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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

As Aventuras de Pi

As Aventuras de Pi (Life of Pi) - 2012. Dirigido por Ang Lee. Escrito por David Magee, baseado na obra de Yann Martel, que por sua vez teve como argumento o livro Max e os Felinos, do brasileiro Moacyr Scliar (não creditado). Trilha sonora original composta por Michael Brook. Direção de Fotografia de Andrew Dunn. Produzido por Ang Lee, Gil Netter e David Womark. Fox 2000 Pictures, Haishang Films e Rhythm and Hues / USA | Taiwan.


E se a fé for apenas uma ilusão, uma abstração capaz de dar algum sentido para nossas vidas e de tornar suportável uma existência cruel marcada por dores e perdas? - Este questionamento permanece em aberto no final de As Aventuras de Pi (2012), filme dirigido pelo taiwanês Ang Lee. Através de uma narrativa que flerta o tempo todo com o fantástico, o longa toca em questões seminais da humanidade, como a busca pelo contato com o divino e por respostas que expliquem o porquê do sofrimento que há no mundo. Sem se perder no panfletarismo religioso, nem na crítica à irracionalidade de algumas práticas, o roteiro ensaia uma interessante abordagem sobre a natureza da fé, uma fé que nasce não da interação com um deus, mas de uma manifestação humana, de um dom criativo que cada um carrega consigo, fé à qual Pi (Suraj Sharma), o personagem central do filme, recorre quando já não tem mais em quê se apegar. Este poderoso sentimento nasce no momento em que ele se vê obrigado a confrontar os seus próprios medos e as dores indissociáveis da existência, ameaças estas que são representadas de forma metafórica pelos animais, com os quais ele acabou tendo que conviver em um bote salva-vidas após um naufrágio. 

Pi, nascido Piscine Molitor Patel em homenagem ao 'monitor' de uma piscina francesa, era o caçula de dois irmãos, seu pai era o administrador de um zoológico em Pondicherry na India e ele cresceu em meio a animais de diversas espécies. Movido pela curiosidade típica da meninice, ele passa a buscar respostas para questionamentos acerca de sua própria vida e isso acaba o colocando em contato com as três maiores religiões do mundo atual. Seu primeiro flerte foi com o induísmo, que ele herdou da mãe, que mantinha um vínculo com a crença como forma de preservar a identidade legada por seus ancestrais, depois, através do contato com um padre, ele descobriu o cristianismo e ficou fascinado com o que lhe foi contado sobre Deus ter dado seu filho para morrer pelos pecados do mundo, por fim, ele conheceu o Islamismo, neste último caso, sua curiosidade foi despertada pelo som das palavras pronunciadas em árabe, ele acreditava que a sonoridade desta língua, que ele pouco conhecia, poderia colocá-lo mais próximo de Deus. Por mais estranho que isso possa parecer e por mais conflitantes que as crenças de cada uma dessas religiões sejam entre si, Pi conseguiu achar algum tipo de equilíbrio entre elas, o que permitiu que ele, ao seu modo, se mantivesse fiel aos ensinamentos das três.


Em uma das passagens, presente ainda no primeiro ato do filme, o pai de Pi, que é racionalista e vê com maus olhos a religiosidade do filho, o coloca diante de uma situação que abala sua fé, ele lhe obriga a ver um tigre estraçalhando um carneiro, isto para lhe alertar sobre os riscos de chegar perto da jaula do felino. Pela primeira vez, Pi, que ainda era um menino, se vê diante da dor e da injustiça que estão presentes no mundo. Ter presenciado aquela cena o deixou chocado e o levou a questionar a veracidade daquilo tudo em que até então acreditava. O tempo passa, Pi agora já é um jovem que está descobrindo o amor ao lado de uma bela dançarina, mas este romance dura relativamente pouco, pois as más condições financeiras fazem com que o seu pai decida deixar a Índia e mudar com toda a família para o Canadá, onde tem uma boa oferta de emprego. O patriarca decide fechar o zoológico e levar os animais de navio para serem vendidos no país para onde estão indo. 


