8 ½ - 1963. Dirigido por Federico Fellini. Escrito por Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Federico Fellini e Brunello Rondi. Direção de Fotografia de Gianni Di Venanzo. Música Original de Nino Rota. Produzido por Angelo Rizzoli. Cineriz - Francinex / Itália|França.
Tecer qualquer comentário sobre uma das obras mais reconhecidas e revolucionárias da história do cinema é uma tarefa árdua e arriscada. Árdua, porque para se entender um clássico de tamanha importância é necessária uma boa compreensão do contexto em que ele foi produzido e de como ele se situa na história do cinema e na filmografia de seu autor. Arriscada, pois ao ensaiar qualquer análise sobre o filme, pode-se facilmente se perder em repetições do que já foi dito sobre ele, ou simplesmente produzir um artigo reducionista, resultado da falta de compreensão de sua complexidade. 8 ½ (1963) de Fellini é um dos clássicos mais elogiados e reverenciados, tanto pela crítica, quanto por cineastas e cinéfilos. O filme marca uma fase de antítese estética e ideológica na carreira do cineasta italiano.
Quando começou a filmar 8 ½, Fellini já tinha uma carreira consolidada, ele já tinha ganho prêmios importantes e já era reconhecido na Itália e fora dela pelo seu trabalho de vanguarda. Ao se tornar um nome conhecido no circuíto cinematográfico, ele se tornara também um alvo da cobiça de produtores e dos magnatas do meio. Sobreveio então sobre ele as pressões multilaterais para se render ao cinema comercial, o que o levaria a uma das maiores crises criativas de sua carreira. No entanto, a crise, que poderia ter levado Fellini a se sucumbir diante de tantas pressões, o conduziria àquela que eu acredito que seja a maior de suas experiências estéticas. Ele transformou a falta de criatividade em uma obra inigualável, que reconheço como uma das mais fortes afirmações do cinema como uma arte própria, que se vale de elementos de outras expressões, porém com uma linguagem inovadora, complexa e revolucionária.
Fellini recorreu à metalinguagem ao fazer um filme de cunho autobiográfico e ao levar para as telas um pouco da vazio criativo que estava vivendo. Em 8 ½, Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) é uma espécie de alter ego do diretor, ele é um cineasta que também atravessa um angustiante período de antítese. Guido é a personificação do artista rebelde, detentor de ideias controversas e desconexas, que está prestes a ser domado pela indústria cultural. Ele é atormentado pelos traumas de sua infância e pelos relacionamentos conturbados, que matem com as mulheres à sua volta. O tormento psicológico se confunde com o processo de criação, levando-o a um içar de velas sem bússola, numa viagem estética rumo ao desconhecido. Na trama, para buscar inspiração e tranquilidade, Guido se reclusa, junto com sua equipe, em uma instância hidrotermal. Neste espaço de beleza mórbida e aparente calmaria eles começam a edificação de um estúdio com locações megalomaníacas e tentam dar continuidade à pré-produção e aos testes e filmagens.
Os produtores, jornalistas e profissionais, que se amontoam como abutres ao seu redor, representam, em oposição a Guido, a coação, a regulação e por fim a castração de seu ato criativo e as mulheres com quem ele se relaciona personificam o conceito de “anima”, que segundo as teorias da psicologia analítica, propostas por Carl Jung, seria a expressão de uma personalidade feminina no subconsciente masculino. Segundo o filósofo, a anima surgiria nos sonhos como uma mulher desconhecida, e a relação do sonhador com esta “figura” indicaria como está o relacionamento dele com o seu oposto complementar (gênese da antítese). De fato, 8 ½ foi claramente influenciado por conceitos da psicologia, o que não é uma novidade em se tratando de uma produção fruto do pensamento intelectual dos anos 60, o diretor recorre a tais teorias para tentar se compreender e assim encontrar uma síntese que norteie os rumos de sua trajetória.
À medida em que mergulhamos no subconsciente e nos relacionamentos de Guido, percebemos que o seu principal obstáculo não é a falta de criatividade, nem a censura velada imposta pelos seus financiadores, o que lhe atormenta é a sua alienação diante de sua própria obra. Guido não consegue mais se encontrar em seus filmes e mesmo ao tentar fazer um filme autobiográfico, ele se perde e não consegue se reconhecer nem em seu próprio alter ego. O passado de Guido e sua relação com as mulheres, que como eu disse seriam a origem de seus conflitos psicológicos, surgem a todo instante no filme em flashbacks e devaneios oníricos, que se misturam caoticamente com o simulacro da realidade representada. Não é tão simples definir em 8 ½ o que é sonho e o que seria de fato real, algumas sequências que beiram ao absurdo Kafkiano são misturadas e intercaladas a outras onde o que se vê é apenas a banalidade.
Um paralelo pode ser traçado entre 8 ½ e Amarcord (1973), outro clássico absoluto de Fellini. Se 8 ½ é a antítese, Amarcord seria então a síntese. No primeiro, Fellini está em conflito com o seu passado, consigo mesmo e com o cinema como indústria. Porém, todos os bloqueios e limitações são transpostos e em Amarcord o cineasta faz as pazes com as suas lembranças. As memórias que lhe traziam tormento, insurgem então com um renovado vigor criativo, mantendo o onirismo, mas substituindo os traumas e o rancor pela melancolia e pela saudade. 8 ½ se encerra com um final emblemático que alegoriza a busca de Fellini pela simplicidade que perdera e a mudança radical que se iniciara em sua trajetória artística. Ficando por fim a sentença de que "destruir é melhor do que criar, quando não se diz o essencial".
Marcello Mastroianni provou em 8 ½, mais uma vez, que era mais, muito mais, que um galã. Numa atuação espetacular ele deu humanidade e credibilidade ao seu personagem, tornando possível o surgimento de uma grande empatia do público em relação a ele, apesar de suas falhas de caráter. O compositor Nino Rota, que foi parceiro de Fellini em alguns de seus maiores clássicos, mergulha junto com o cineasta em seu ousado experimentalismo, produzindo assim uma das trilhas mais fantásticas da história do cinema. Boa parte das músicas são executada em cena, dando ao filme um ritmo tenso e ainda mais frenético. Vale destacar também os enquadramentos audaciosos, as técnicas de filmagens e a excelente fotografia do filme. 8 ½ é um filme único, uma verdadeira obra de arte que influenciou e continuará influenciando os rumos da sétima arte durante muito, muito tempo. Ultra recomendado!!!
8 ½ ganhou os Oscars de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Figurino - Preto e Branco, tendo sido indicado também nas categorias de Melhor Diretor, Roteiro Original e Direção de Arte - Preto e Branco.
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Tem uma TAG p/vc em meu blog;
ResponderExcluirQuando puder passa lá e participa!
P.s: não tem pressa! bjos :)
Adorei a crítica!
ResponderExcluirFellini é sempre o mestre , né?
ResponderExcluirbjs
Legendei o filme 8 1/2 completo. Vejam aqui:
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=Q4lItJYeKbo