Pi - 1998. Dirigido por Darren Aronofsky. Escrito por Darren Aronofsky, Sean Gullette e Eric Watson. Direção de Fotografia de Matthew Libatique. Música Original de Clint Mansell. Produzido por Eric Watson. Protozoa Pictures / EUA.
“9:13. Anotação pessoal. Quando eu era criança, minha mãe disse para não olhar para o sol. Mas quando eu tinha seis anos, olhei. Os médicos não sabiam se eu voltaria a enxergar. Fiquei apavorado, sozinho naquela escuridão. Devagar, a luz do dia penetrou através das ataduras e consegui ver, mas algo mudara dentro de mim, naquele dia tive minha primeira dor de cabeça...”
Pi (1998) se inicia com a narração em off do texto acima, feita por Maximillian Cohen (Sean Gullette), o personagem central do filme, ele é um gênio da computação e da matemática que vive recluso da sociedade e imerso em suas pesquisas e experimentos. Ele dificilmente sai de seu minúsculo apartamento e raramente se relaciona com outras pessoas, em alguns momentos ele até tenta ser gentil com seus vizinhos, mas sem muito sucesso, sua compulsão pelo trabalho o torna paranoico e arredio e a pressão psicológica só faz aumentar a intensidade de suas constantes dores de cabeça.
Neste filme, seu longa de estreia, Darren Aronofsky explora a ideia de que é realmente tênue a linha que separa a genialidade da loucura. Esta, que talvez seja a mais autoral de suas obras, tem sua trama construída sobre a obsessão, temática que ele trabalharia em quase todos os seus filmes. Max Cohen trilha o mesmo caminho que seria percorrido pelos personagens centrais de Réquiem para um Sonho (2000), de O Lutador (2008) e de Cisne Negro (2010), sua compulsão o leva a um desempenho sobre-humano, mas também o conduz à autodegradação. Como uma doença, a ideia fixa que ele tem o contamina e o destrói pouco a pouco. Mesmo tendo exemplos à sua volta, ele não consegue aceitar a ideia de que seu trabalho o consumirá e se mantém em um ritmo visceral, sustentado pelo uso descontrolado de remédios e pelo consumo de drogas.
Quando escrevi a resenha crítica de Cisne Negro cheguei a tecer um paralelo entre a sua história e a do conto O Artista da Fome de Franz Kafka, pois ambos abordam de forma semelhante a angústia de indivíduos que se martirizam em nome de sua expressão artística. Não sei até que ponto a obra do escritor checo serviu de referência para Aronofsky, mas a verdade é que tal inflência, tenha sido ela direta ou indireta, está nitidamente presente também em Pi. Tal como Kafka, o cineasta construiu em suas produções um verdadeiro tratado sobre culpa, sofrimento e expiação, o que diferencia suas respectivas abordagens é apenas a percepção de cada um sobre a questão da culpa. Se em Kafka, tal sentimento está intrínseco nos personagens determinando suas atitudes, em Aronofsky ele não está tão explícito, funcionando mais como um elemento catártico, cujo o alvo somos nós expectadores e não os personagens.
Diferente de Kafka, para quem a simples existência e a culpa eram indissociáveis, o cineasta parece acreditar que o “pecado” está em ir além de suas próprias forças, em extrapolar seus limites em busca de um desempenho transcendente. Não é exagero dizer que os filmes de Darren Aronofsky são de certo modo moralizantes, de alguma forma eles estão nos dizendo: “cuidado, não enveredem por estes caminhos, ou também terão de pagar o mesmo preço”. Nos filmes do diretor, edição, fotografia e trilha sonora colaboram de uma forma incrível para que nós espectadores sejamos inseridos no drama e na realidade experimentada pelos personagens. Astuto, Aronofsky utiliza diversos artifícios para a construção da situação trágica que culmina com a catarse. Em Pi os mais evidentes destes artifícios são a edição e a fotografia, a primeira confere ao filme um ritmo rápido, onde a noção de tempo e realidade são postas em cheque, a segunda busca referência no Expressionismo Alemão para construir um clima angustiante e opressivo.
"12:45. Reitero minhas suposições: 1 - A matemática é a linguagem da natureza. 2 - Tudo pode ser representado e compreendido através de números. 3 - Ao fazer gráficos de números de qualquer sistema, surgem padrões. Portanto há padrões em tudo na natureza. Evidências: Ciclo das epidemias, o aumento e a diminuição da população de caribus, os ciclos das manchas solares, a cheia e a baixa do Nilo... E a Bolsa de Valores? O Universo de números que representa a economia global, milhões de pessoas trabalhando, bilhões de mentes, uma vasta rede pulsante e viva, um organismo, um organismo natural. Minha hipótese: Na Bolsa há um padrão!"
