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sábado, 4 de fevereiro de 2012

Precisamos Falar Sobre o Kevin

Precisamos Falar Sobre o Kevin (We Need to Talk About Kevin) - 2011. Dirigido por Lynne Ramsay. Escrito por Lynne Ramsay e Rory Kinnear, baseado na obra de Lionel Shriver. Direção de Fotografia de Seamus McGarvey. Música Original de Jonny Greenwood. Produzido por Jennifer Fox, Luc Roeg e Robert Salerno. BBC Films e UK Film Council / UK | USA. 


Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011), dirigido por Lynne Ramsay, adaptado da obra homônima de Lionel Shriver, é o tipo de filme cuja trama nos induz a uma infinidade de questões filosóficas e sociológicas. No entanto, ele apenas levanta tais questionamentos sem apontar nenhuma resposta e é aí que está parte de sua genialidade. A obra foge de qualquer lugar comum ao abordar temas como a educação infantil, a origem da maldade no indivíduo e o limiar da loucura. No livro, que ainda não li, a autora parte do ponto de vista de uma mãe, cuja vida foi destruída pelos atos violentos do filho, para contar a história, a narrativa se desenvolve através de cartas que a mulher envia para o marido, que sempre esteve ausente, nas correspondências ela relata suas dores e traumas. No filme, a mulher perde a condição de narradora e se torna um dos alvos da câmera que foca sua família de forma não passional e destituída de quaisquer sentimentalismo.

O filme se desenvolve de forma não linear, através de uma montagem sublime, que a princípio parece nos induzir a crer que situações mostradas através de flashbacks podem explicar o desfecho trágico da história, contudo não é tão simples assim.Na trama, Kevin (vivido por Ezra Miller na adolescência e por Jasper Newell e Rock Duer, em períodos distintos da infância) veio ao mundo como fruto de uma gravidez indesejada, desde bem pequeno ele demonstra um comportamento agressivo e arredio, curiosamente a situação se agrava quando ele está perto da mãe, Eva (Tilda Swinton), em diversas cenas ele aparentemente tenta chamar a atenção dela, fazendo desde pequenas bagunças a atos de crueldade. Franklin (John C. Reilly), o pai de Kevin, é na maior parte do tempo negligente e permissivo, para ele o comportamento do filho é normal em uma criança de sua idade. Tudo piora quando nasce Celia (Ashley Gerasimovich), a segunda filha do casal, Kevin não aceita a chegada da irmanzinha, uma vez que ela representa para ele o risco de perder a atenção constante que a mãe lhe devota.


A falta de autoridade de Franklin e incapacidade de Eva de lidar com Kevin sozinha apontam para o desfecho trágico, prenunciado desde o início do filme. Algo irá acontecer e Eva terá toda sua vida destruída, ela perderá a família, o emprego e passará a ser agredida, verbalmente e fisicamente, nas ruas. Já sabemos de tudo isso desde os primeiros minutos do longa, só não nos é revelado o que teria acontecido de tão grave, para deixar Eva no estado em que ela se encontra. Ainda que já soubéssemos de antemão o que iria acontecer isso faria pouca ou nenhuma diferença, uma vez que o que importa no filme não é o que acontece, mas os questionamentos a que ele nos leva em seu desenvolvimento.


A montagem, como eu disse acima, se vale de flashbacks para buscar na infância de Kevin os motivos de seu comportamento violento na adolescência, no entanto tais motivos não ficam claros. Curiosamente, na maioria dos flashbacks é mostrado o relacionamento de Kevin com a mãe e poucas vezes com os demais familiares ou com outras pessoas, a trama também deixa claro que o comportamento dele era bem menos violento com o pai do que com a mãe, isso me leva a concluir que a montagem propositalmente nos induz a enxergar Kevin como um personagem maniqueísta, passamos a vê-lo como alguém naturalemnte ruim (como a mãe o vê), quando na verdade não é bem assim. Quando se percebe que sua "maldade" não lhe é intrínseca, o leque de possíveis respostas ao questionamento central do filme se abre. A pergunta feita é: “Por que? Com qual propósito?”. O que teria levado Kevin aos atos violentos que destruiu a vida de sua mãe? Seria uma má criação? A incapacidade de Eva, ou talvez o distanciamento de Franklin? Ou seria a falta de diálogo entre ambos (conforme sugerido pelo título). Ou seria talvez culpa da sociedade? De fato o roteiro não nos aponta respostas para nenhuma destas perguntas… Talvez seja um conjunto de fatores associados ao psicológico do garoto que vê na mãe uma antagonista e ao mesmo tempo uma platéia para o seu show...