Um desastre inexplicado faz com que o navio cargueiro onde viajavam naufrague naquela que é a parte mais funda do Pacífico, todos perecem, menos Pi, que sobrevive em um bote salva-vidas junto com uma zebra, um chimpanzé, uma hiena e um tigre, o mesmo que ele vira devorar o carneiro anos antes. Em pouco tempo os animais também morrem, devorados uns pelos outros, e sobram apenas o garoto e o tigre faminto, cujo nome é Richard Parker, devido à uma confusão feita pelos frequentadores do zoológico com o nome do homem que fora seu antigo dono. Perdido no mar à deriva, Pi sobrevive com os suprimentos guardados no interior da pequena embarcação, o maior perigo que ele precisa enfrentar não é a fúria do mar, os tubarões que estão sempre à espreita, ou a fome, mas sim  a presença do tigre, que ele teme mais do que qualquer outra coisa. Com o tempo, o jovem descobre que a presença do animal é o que o mantém vivo e desta percepção surge uma confiabilidade mútua entre eles...


Toda a história é relatada por Pi, já adulto, para um escritor canadense (um alter-ego de Yann Martel), este elemento narrativo substitui de forma eficiente a narração em off, no entanto prejudica o filme em alguns momentos, por revelar metáforas, cuja interpretação deveria ficar a cargo de cada espectador. A montagem dá ao filme um ritmo ágil, que flui com relativa facilidade mesmo nas passagens que retratam o isolamento do personagem no mar, é interessante perceber que neste estágio da história os flashforward que mostram os diálogos do protagonista com o escritor diminuem, reforçando assim a sensação de isolamento e despertando ainda mais a curiosidade em relação ao desfecho, uma vez que Pi garante ao seu interlocutor que sua jornada seria capaz de fazer qualquer um se render à fé e acreditar na existência de Deus... Vivenciar através de um mergulho na obra cinematográfica a experiência que ele viveu é fundamental para que possamos compreender, assim como o romancista, aquilo que ele defende ao terminar de contar sua história e compartilhar com ele a sensação de isolamento e de desamparo é crucial para que isso aconteça.


Suraj Sharma está muito bem no filme, sua figura e trejeitos reforçam características marcantes de seu personagem, como a ingenuidade e até um certo tom de infantilidade, que vem à tona principalmente nos momentos em que ele comemora suas pequenas vitórias no mar. Não é uma atuação grandiosa, mas está condizente com aquilo que a trama lhe pede. O elenco secundário, no qual incluo todos os demais atores com participação significativa no filme, também entregam aquilo que a narrativa lhe pede, demonstrando desempenhos também proporcionais à importância de seus respectivos personagens na história. A direção de Ang Lee é, ao meu ver, o fator determinante para que o filme não seja uma simples aventura, o cineasta, juntamente com o roteirista David Magee, busca enfatizar a reflexão acerca da fé, que se torna a essência do filme e o elemento capaz de destacá-lo em meio a tantas obras vazias de significação. 


Eu, que não sou um grande entusiasta do 3D, lamento não ter tido a oportunidade de ver As Aventuras de Pi neste formato, mas independente disso, posso afirmar que o que ele proporciona com sua excelente qualidade técnica é um verdadeiro espetáculo visual. Sua fotografia, direção de arte e efeitos visuais são irrepreensíveis e irretocáveis. A beleza estética que pode ser percebida desde as primeiras sequências é um deleite para os olhos de qualquer cinéfilo e a recriação de toda uma realidade, inclusive os animais, através da computação gráfica é sublime, em nenhum momento a técnica usada deixa brechas para dúvidas acerca do realismo daquilo que vemos na tela, prova disso é a construção do tigre Richard Parker, que eu facilmente acreditaria ser real caso já não soubesse que ele também foi recriado digitalmente na maioria das cenas. 


As Aventuras de Pi não é a mais notável obra de Ang Lee, nem o melhor dentre os filmes que ganharam destaque e prestígio nesta temporada de premiações, todavia é uma obra capaz de nos proporcionar reflexões interessantes que podem em certa medida afetar a forma com que enxergamos nossas próprias crenças e a das pessoas que nos cercam... Ainda que a reflexão sobre a fé não tenha tanto valor para alguns, principalmente por se tratar de um tema que equivocadamente 'não se discute', o filme merece ser visto, pois mesmo depois de subtraída toda a sua essência, sobra uma ótima história de aventura e o já citado espetáculo visual que ele proporciona! Recomendo!  


