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sábado, 16 de março de 2013

Três Homens em Conflito

Três Homens em Conflito (Il buono, il brutto, il cattivo) - 1966. Dirigido por Sergio Leone. Escrito por Sergio Leone, Luciano Vincenzoni, Furio Scarpelli e Agenore Incrocci. Direção de Fotografia de Tonino Delli Colli. Trilha Sonora Original de Ennio Morricone. Produzido por Alberto Grimaldi. Produzioni Europee Associati (PEA) / Itália | Espanha | Alemanha.


Três Homens em Conflito (1966), obra-prima de Sergio Leone, é um filme irretocável que beira à perfeição. Dizer que ele é um dos melhores westerns já realizados não chega nem perto de fazer jus à importância que ele teve para a sétima arte. Ele transcendeu o gênero que o criou para se tornar algo muito maior, eu ousaria incluí-lo no seleto grupo formado pelas melhores, mais importantes e influentes obras de todos os tempos. Um resultado do perfeccionismo de Leone, que aparenta se preocupar com a composição de cada fotograma, tudo nele parece milimetricamente colocado em seu devido lugar: o jogo de iluminação, a composição da mise-en-scène, a direção de arte, a escolha dos enquadramentos... Cada elemento da linguagem cinematográfica é usado com a sutileza de uma pincelada em um quadro que se pinta e com a precisão de um instrumento musical em uma orquestra.

Este clássico absoluto do western é a última parte da Trilogia dos Dólares (ou Trilogia do Homem sem Nome, como prefirirem), que rendera também Por Um Punhado de Dólares (1964) e Por Uns Dólares a Mais (1965). Esta trinca de películas deu vida nova ao gênero, que parecia estar caindo no ostracismo nos Estados Unidos, deu notoriedade e reconhecimento para o Sergio Leone e ainda revelou um jovem, até então desconhecido, chamado Clint Eastwood, cujo personagem, o lendário homem sem nome, se tornaria um ícone, um símbolo de todo um gênero e de uma época de desconstrução das identidades, como foram os anos 60. O surgimento do mito, no entanto, não se deu por acaso, Leone tinha plena ciência do que estava fazendo, ele estava disposto a criar uma lenda e de fato o conseguiu.


Tudo no filme aponta para a figura icônica do pistoleiro interpretado pelo Eastwood, chamado no filme apenas de 'Blondie' (Loirinho na tradução), ele aparenta não ter uma história antecedente aos fatos narrados, não sabemos qual é sua motivação e tão pouco se ele é um bandido ou um herói, a alcunha de 'bom' que o título do filme associa a ele é ambígua, uma vez que é difícil identificar bondade ou qualquer outro sentimento em sua conduta. Solitário convícto, ele não tenta criar relacionamentos nem estabelecer vínculos... Eli Wallach, que está excelente no filme, dá vida ao controverso Tuco, o 'feio', personagem que funciona como um contraponto dramático em relação ao protagonista, diferente deste, Tuco é inconstante, precipitado e seus trejeitos dão a ele uma imagem de ingênuo e atrapalhado, o que o torna um personagem de certa forma cativante, mas não representativo o suficiente para se tornar um simbolo. 


O personagem de Eastwood, por sua vez, é construído para tal, ele é uma personificação da virilidade, da constância e de um instinto frio e calculista. A relativa falta de profundidade que pode ser notada em sua composição é intencional, na verdade eu atribuo a ela a facilidade com que assimilamos aquilo que o ele representa na trama. Acredito que ele possuísse um nível maior de complexidade em sua criação, isso poderia torná-lo controverso, dúbio e sendo assim mais difícil de ser assimilado. Ele, apesar de ser misterioso, não deixa dúvidas quanto ao que de fato é a sua natureza. Ele é tão somente aquilo que faz, ou melhor, aquilo que nós expectadores vemos ele fazer, toda sua composição se resume a isso e por ser de tal forma, podemos entender cada passagem na qual ele aparece como uma parte de um processo de afirmação dos signos, dos quais ele é composto.


