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domingo, 3 de abril de 2011

Anticristo

Anticristo (Antichrist) - 2009. Dirigido e Escrito por Lars Von Trier. Direção de Fotografia de Anthony Dod Mantle. Música de Kristian Eidnes Andersen. Produzido por Meta Louise Foldager. Zentropa Entertainments / Dinamarca.


Lembro do dia, uma segunda feira, em que cheguei pela manhã na cidade onde trabalho, que tem pouco mais de 30 mil habitantes, pouco depois de descer do ônibus, ao passar em frente a uma locadora, vi que algumas pessoas se aglomeravam no outro lado da rua com uma forte expressão de espanto. O motivo era o cartaz que estava exposto do lado de fora da locadora, era o do filme Anticristo (2009), que mostrava explicitamente um casal em posição sexual sob uma árvore de onde saiam vários braços (mesma foto reproduzida no cartaz acima). O espanto daquelas pessoas não era nem um pouco  de se estranhar, o título do filme associado à foto era um verdaeiro atentado contra os "bons costumes". Qualquer um desinformado, que visse aquela imagem, imaginaria que se tratava de um filme de terror e/ou de de cunho pornográfico., confusão feita até por aguns críticos. Dias depois nas mesmas circunstâncias, um colega que descera do ônibus junto comigo comentou: “a julgar pela capa, o filme deve ser horrível, não deve ter conteúdo nenhum”. Ele aparentou mudar de opinião quando eu disse que se tratava de um filme do mesmo diretor do aclamado Dogville (2003), que ele já tinha visto. Porém na maioria dos casos o curriculum do cineasta não foi suficiente para sustentar a ousadia desta produção. Assistindo ao filme percebe-se que o choque provocado pela imagem do cartaz é pouco, se comparado à intensidade do suspense psicológico e ao choque das situações extremas vividas pelos personagens.

Anticristo é desconfortável, agressivo, angustiante, claustrofóbico e, antes de tudo, grandioso! E como é comum no caso de obras que exigem um mergulho além da superficialidade da imagem representada na tela, este longa totalmente autoral de Lars Von Trieur parece ter sido incompreendido. Logo após sua exibição, na Premier no Festival de Cannes, um jornalista do periódico inglês Daily Mail bradou: “Francamente, acho que é preciso lavar meu cérebro”; para em seguida pedir uma explicação sobre o que tinha acabado de assistir: "Já defendi os filmes de Von Trier antes. Dogville foi odiado, mas defendi seu direito de fazer aquele filme. Mas agora quero que ele explique por que fez isso e o que isso representa". Lars, que afirmou sarcasticamente se considerar o melhor diretor do mundo, se defendeu: "Eu não acho que tenha que justificar nada... Eu trabalho para mim mesmo, não fiz este pequeno filme para você ou para o público, por isso não acho que deva explicar nada a ninguém". Se o jornalista citado tivesse um mínimo de noção, saberia antes de se manifestar, que não se pede para um artista a explicação sobre sua obra.


E Anticristo é uma verdadeira obra de arte, da primeira à última cena e não é atoa que o diretor o considere a melhor obra de sua carreira. Isto pode soar estranho para quem já assistiu ao filme, pois por vezes costumamos esquecer que nem sempre a arte precisa ser agradável aos nossos olhos e aos nossos sentidos. A agressividade do filme, que gerou polêmica e dividiu até mesmo os fãs do cineasta, é uma grande prova de que o cinema de arte ainda pode ser contestador e inteligente. O longa parece ser um verdadeiro mergulho na mente do diretor dinamarques, que o dirigiu em um período no qual lutava contra uma forte depressão. Lars Von Trier chegou a considerar apenas o fato de ter concluído o filme uma grande vitória contra si mesmo. Em alguns momentos, segundo afirma, chegou a pensar que nunca mais conseguiria produzir outro filme. Quem conhece um pouco da excentricidade dele, entende o que ele quer dizer com “vencer a si mesmo”. Lars é o tipo de gênio que se maltrata e se angustia com a própria arte, do qual cada produção leva uma grande quantidade de suor e sangue.


A trama do filme gira apenas em torno de um casal interpretado por Willem Dafoe e Charllote Gainsbourg. Ela não consegue lidar com a culpa que sente pela morte acidental do filho bebê. Ele, tomado por pretensões psiquiátricas, decide cuidar da esposa e começa um tratamento nada convencional para encontrar aquilo que de fato seria a origem do medo, que sustenta nela o trauma pela perda da criança. A busca pelas resposta os leva de volta à uma cabana numa floresta chamada Edém(!), onde ela tinha passado uma temporada junto com filho, numa tentativa de se isolar para concluir um trabalho acadêmico. Naquele lugar solitário e sombrio eles vão mergulhar em suas próprias mentes e descobrir o quão sombria é a verdadeira natureza humana. Ao contrário do que boa parte da crítica vem dizendo, o filme é muito mais que um amontoado de cenas de sexo e tortura física e psicológica. Quem dá a pista para uma possível interpretação é o próprio Lars, que em uma entrevista contou, que não acredita em Deus e que o filme seria uma forma de Lhe passar todo que havia aprendido sobre Ele.