As Aventuras de Pi ganhou o Globo de Ouro de Melhor Trilha Sonora e está indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado, Trilha Sonora Original, Canção Original, Efeitos Visuais, Fotografia, Direção de Arte, Montagem, Edição de Som e Mixagem de Som.

Assistam ao trailer de As Aventuras de Pi no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra,

8 comentários:

  1. Ótima crítica, J. Bruno! "As aventuras de Pi", surpreendeu-me muitíssimo, até porque fui ao cinema acreditando que assistiria uma "aventura"...o que neste caso é subestimar o conteúdo mais profundo de Pi. Não é o meu preferido do ano, mas também "recomendo"! Rs.

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  2. Ótimo texto J. Bruno! Embarquei na aventura e mergulhei de cabeça neste filme, mais uma obra de arte do Ang Lee, um dos diretores mais versáteis do cinema.

    Quanto ao 3D, revendo o filme e conversando com colegas, realmente deixou a desejar, nem precisaria do efeito. Lee não utiliza da maneira correta, por exemplo, desfocando os atores em cena inúmeras vezes. Scorsese foi quem realmente utilizou corretamente em "Hugo" e também Wenders no documentário para Pina Bausch. De qualquer forma, "Life of Pi" é ótimo, lindo, filosófico, encantador. Tem um script formidável. E a criação do Richard Parker é coisa de gênio! Gostei. Para rever sempre!

    Abs.

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  3. Seu texto foi o mais sóbrio que li sobre o filme e esse ponto de vista muito me agrada. Ainda não tive oportunidade de assistir esse filme, mas não estava muito entusiasmado, algo me repele de o conferir. No entanto, seu ótimo texto renovou minha vontade em assistir!

    Abração!

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  4. Também achei uma ótima crítica, só senti um pouco pelo spoiler heheh mas nada que afete quem ainda não viu o filme (eu). O que eu não gostei foi do autor não se importar nem um pouco com a menção ao livro 'Max e os felinos' já que li no Facebook, um trecho da entrevista do autor da história de Pi onde ele estava pouco se importando com a 'derivação' da história.

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    1. Na verdade não há spoiler Rafa, as informações que revelei estão presentes em qualquer sinopse ou no trailer do filme, a interpretação acerca do desfecho não revele o que acontece nele, tive este cuidado para não afetar a experiência de quem ainda não o assistiu, como é o seu caso.

      Obrigado pela visita e pelo comentário, fico feliz que você tenha gostado!

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  5. Ótima critica Bruno, assisti ao filme, não criei expectativas antes, mas me surpreendi com o enredo, e como envolve naufrágio, geralmente essas cenas são chatas e entediantes, pois são rotineiras e previsíveis, mas no caso do filme, acho que foi o ponto alto do filme, gostei bastante e assistiria novamente.

    Abração pra ti.

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  6. Olá Brunão,

    Acabei assistindo e lendo... well, foi bacana.
    Meu melhor coadjuvante vai para ? Richard Parker ;)
    Enfim, um filme sobre fé, morte, desilusões..O mais do mesmo?
    Adorei os efeitos e essa linha tênue entre mascarar a dura realidade com o 'fantástico' é algo a se pensar.
    Um filme interessante e o livro (óbvio) é beeeem melhor.

    bjs

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  7. Olá, José Bruno.
    Creio que este filme é válido para qualquer pessoa de qualquer religião e/ou crença.
    Teno o livro Max e os Felinos de Moacyr Scliar e a sequência em que o personagem principal fica sozinho com um puma em alto mar é bem pequena, ao contrário do filme onde acredito que ela ocupe a maior parte do tempo.
    Creio que o que ocorreu foi apenas uma reinvenção do mesmo tema base (como o que Nolan fez na trilogia Batman, ao pegar as melhores ideias das hqs e transpô-las para a tela) e não propriamente plágio.
    Abraço.

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