Na história, Max está obcecado com a ideia de encontrar um padrão numérico que explique a criação, natureza e tudo o mais que existe, o número pi seria a chave deste segredo. Na matemática o Pi é uma proporção numérica originada da relação entre as grandezas do perímetro de uma circunferência e seu diâmetro e equivale a aproximadamente 3,14. A progressão decimal do número se estende até o infinito, sem que já tenha sido observado nela nenhum tipo de padrão de repetição. É este padrão que Max tenta incansavelmente descobrir, para tal ele usa um super computador e uma teia de circuitos capazes de processar cálculos astronômicos.
A pesquisa de Max acaba despertando o interesse de gente muito poderosa e o coloca em perigo. Capangas armados de Wall Street começam a persegui-lo em todos os lugares para onde ele vai, eles lhe oferecem incentivos para trabalhar em parceria com eles, mas ele se recusa a se desviar de seu foco principal. Membros de uma corrente mística do judaísmo também passam a assediá-lo, eles acreditam que o padrão numérico que ele está prestes a descobrir seria uma espécie de tradução da linguagem divina, que se manifesta na criação do universo e nas escrituras sagradas. Um dos judeus, que se torna amigo de Max, o convence que cada sequência numérica representaria uma palavra na Torá, citando exemplos curiosos. O padrão buscado no Pi seria então a revelação do segredo e da natureza divina, que de alguma forma Deus queria revelar ao seu povo escolhido. Com tanta gente em seu encalço, Max se torna cada vez mais perturbado pela sua fixação. A realidade então se torna cada vez mais confusa, tanto para ele quanto para nós expectadores e surgem então os questionamentos acerca da veracidade de tudo que ele vivencia, no entanto são apenas perguntas que não necessariamente serão respondidas...
O final aberto, característico dos filmes do diretor, associado à complexidade das questões levantadas e à estética simplicista do filme pode afastar e causar reações negativas no público médio, que não está acostumado à fragmentação e à dualidade deste tipo de produção. Mas quem valoriza obras instigantes e avessas aos moldes do mainstrean irá se deleitar com este filme. Pi foi uma das melhores estreias de um diretor na década de 90, ele foi o prenúncio do surgimento de uma das maiores mentes do cinema americano contemporâneo. Aronofsky conseguiu realizar a façanha de se inserir no mercado cinematográfico sem precisar se enquadrar nos padrões pré-estabelecidos pela indústria de Hollywood, o cunho autoral de suas obras é a prova mais concreta desta afirmação. Ao assistir Pi preste atenção nos enquadramentos e em algumas sequencias que parecem se repetir em outros dos filmes do diretor (como o caso de uma cena em um metrô que seria recriada em Cisne Negro). Pode não ser fácil encontrar o filme em DVD, portanto se você tiver a chance de assisti-lo não a desperdice! Ultra recomendado!
Conforme divulgado em meados deste ano, Darren Aronofsky está empenhado em realizar um de seus antigos projetos, rodar um épico sobre a história bíblica do patriarca Noé. Conhecendo o estilo do diretor, pode-se esperar que esta seja uma produção no mínimo "não convencional"...
Não deixe de conferir também aqui no Sublime Irrealidade,
Eu assisti este filme sem pegar qualquer sinopse ou crítica... Não imaginava o que estava me esperando... Amo a fotografia! Adoro o ritmo da direção! É confuso num bom sentido.
ResponderExcluir;D
Otimo texto! Pi é um filme contudente mesmo, que tem até umas historia de bastidores. Aronofsky tinha ganho 10 mil em um concurso na universidade e usou para fazer Pi, mas o dinheiro não foi suficiente e no meio do projeto ele reuniu sua familia e disse q quem investisse algum dinheiro no filme receberia o q colocou em dobro. O filme teve uma bilheteria razoavel e rendeu um bom negocio para os familiares. Alem de alguns deles participarem como atores, o pai do protagonista senão me engano é tio de Aronofsky, o unico ator profissional é Sean Gullete. Essa historia do Noe será q rende? Só vendo. Abração!
ResponderExcluirLembro da primeira vez que vi esse filme, ainda no cinema... Muito interessante... Aronofsky chegou dizendo que veio para ficar.
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Para mim que faço direção é importante este tipo de filme, que até o presente momento nunca me foi indicado, parabens pela sinopse bem feita e pela comparação analitica não subjetiva e muito bem colocada no texto !
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