A obra filosófica O Anticristo, de Friedrich Nietzsche, que seria uma das influências indiretas do roteiro do filme, também se fundamenta, na minha opinião, sobre a questão que é central neste conto de Lar Von Trier: A angústia causada pela culpa dos erros cometidos e pela inevitável condição gerada pelo pecado original, que relega o homem a uma natureza má e perversa. Em sua obra Nietzsche propõe a extinção da moral cristã, que de acordo com seu entendimento seria o início do processo de libertação, daquilo que ele enxergava como amarras deterministas. No filme o drama vivido pelos personagens ilustra ao mesmo tempo as consequências da natureza maligna do homem sobre sua própria vida e o processo de libertação, tal como Nietzsche o havia proposto. Seguindo a merma cartilha pela qual o filósofo alemão rezava (me perdoem o trocadilho), o homem tenta mostrar para a sua esposa que ela precisa aprender a conviver com a culpa e que o sofrimento seria inerente à condição humana. Ele recorre à natureza, que em seu estado selvagem é vista como uma extensão da maldade que há no mundo. Em um dos diálogos a personagem de Charllote Gainsbourg diz que a natureza seria a verdadeira igreja de satã.


A história, em alguns momentos, faz referência às mulheres que foram perseguidas pela igreja no passado e que foram queimadas ou torturadas sob a acusação de bruxaria. A trama ainda recorre às tradições pagãs, que associavam a mulher à mesma impureza que emanava do mundo e que estaria presente também nas plantas e nos animais. A personagem do filme carrega o peso da culpa, não só por se considerar responsável pela morte do filho, mas também por pensar que pode, na condição de mulher, ser responsável pelo sofrimento pela propagação dos males que existem em todos os lugares. Também sob o ponto de vista de algumas correntes cristãs, a mulher (na figura de Eva) seria a principal culpada pela perda do paraíso, ela teria sido seduzida pela serpente e seria a responsável pela decisão do homem de provar do fruto proibido, pecado que os levaria à expulsão do Jardim do Édem. Lars inverte a história, ele retrata primeiro o pecado, mostrado em uma sequência perfeita no início do filme, para em seguida guiar o homem e a mulher de volta para o Édem. No filme o sexo e o prazer carnal são associados à contaminação dos personagens, é o ato sexual que motiva a tragédia no início da história e que serve de metáfora para a entrega de ambos às leis cruéis da natureza. O homem e a mulher, em sua decadência moral e psicológica e em suas personificações do bem e do mal, representam bem o estado de espírito do cineasta.



Anticristo é um contundente tratado de Lars Von Trier sobre o pecado e a culpa. A graça que poderia ser vista como uma redenção, tanto para ele, quanto para seus personagens, já foi anteriormente descartada. Em Dogville o realizador desenvolve uma abordagem crítica sobre a forma com que as pessoas, pela hipocrisia e ganancia pessoal, abusam da graça, quando esta lhe estende as mãos. O final surpreendente do filme de 2003 deixa clara a visão do cineasta sobre o perdão, que segundo a filosofia de Nietzche, só os fracos sabiam ofertar. Independente de concordarmos ou não com o ponto de vista defendido no filme, devemos reconhecer que estamos diante de uma das obras mais brilhantes do cinema contemporâneo. A excelente fotografia, que mostra que Von Trier deixou realmente para traz o Dogma 95, e as excelentes atuações de Dafoe e Gainsbourg conferem ao longa o status de clássico, que ao que parece, nasceu póstumo. Se tiver uma oportunidade assista ao menos a primeira sequência, que como já disse é simplesmente perfeita, fotografada em preto e branco, em câmera lenta, ao som da linda música gregoriana Lascia Ch'io Pianga , interpretada por Tuva Semmingsen. Quanto ao restante, creio que pouquíssimos irão apreciar...
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Anticristo, mesmo sendo vaiado pela maioria, ganhou o prêmio de Melhor Atriz (Charllote Gainsbourg) no Festival de Cannes.
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Do diretor Lars Von Trier, recomendo também Dogville (2003) e Dançando no Escuro (2000).

Assista ao trailer de Anticristo no You Tube ! (clique no link)
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7 comentários:

  1. Realmente é um filme para se envolver e se apreciar, não são todos que irão se deixar se envolver por ser um filme polêmico, assustador,pertubador que meche com nossas mentes Um filme que não é pra ser explicado e sim para ser vivido. Adorei o post.

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  2. Parabéns pelo texto, Bruno. Concordo com alguns pontos que você colocou, como o elogio aos atores, a sequencia inicial (uma das melhores que eu já vi no cinema) e quando voce diz que "o restante, poucos irão apreciar". Pois é, eu sou um dos muitos que não apreciou o restante. Não por ter algum tipo de resistência a filmes "loucos", densos, violentos, profundos ou de von Trier. Muito pelo contrário. Mas me apóio no que o próprio diretor disse. Ele faz "filmes para ele mesmo". Ou seja, não fez um filme para mim, fez para ele, que estava cheio de problemas pessoais e teve em Anticristo uma forma de resolver os seus problemas. Parabéns pra ele, que conseguiu.
    De qualquer forma, sua argumentação sobre a referência de Nietzsche me fez enxergar algumas coisas que eu não havia percebido. Tá de parabéns pelo texto.
    abraço!

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    1. Eu admiro esta postura do Lars Von Trier de fazer filmes para si, sem uma preocupação tão pingente com um público, isso aumenta ainda mais o respeito que eu tenho por ele como cineasta... Fico feliz que você tenha gostado da resenha!

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  3. Cara, essa resenha deveria ganhar o prêmio de melhor resenha dos últimos 50 anos entre todos os blogs e críticos e jornais.

    Tu captou esse filme com uma qualidade que ouso em dizer que no máximo 1 ou 2 pessoas chegaram a esse nível de excelência. Vou ver o filme de novo, pois já li essa resenha umas 15 vezes haha.

    Abss

    Jim Carbonera

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