninho,
ResponderExcluirOie!
Excelente resenha sobre os 'bastidores' do show business.
Concordo, com os comentários da Lu, Red Shoes and Black Swan - quase um plágio,rs.
Aspectos que fazem deste filme e muitos da época serem tão deslumbrantes? Talvez a teatralidade dos atores, luz cênica mais marcante, figurinos mais robustos e mais próximos da história.
Adorei o texto.
beijão.
Parabéns pelo texto. Sapatinhos Vermelhos é um dos meus filmes favoritos, tudo nele conjura para a perfeição, que curiosamente procura criticar. Já assistiu Narciso Negro da mesma dupla de diretores? Também é outra maravilha que precisa ser redescoberta. Grande Abraço!
ResponderExcluirnossa, esse eu não vi. beijos, pedrita
ResponderExcluirOlá, José Bruno.
ResponderExcluirEu desconhecia completamente este filme; gosto destes filmes antigos que fizeram escola e não se detêm a apenas repetir fórmulas, como é o caso de muitas das produções atuais.
Abraço.