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domingo, 2 de junho de 2013

Abril Despedaçado

Abril Despedaçado - 2001. Dirigido por Walter Salles. Escrito por Walter Salles, Sérgio Machado, Karim Ainouz, João Moreira Salles e Daniela Thomas, baseado na obra de Ismail Kadare. Direção de Fotografia de Walter Carvalho. Música Original de Ed Côrtes, Antonio Pinto e Beto Villares. Produzido por Arthur Cohn. Bac Films, Dan Valley Film AG, Haut et Court e VideoFilmes / Brasil.


"Em terra de cego, quem tem um olho só, todo mundo acha que é doido...", este aforismo, dito por um dos personagens centrais de Abril Despedaçado (2001), sintetiza bem aquele que é o tema central deste que é o primeiro longa-metragem dirigido por Walter Salles após o enorme sucesso de Central do Brasil (1998). Toda a trama está alicerçada sobre a questão do fatalismo social, que na narrativa se levanta de forma opressiva travestido de costume e tradição. A história contada pelo filme se passa no ano de 1910 e está ambientada no interior do sertão nordestino (no livro do qual o roteiro foi adaptado, a trama está ambientada em uma região rural da Albânia), um lugar castigado pelo clima árido, pela falta de recursos e principalmente pelo endurecimento dos corações das pessoas, que se aniquilam em intermináveis rixas familiares motivadas pelos conflitos de terra e perpetuadas pelo ódio e pelo desejo de vingança, que ambos os lados envolvidos alimentam. No filme, a inércia e a falta de questionamentos acerca dos próprios atos impedem os personagens de se posicionarem de alguma forma contra a realidade que os oprime.  

Apesar de todo o viés regionalista que Abril Despedaçado adquiriu no processo de adaptação e do fato de ele ser um filme de época, sua trama e a mensagem que ela traz consigo são universais e atemporais e isto explica a força e a urgência que a reflexão proposta por ele tem... É oportuno lembrar que a sociedade está em constante transformação, não sei se posso chamar este processo de evolução, no entanto, apontar  a ausência de mudança e de subversão como algo bom é negar todas as possibilidades de aprimoramento que o 'novo' representa. Não há costume, dogma, ou moral que esteja tão consolidado que não possa ser questionado e subvertido. Entretanto, uma parcela da sociedade se apega ao conservadorismo na tentativa de preservar a ordem vigente e o statos quo, de tal modo que seus olhos se fecham para toda e qualquer possibilidade de mudança (o que pode ser visto com clareza nos dias de hoje nos discursos reacionários, que pipocam nas redes sociais quando temas polêmicos são postos em debate). É a este 'fechar de olhos', que se assemelha à uma cegueira autoinduzida, que o personagem se refere na citação reproduzida no início desta resenha


Pacu (Ravi Ramos Lacerda), o autor da citação, é ainda uma criança, porém a clareza de sua visão o distingue de todos que estão à sua volta. Ele estava presente quando o irmão mais velho foi assassinado por um membro de uma família rival; pouco tempo depois, ele testemunhou o desgosto de Tonho (Rodrigo Santoro), o irmão do meio, que se viu obrigado pela tradição a cobrar na mesma moeda a morte do primogênito; estas são experiências dolorosas que o levam a questionar tudo aquilo em que seu pai acredita. Ciente de que está prestes a ver a ruína de sua família, uma vez que o ciclo de mortes parece não ter fim, o garoto tenta  buscar alternativas e agindo de tal modo ele acaba despertando algo de novo no irmão, que também não concorda com os rumos tomados no conflito, mas não tem coragem o suficiente para escolher um outro caminho. O comodismo é o traço de personalidade mais marcante em Tonho, é ela que o impede de enxergar aquilo que Pacu já vê com tanta nitidez.


Através de uma situação relativamente simples, o roteiro constrói uma metáfora genial acerca do comodismo e da inércia dos personagens: Ainda no início do filme, vemos a família, em torno da qual a história gira, trabalhando na produção de rapadura, atividade de onde tira seu sustento. O rústico engenho que usam para moer a cana de açúcar é movido por bois, que caminham em círculo em torno do equipamento fazendo-o girar. Para que não parem e não interrompam o funcionamento da máquina, os animais são castigados com açoites, que os mantém em movimento enquanto a cana é triturada. Mais adiante, uma outra passagem mostra os bois girando ao redor do engenho, porém desta vez, não tem cana sendo moída e ninguém está trabalhando, mas, eles continuam girando porque foram condicionados para tal, o medo que eles sentem já está internalizado, o que torna dispensável o constante uso da força bruta. A limitação imposta pelo julgo, não permite que tenham outra coisa a fazer senão aquilo a que já estão acostumados.