Lee Van Cleef dá vida ao terceiro pistoleiro, ao qual o título se refere como o 'mal' (ou 'o bruto', no original), ele é o típico vilão, cuja função é estabelecer o conflito dramático e uma oposição à altura para o protagonista, sua construção é similar à do herói, tal como este, ele é tão somente aquilo que vemos na tela, ele também não tem história e sua motivações também não são claras; sabemos que ele é ganancioso e covarde o suficiente para fazer qualquer coisa para atingir seu objetivo e isso é o que basta. Porém, diferente do que acontece com o 'bom', sua figura não é exaltada pelos enquadramentos e demais elementos cinematográficos, o que se sobressai de sua imagem é apenas a ameaça que ele representa para os outros dois personagens. Ele seria apenas mais um suporte para a construção da identidade icônica do herói.


Na trama, que se passa durante a guerra civil americana, os personagens descobrem a existência de uma quantia de duzentos mil dólares que foram enterrados em um cemitério após um roubo, Tuco sabe em qual cemitério o dinheiro fora escondido, mas apenas o 'Loirinho', seu antigo comparsa, sabe sob qual túmulo a quantia fora enterrada. Lee Van Cleef, o primeiro dos três a descobrir a existência deste dinheiro, arranca as informações que Tuco guardava consigo e parte também rumo ao cemitério. Ao acompanhar a trajetória dos três pistoleiros, o filme retrata a guerra civil americana e seus horrores como pano de fundo. Apesar de se associarem a um lado ou a outro em dados momentos, os personagens não se envolvem na guerra por questões ideológicas, eles apenas tentam tirar proveito dela visando seus interesses pessoais.


Quem ensaiar interpretações mais profundas, perceberá que os três personagens são arquétipos de nossa própria sociedade, pode parecer uma análise um tanto exagerada, mas vejo no antagonismo entre o 'bom'  (que nem sempre é bom) e o 'mal' (que não é tão mal, se comparado aos outros dois), uma metáfora para o embate ideológico entre socialismo e capitalismo, tão em voga na época em que o filme foi produzido. Seguindo esta linha de pensamento, o 'feio' seria a personificação do povo, que flerta ora com um, ora com outro, em busca de objetivos, que aparentemente nunca serão alcançados. Não por acaso, apesar de não ser o herói da história, o personagem de Eli Wallach é aquele com o qual mais facilmente podemos nos identificar, afinal de contas ele é o único cuja composição vai além de meras representações, ele tem família, um passado e sua motivação principal é transcender sua própria condição (o que ele acredita que acontecerá quando finalmente for rico)...


Ousadas ou não, Três Homens em Conflito permite inúmeras outras interpretações acerca de sua trama e isso depende exclusivamente da forma com que cada espectador decodifica cada um de seus elementos. Mas, ainda que ele seja visto como mera diversão, ele continuará sendo a obra-prima que é, pois ele também funciona como um ótimo entretenimento. Sergio Leone com a ajuda do lendário maestro Ennio Morricone (um outro monstro sagrado) consegue emprestar para cada sequência uma aura, que a torna sublime e capaz de despertar em cada cinéfilo as mais diversas sensações, que vão da apreensão diante de um duelo de pistoleiros à contemplação das lacações capturadas através de belíssimas tomadas abertas. A trilha sonora do filme é uma preciosidade à parte (o tema principal, que leva o seu nome, é por si só um clássico), ela é usada a favor da construção do mito já citado e ainda para pontuar emoções e sensações experimentadas pelos personagens, como na passagem memorável em que o Tuco corre deslumbrado pelo cemitério onde o dinheiro estaria escondido.


Para quem já é fã de westerns Três Homens em Conflito é um deleite sem igual, nele estão praticamente todos os elementos que se espera encontrar em um filme do gênero. Já para aqueles que não curtem o estilo, o longa de Leone continua sendo obrigatório, pois o que ele nos oferece é, no mínimo, uma verdadeira aula de cinema. Ultra-recomendado!


Assista ao trailer de Três Homens em Conflito no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

8 comentários:

  1. Parabéns! Texto não menos que ótimo. Concordo com tua consideração sobre Três Homens em Conflito ser um dos filmes mais importantes do cinema. Sergio Leone demonstra aqui o quanto seu trabalho era de artesão, lapidando cada nuance desse filme maravilhoso. Só de lembrar da cena final me arrepio.

