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domingo, 14 de agosto de 2022

Linguagem e Revolução em “Duas ou Três Coisas que eu Sei Dela” de Jean-luc Godard


“Os limites da minha linguagem denotam o limite do meu mundo”, disse Wittgenstein em sua primeira obra Tractatus Logico-Philosophicus de 1921. Godard retoma esta reflexão no filme “Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela” (1967), na passagem reproduzida abaixa. Na narração em off, feita pelo próprio Godard, a expansão da consciência é apontada como saída para a limitação imposta pela linguagem. 


Pode-se dizer que o que Godard propõe é uma ruptura com o modelo filosófico proposto pelo Wittgenstein naquela que é conhecida como sua primeira fase (a do Tractatus), e o caminho proposto é o inverso do percorrido pelo filósofo. Se este da um passo além  do paradigma da consciência ao considerar que o limite da linguagem é o limite do mundo do indivíduo, Godard da um passo atrás e conclui o inverso, que o mundo pode ser expandido através da consciência e o caminho para isso seria a subversão da linguagem.


O filme, contudo, não para nas reflexões de cunho ontológico, que encaram a linguagem como mero instrumento de decodificação do mundo, há uma forte crítica política ao capitalismo, à sociedade de consumo e à guerra do Vietnã, temas que podem ser facilmente correlacionados. O capitalismo se fortalece na medida em que impulsiona o consumo enquanto silencia os sistemas dissidentes, a guerra vende produtos, enquanto que outros produtos (como os mass medias) criam a ilusão de que a guerra é necessária e seus absurdos aceitáveis. 


Mas, de que forma as reflexões sobre a linguagem e as críticas políticas se relacionam? Vejamos: A revolução possível (aquela capaz de frear o estágio do capitalismo mostrado no filme) passa pela imaginação de um outro mundo possível, o que, para Godard,só poderia pode ser feito tendo como ponto de partida a subversão da linguagem. Se a linguagem convencional é um mero instrumento limitado pela visão de mundo, a experimentação no campo da linguagem pode revelar outros mundos. 


A metáfora da cidade de Paris, que passava na época por processos de modernização estrutural e por uma expansão tecnológica da industria, remete às teorias estruturalistas, nas imagens que da cidade, que surgem a todo momento na tela, o que se vê é a composição ou revitalização das estruturas sobre as quais está sendo edificado um novo estágio social: Edifícios, vias, pontes, viadutos… todas estas edificações remetem à solidez de uma estrutura social que se encontra ainda em expansão. “Objetos mortos permanecem vivos, pessoas estão frequentemente mortas”, conclui o narrador.


O mundo físico e não sua representação na linguagem é a metáfora porque o fundamento último do modelo de organização social se encontra na própria linguagem. É na linguagem que está a estrutura que precisa ser reconhecida como tal e destruída para abrir caminho para a idealização do novo. Esta seria a revolução possível. Plenamente consciente disso, Godard faz do próprio filme um jogo de metalinguagem: ele aborda a subversão da linguagem como tema ao mesmo tempo em que subverte a linguagem cinematográfica como experimento.


Toda a reflexão, no entanto, não deixa de soar um tanto datada, visto que Godard aparentemente ignora as contribuições do Wittgenstein da segunda fase, que vai muito mais além ao romper com as pressupostos da primeira fase, ao reconhecer o caráter intersubjetivo da linguagem, rompendo, deste modo, em definitivo com o paradigma da consciência. Ao considerar que a linguagem possui caráter intersubjetivo, infere-se que haja um freio social que impede que a linguagem seja desconstruída no âmbito da consciência de um único sujeito (os elementos da linguagem não podem ser simplesmente aquilo que o indivíduo quer que eles sejam). 


A revolução possível, ao contrário do que imaginou Godard, não se efetiva apenas pela ruptura com modelos de linguagem no âmbito da consciência de cada indivíduo. Há toda uma tradição (um chão linguístico) que precisa ser enfrentada coletivamente tendo o reconhecimento da linguagem não apenas como mero instrumento, mas como condição de possibilidade de qualquer compreensão e da própria existência do indivíduo no mundo (como Heidegger bem compreenderia).

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