Precisamos falar sobre Tilda Swinton, ela está simplesmente perfeita no papel de Eva. Ela incorpora de forma assustadora as transformações que a personagem experimenta durante tempos distintos da narrativa, indo de um mãe dedicada, á uma mulher frustrada com a maternidade e incapaz de amar o próprio filho, isso para logo em seguida serem ambas imagens despedaçadas, dando lugar à uma figura melancólica, vazia, apenas um corpo sem alma, que parece experimentar uma espécie de morte em vida... Tilda torna os sentimentos e as dores de sua personagem quase palpáveis, a perfeição de sua interpretação está hora na expressão facial, que denota desespero ou raiva, ora no olhar vazio, no qual somos incapazes de identificar qualquer sentimento humano. Precisamos falar também de cada um dos atores que que interpretam Kevin, a atuação deles são também impecáveis (sem contar a aparência física entre eles), o que torna o personagem ainda mais real e repulsivo. Eles dão vida a um dos personagens mais odiáveis do cinema contemporâneo, uma verdadeira façanha, tendo em vista que tal personagem é (durante maior parte do filme) uma criança. Prestem atenção nos olhares trocados em diversos momentos do filme entre Tilda e e cada um dos três atores.


Precisamos falar também sobre a trilha sonora, a fotografia e a montagem, cada um deste aspectos são também dignos de aplausos de pé. [Alguém me explique como um filme deste é esquecido em quase todas as premiações da temporada…] A trilha sonora, composta por Jonny Greenwood, guitarrista do Radiohead, é excelente, ela ajuda a criar a atmofesra opressiva e angustiante, que predomina em todo o longa, e ainda a fazer alguma ligação entre as sequências fragmentadas. A fotografia é belíssima, ela, assim como a trilha, parece colaborar diretamente com a montagem produzindo rimas visuais, como por exemplo o uso da cor vermelha, que ganha destaque em diversas cenas, com o intuito de estabelecer uma relação entre diferentes espaços de tempo da trama... A montagem é caracterizada por tal tipo de rima, que parece costurar cenas de momentos narrativos diferentes, gerando assim uma espécie de mosaico, formado com cacos de lembranças que nos remetem à fragmentação da mente dos personagens centrais.



A direção de Lynne Ramsay é surpreendente, por não permitir que o filme se tornasse apenas mais uma adaptação ancorada no sucesso da obra que lhe originou. Ramsay ao que tudo indica respeitou a história original, porém ciente de que adaptações na trama seriam necessárias para que o filme não pendesse para lugares comuns, como a exploração da comoção do expectador ou apontamento de respostas fáceis para os questionamentos propostos. O roteiro assinado por ela, em colaboração com Rory Kinnear, consegue dar ao filme uma vida própria, tornando-o grandioso, sem que ele para isso dependa do livro que o originou, o resultado final não denota nenhum problema relacionado à transição de linguagem, como frequentemente acontece. Precisamos Falar Sobre o Kevin é arte, é cinema, é o tipo de adaptação que nos faz ficar curiosos e ao mesmo tempo receosos em relação à obra original, afinal, será que ela alcança tamanho nível qualidade? Acho que não precisamos falar mais nada sobre nada… Simplesmente o assista!


Precisamos Falar Sobre o Kevin foi indicado ao Globo de Ouro na categoria de Melhor Atriz (Tilda Swinton). No Bafta, ele está concorrendo nas categorias de Melhor Filme Britânico, Melhor Diretor e Melhor Atriz (Tilda Swinton). O filme ainda foi selecionado para a mostra principal no Festival de Cannes, onde concorreu à Palma de Ouro.

Assistam ao trailer de  Precisamos Falar Sobre o Kevin no You Tube, clique AQUI !


32 comentários:

  1. É um filme super interessante mesmo;
    Parabéns pelo texto; impecável!

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  2. Olá Brunão tudo bem?

    Rapaz, acho que você é um bom crítico e um bom contador de estórias... Queria ver estórias suas contadas assim com tanta habilidade!

    Parabens pelo texto e pela crítica. Parece que o filme realmente é bom!

    Tenha um fim de semana iluminadão!

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    1. Olá André,
      Obrigado pelos elogios, cheguei a escrever alguma coisa sim (deve ter até algo aqui no blog, nos posts mais antigos), mas eu achava tudo muito ruim e por isso acabei desanimando...

      O filme é ótimo e ainda me deixou super curioso para ler o livro...