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  2. Olá!
    Bruno
    Tudo bem?
    Sensacional o seu texto.Você foi muito feliz ao relatar,dentre todas interpretações, que os três personagens são arquétipos de nossa própria sociedade , o embate ideológico entre socialismo e capitalismo, e que o 'feio' seria a personificação do povo, que flerta ora com um, ora com outro...era a minha impressão desse filme que mudou para sempre o futuro do gênero. Outra,foi que na busca por aquele tesouro enterrado, estes três homens se aproximam e se afastam sem nunca estabelecer qualquer contato afetivo, mesmo parecendo experimentar uma interdependência absoluta.
    bem... não assisti em 1966, assisti bem depois.
    São outros tempos,mas , lembro que, eu me pegava "torcendo" para o "Mau" ,Lee Van Cleef. E tenho ainda no meu play essa música do duelo final.
    ih...amigo, nem se preocupa com suas visitas...eu estou mais na linha do "retribuidor " de comments, infelizmente.
    Bom domingo
    Abraços

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  3. Parabéns pelo texto......só discordo quando diz: que beira a perfeição. Acho perfeito.

    abraços

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  4. Olá Bruno, excelente texto. Sua relação entre socialismo e capitalismo é muito verdadeira e brilhante.

    Sobre a última "passagem" do filme, no qual Tuco procura o túmulo sob a visão de Eastwood, a trilha de Morricone The Ecstasy of Gold é utilizada pela banda de Heavy Metal Metallica na abertura de seus shows. Tive a honra de assisti-los no Rock in Rio de 2011, a abertura no mega telão foi vista por cem mil pessoas, emocionei-me com a cena de Tuco procurando por entre os túmulos e o som de Morricone ecoando pelo espaço. É de arrepiar e sem dúvida inesquecível!

    Abraço!

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  5. É impossível saber qual dos filmes de Leone é o melhor: Três homens em conflito ou Era uma vez no Oeste. Gostaria muito que a ideia inicial tivesse dado certo, de ter novamente o trio de Três homens em conflito no início do outro filme. Com certeza, um filme inesquecível e passível de diversas interpretações.
    Abraços!

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  6. Cara, como muitos cinéfilos, adoro este filme. Um clássico arrebatador como qualquer outra obra de Leone. Um dos maiores cineastas de todos os tempos. Cada frame, enquadramento, casado com a trilha de Morricone, é um deleite e concordo com você que seja uma verdadeira aula de cinema e Tarantino que o diga!

    "O Bom, o Mal e o Feio" (prefiro chamá-lo assim) sem dúvida é sensacional e você se expressou muito bem quanto a isso, da trilogia dos dólares é o ápice! Porém, vejo que o maior faroeste deste sub-gênero seja "Era Uma Vez No Oeste" e certamente, Leone chega no ápice dos ápices em seu último filme, "Era Uma Vez Na América" (imagino a miséria que ele iria fazer se tivesse tempo de dirigir o filme sobre o cerco em Leningrado).

    Não sei se entendi essa parte de seu texto: "Porém, diferente do que acontece com o 'bom', sua figura não é exaltada pelos enquadramentos e demais elementos cinematográficos, o que se sobressai de sua imagem é apenas a ameaça que ele representa para os outros dois personagens." Sei não cara, pra mim, Leone evidencia os três e cada um tem seu espaço e soberania em cena, até mesmo a entrada de cada um acontece com congelamento e titulagens. O próprio Eli Wallach tem inúmeros closes, sobretudo na sensacional cena do duelo final que me arrepia inteiro! Não sei se sua ameaça "distante" é o que você quis dizer.

    Concordo que existe algo de ambíguo em Eastwood, o que o torna mais enigmático e icônico.

    Emfim, sou fã deste filme!

    Abração!

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    1. Acho pertinente sua observação Rodrigo, concordo que os três personagens são alvos dos closes e demais enquadramentos, no entanto, há uma sutil diferença na forma com que cada um deles é retratado, para o 'bom', é resguardada a imagem do herói, é para ele que a música tema toca e há de fato uma exaltação da sua imagem, enquanto que com o 'mal' acontece diferente, ele não é retratado como herói, todos os momentos nos quais ele é enquadrado em closes sugerem o tom de ameaça, de perigo (preste atenção no efeito dialético da montagem) e não a glorificação...

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  7. Olá, José Bruno.
    Estes filmes de faroeste dos anos 50 e 60 eu lembro de ter visto quando era criança na tv e depois nunca mais assisti (não sei porque não passam estes clássicos novamente) e depois desta excelente análise, vou assisti-lo com toda a atenção que ele merece.
    Feliz aniversário, José Bruno, felicidades e tudo de bom pra ti, que mereces.
    Abraço.

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