O comportamento daqueles que são vitimados pelos conflitos de terra são similares ao do gado, que sem questionar repete aquilo para o que programado, sem ter ciência da força que tem, que seria capaz de por abaixo toda a estrutura que os aprisiona. Por meio desta brilhante metáfora, o filme retrata ainda o processo de animalização e de aniquilação da individualidade de cada um dos personagens. Como contraponto a tal situação, o roteiro aponta a arte e o conhecimento como meios através dos quais o fatalismo pode ser subvertido, na trama tais aspectos são personificados por um casal de artistas mambembes, que representam o desapego dos antigos costumes e a subversão dos valores arcaicos que sustentam e perpetuam as rixas. Tal como em O Sétimo Selo (1956) de Ingmar Bergman, o circo, que é uma expressão artística que evoca a simplicidade da cultura popular, representa um humanismo capaz de trazer sentido para uma vida vazia de significado e salvar o indivíduo de sua própria mediocridade.



Abril Despedaçado não alcançou o mesmo sucesso de Central do Brasil, o que é de certo modo justificável, uma vez que nele Salles pecou um tanto pelo excesso em alguns aspectos. Alguns pontos da trama são um tanto forçados pela nítida intenção de comover o espectador e este apelo emocional acaba enfraquecendo, em determinadas passagens, o potencial reflexivo que o filme tem. Estes pequenos problemas, no entanto, não tiram dele o seu inegável mérito, ele continua sendo um filme bem acima da média. Apesar de pecar nos pontos ora mencionados, a trama consegue nos fazer refletir sobre a temática que explora e tornar crível o drama dos personagens, sem tirar dele a poética, que se mantém presente durante todo o desenvolvimento da narrativa. As atuações constituem um dos pontos altos do longa; o Rodrigo Santoro está muito bem, não por acaso este foi o filme abriu as postas para sua carreira internacional; Ravi Ramos Lacerda, José Dumont e Rita Assemany também estão ótimos. 


A fotografia, que capta tanto a beleza quanto a pobreza do sertão, e a trilha sonora, intensa e consonante com os mais diversos sentimentos retratadas na história, ajudam a compor a poética bela e ao mesmo tempo trágica do filme. Travelings e enquadramentos sutis e cuidadosos atuam diretamente na composição da narrativa, associando à ela um olhar cheio de inocência e simplicidade, como se a câmera fosse uma extensão do olhar singelo do menino Pacu... Abril Despedaçado pode não ser a obra-prima de Walter Salles, mas independente disso ele continua sendo, ao meu ver, um grandioso motivo de orgulho para o nosso cinema... 


Abril Despedaçado foi indicado ao Globo de Ouro e ao Bafta na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.

Assistam ao filme completo no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

Confiram também aqui no Sublime Irrealidade a crítica de Na Estrada (2012),
também dirigido por Walter Salles.

8 comentários:

  1. Gostei do filme, porém, acho que ele é mais perfeito em termos técnicos do que em narração.

    Concordo plenamente: "orgulho para nosso cinema". O problema é que alguns só dizem que amam o cinema nacional quando é algo muito global, em tons de novela.


    abs

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  2. Gosto de Diários de Motocicleta e preciso rever Central do Brasil. Esse Abril...ainda é inédito para mim.

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  3. Mais uma belissima resenha meu amigo! Vc sabe mesmo falar das coisas.
    Esse filme é realmente muito bonito, desses filmes que a gente assiste e fica dias pensando nele.
    Só acho que no meio do filme falta um pouquinho de ritmo, mas no geral é um lindo filme!

    Um abração e linda semana pra vc!

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  4. Oi Bruno
    Eu não assisti, mas deu vontade com a sua crítica.
    Bjos.

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  5. Realmente um filme belissimo. Gosto muito.

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  6. Que bom ler esse texto sobre esse ótimo filme, aqui.
    Um dos bons filmes brasileiros de um ótimo diretor do momento.

    Abraços

    http://eaicinefilocadevoce.blogspot.com.br/

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  7. Bruninho, tudo bem?
    Não assisti ao Abril Despedaçado; mas assisti, na verdade, uma matéria bem completa sobre ele na TV a Cabo, há um bom tempo, por isso não me recordo a autoria dela, mas, sim, que exaltava a atuação de Rodrigo Santoro (sempre achei ele um excelente ator, e versátil. Concorda comigo? desses ditos "galãs" acho ele o mais talentoso), e também os planos adotados para a filmagem em certas cenas, como essa do balanço.

    De minha parte, novamente, não tenho tão mais a comentar, já que, de fato, não assisti ao filme :)

    Beijão e ótimos dias!

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  8. Oi Bruno,

    Tudo bem? Não assisti ao filme, mas ouvi falar da direção e atuação. Continuo com o meu preconceito par esse tipo de filme, mas vou ver a disponibilidade na locadora para analisar o filme.

    Beijos.

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