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  3. Oi Bruno,

    Já tinha ouvido falar sobre o livro, mas não sobre o filme. Penso que é uma trama previsível, pois as relações construídas na infância de alguma forma se desdobram em um futuro incerto, quando não são sadias.

    O post, como sempre, bem escrito, divino, com uma intensidade nos detalhes que nos levam a, se fosse, possível, resolver a vida de Kevin.

    No mais, maravilhosa crítica.

    Beijos.

    Lu

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    1. A trama é sim previsível, afinal já sabemos de antemão que ela não acabará bem e é justamente por isso que o melhor aspecto do filme não é o seu clímax, mas sim o desenvolvimento com as dúvidas que ele nos desperta e as reflexões que ele nos propõe...

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  4. Meu querido José Bruno, eu fiquei simplesmente encantada por essa sua resenha. A vontade de assistir o filme triplicou. Ouvi muitas coisas positivas a respeito e quero vê-lo o mais rápido possível!

    Ah, que seu retorno ao trabalho seja bom.

    bjks JoicySorciere => Blog Umas e outras...

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    1. Precisamos falar sobre você ser obrigada a assistir este filme (eu de novo com estre trocadilho...), ele é ótimo Joicy, é um filme pesado, angustiante, do tipo que te destroça e justamente por isso brilhante!

      Joicy inacreditavelmente os dois primeiros dias desde a minha volta foram ótimos, apesar de eu acreditar que não, eu estava sim mais animado, foram dois de dias de intenso movimento na agência, mas ainda assim bem tranquilos...

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  5. A Tilda merecia concorrer ao Oscar por esse papel. Uma injustiça.

    O Falcão Maltês

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    1. Sem dúvidas a maior injustiça deste edição do Oscar!

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  6. Bruno,
    Sua resenha e comentário sobre o filme deu-me até vontade de vê-lo e olha que poucos filmes eu vejo, pois nao sou muito ligada nisso. Mas atiçou-me a curiosidade.
    Obrigada pela visita e comentário.
    Beijokas doces

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    1. Olá Marly Bastos, seja bem vinda, que bom que voc~e gostou do meu post e que ele te deixou curiosa em relação ao filme... Volte mais vezes!

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  7. Vou conferir essa semana, mas sei que vou gostar muito e seu excelente texto só reforça isso. Uma pena a ausência da indicação ao Oscar da Tilda, né? abraço

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    1. Olá Cristiano, é sempre bom receber sua visita por qui cara! Também tenho certeza que você vai gostar e não tem como não se sentir assombrado pela atuação surreal da Tilda!

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  8. Oi Bruno,

    Belo texto, mostra o filme em todos suas entranhas. Também escrevi sobre ele.
    http://dan-obi-wan-vadher-dan.blogspot.com/2012/01/precisamos-falar-sobre-o-kevin.html, o texto não é tão brilhante quanto o seu, mas dê uma olhadinha.

    Abraços

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    1. Olá Dan, seja bem vindo e me desculpe pela demora em responder, ás vezes fica difícil conciliar as coisas na correria do dia-a-dia, passarei pelo teu blog agora mesmo! Forte abraço!

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  9. Nossa , que história legal que me contaste sobre inspiração amigo. E essa indicação acima, mas uma de suas incriveis indiicações , escreves lindamente, viu?

    obg por passar lá , tem postagem nova. volte sempre , é uma honra , acredite!

    www.spiderwebs.tk

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    1. Eu que me sinto honrado de receber tuas visitas Sabrina e fico imensamente feliz que você tenha gostado do post... Sobre a questão da inspiração, é realmente uma coisa muito louca, ela vem quando menos imaginamos e nas situações das quais menos esperamos...

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    1. Assista Gilberto, passe aqui depois para comentar o que achou!

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  11. Bruno, tudo bem?
    Você torna todos os filmes interessantes! rsrs
    Bem..., na verdade, este não é o tipo de filme que gosto de assistir, mas você deu um embasamento especial que o tornou interessante, mas sem dúvida o trabalho da Tilda é excelente, do que vi.
    Abração e ótima semana!

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    1. Olá Cecília, seu comentário me lembrou algo que um amigo me disse outro dia, ele falou que mesmo quando faço uma crítica negativa de um filme eu consigo despertar nele a curiosidade de assistir... Sempre nas resenhas eu tento descrever aquilo que o filme me proporcionou e não apenas dizer se ele presta ou não, até porquê isso é algo muito relativo... Mas o filme é interessante sim , apesar de ser um filme denso e pesado, do tipo que não agrada facilmente a todos. A Tilda está excelente, sem dúvidas esta foi uma de suas melhores atuações!

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  12. Filme maravilhoso!!!
    Tilda está surreal dentro de um papel e um contexto nada fácil de expressar, já que o valor psicológico é a grande jogada da película...
    Também adoro a trilha sonora, auxilia a criar o "peso" necessário para a alma criar em si as conslusões negadas!

    ;D

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    1. Pois é Karla, concordo plenamente, infelizmente o filme parece ter sido ignorado em boa parte das premiações, o que para mim não é novidade, uma vez que nem sempre tais premiações valorizam de fato a qualidade artística da obra...

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  13. Seja bem vindo Pr. Bessa, passei pelo teu blog e gostei muito do conteúdo, excelente postagens... Fico muito feliz que você tenha gostado do Sublime Irrealidade!

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  14. Vim até aqui através do Telinha Crítica para visitá-lo e, como o (mau) costume da maioria dos blogueiros, ler a última postagem, acabei sendo atraído para este post.
    Estou querendo muito ver este filme e sua resenha, tão bem articulada, detalhada, porém, com todo o cuidado para não "entregar" a trama, apenas induzir o leitor a assistir o filme é brilhante. Meus parabéns!
    Fiquei ainda mais ávido para assisti-lo e também adquirir o livro que, como sempre, supera a sétima arte.
    Consegui também, perceber a atmosfera ao lembrar do som de Greenwood, um dos músicos que mais tenho admiração.
    Bom feriado.

    http://escritoslisergicos.blogspot.com

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    1. Olá Christian, seja bem vindo, fico feliz que tenha gostado da resenha que fiz do filme. eu também estou curioso demais para ler o livro. Sobre a questão de a literatura superar ou não o cinema, eu acho que esta na verdade é uma comparação difícil, uma vez que se trata de expressões artísticas diferentes, o livro traz consigo a vantagem de ter a possibilidade de ser mais profundo e de evocar em nós leitores uma reflexão maior e um mergulho maior na história. Enquanto no filme, o que vemos é a encenação do ponto de vista de outros leitores 9no caso o diretor e roteirista), que na maioria das vezes já vem mastigado... No entanto em algumas situações o filme se torna uma obra, não melhor, pois não da para fazer comparações, mas tão importante quanto o livro que o originou... Cito como exemplo, "As Horas" e "A Insustentável Leveza do Ser"

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  15. Olá J. Bruno. Sua crítica foi bem interessante.
    Queria aproveitar e te fazer uma pergunta a respeito do final do filme.
    Eva pergunta a Kevin sobre o motivo daquela barbárie e ele responde que achava que sabia e agora já não tinha certeza.
    Sei que cada pessoa interpreta de um jeito, mas aquilo não seria um sinal de um pouco de arrependimento ao ver a mãe ali do seu lado apesar de tudo?
    Pelo menos eu tive essa impressão.
    Um abraço!

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    1. Eu não vejo como arrependo, é mais uma espécie de anomia, uma perda do sentido original. Claramente ele comete a barbárie como se promovesse um espetáculo para a mãe, como se tentasse elevar ao limite a repulsa que ela sente por ele, ao fazê-lo ele se esgota, ele elimina suas próprias possibilidades, ele trilha um caminho até chegar a este ponto e quando ele chega, ele percebe que não funcionou, a repulsa de sua mãe não aumentou, ela sequer teve a coragem de deixar a cidade para recomeçar a vida, é então que ele se frustra ao perceber que seu espetáculo foi em vão... Não há, ao meu ver arrependimento, apenas algum tipo de frustração...

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  16. Bruno,

    Acabei de ver o filme e posso te falar que a minha percepção é que Kevin não cometeu o ato apenas para levar o limite de repulsão a mãe, mas pelo sentido único de que ele já nasceu mal, predeterminado a tal fim.

    Não penso que houve falta de diálogo ou amor como mãe, mas total falta de controle sobe o instinto que Kevin nasceu.

    Beijos.

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    1. Também não creio que o comportamento dele seja resultado de fatores externos, concordo que seja mesmo algo relacionado a um instinto selvagem próprio dele. Mas ainda que a maldade dele seja de fato inata, eu ainda penso que tudo que ele fez tenha sido preparado como um espetáculo para a mãe, diversas passagens do filme deixa isso transparecer (inclusive o desfecho do filme)...

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  17. Vi vários blogs falando sobre este filme e o livro, mas preciso dizer.. sua resenha é impecável!
    Fez minha curiosidade em conhecer o filme aumentar ainda mais.
    Abraços!

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