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quarta-feira, 14 de março de 2012

Viver a Vida

Viver a Vida (Vivre sa Vie) - 1962. Escrito e Dirigido por Jean-Luc Godard, inspirado pelo livro Où en est la prostitution de Marcel Sacotte. Música Original de Michel Legrand. Direção de Fotografia de Raoul Coutard. Produzido por Pierre Braunberger. Les Films de la Pléiade e Pathé Consortium Cinéma / França.


Assistir a um filme de Godard é uma experiência única ao meu ver, é vivenciar, não tão somente o drama ou a ventura de seus personagens, mas a arte cinematográfica como um todo, que pode ser sentida como uma máquina pulsante, que trabalha à todo vapor, sendo desmontada e em seguida reconstruída, ciclicamente, sem que para isso seja necessário interromper seu pleno funcionamento. Por isso em seus filmes qualquer olhar reducionista e limitado pode prejudicar toda apreciação e todo o entendimento. Suas obras  geralmente trazem consigo uma gama de significados e conceitos, alguns aparentes e outros nem tanto, mas todos de extrema importância para uma plena compreensão de sua genialidade. Em seus filmes, entrelaçadas à trama e tão importantes quanto ela, estão a experimentação e a reinvenção constante do cinema como expressão artística e da forma com que se dá o "diálogo" com nós espectadores.

Tal como no modelo do Teatro Épico, proposto por Bertolt Brecht, nas obras de Godard o ser humano é apresentado como obejeto de investigação, passível de constantes transformações, e não como algo previamente conhecido e imutável, é justamente nesta característica que se encontra um dos principais vieses da reconhecida politização do cineasta. De acordo com tal visão, se o homem é um ser “inacabado”, ele pode ser instigado à permanente transformação, sendo que esta viria através da reflexão consciente, que é geralmente proposta pelo diretor/autor em seus roteiros. Este aspecto pode ser facilmente percebido na história e na montagem do excelente Viver a Vida (1962), uma de suas obras mais cultuadas.


Vivre sa Vie” (Viver a Vida) é uma uma gíria francesa usada como referência à prostituição, mas no filme, que narra as peripécias de Nana Kleinfrankenheim (Anna Karina), uma garota de programa, tal expressão ganha ainda uma outra conotação, falarei dela mais adiante, vamos primeiro à trama: Nana é uma linda jovem de 22 anos que deixou o marido e o filho, ainda bebê, para perseguir o sonho de ser atriz de cinema, o que ela não esperava é que a nova vida não seria nada fácil. Sem conseguir realizar suas pretensões, ela se vê compelida a se prostituir para se sustentar. O mote já trás explicita a conotação original da gíria, porém há a outra, que não está assim tão aparente, Vivre sa Vie” é também na trama uma referência à nossa existência, á condição que experimentamos quando tomamos ciência de quem realmente somos... No filme Godard brinca com a noção da realidade, criando assim uma alegoria do próprio cinema; em tons de metalinguagem ele propõe uma reflexão existencialista acerca de nossa percepção de nós mesmos, enquanto indivíduos, e da realidade à nossa volta.


Eu acho que sempre somos responsáveis pelo que fazemos, somos livres! Se eu levanto minha mão, sou responsável; se viro a cabeça para direita, sou responsável; se estou infeliz, sou responsável; se fumo um cigarro, sou responsável; se fecho os meus olhos, sou responsável... Eu esqueço que sou responsável, mas eu o sou...

Nana em um determinado momento do filme expõe seu desapontamento em perceber que por vezes suas palavras são vazias e mentirosas, mas a verdade é que elas não são assim por sua culpa, mas pelo simples fato de não pertencerem à ela, afinal ela é tão somente uma personagem (fato que o roteiro não faz questão de dissimular) e por mais que ela se afirme como responsável pelos seus atos, ela não o é... Ao se encontrar imersa em uma reflexão que lhe gera dúvidas profundas, Nana direciona seu olhar para a câmera, como se descobrisse pela primeira vez sua real condição, contudo, ela logo desvia o olhar e dá sequência ao diálogo, como se negasse aquilo que realmente é, penso que isto pode ser também compreendido como uma espécie de releitura da alegoria da caverna de Platão. 


Godard recorre ao modele de Brecht ao desconstruir a narrativa fílmica clássica, visando provocar com isso um desconforto em nós expectadores, que somos tirados da condição de público passivo e induzidos à reflexão e à tomada de decisões; isto pode ser observado em uma outra passagem, na qual um personagem recita um trecho de um livro de Edgar Allan Poe, que narra a história de um pintor que produzia um retrato de sua esposa, ele mergulha em sua arte de tal forma que a tela passa a ser sua realidade, só após termina-la e desprender-se dela, ele descobre que a sua esposa jazia morta atrás dele... Com esta história, por exemplo, somos instigados a questionar a nossa própria realidade; será que ela é de fato verdadeira, ou será que não passa de uma ilusão, assim como o quadro do conto, ou as sombras na caverna de Platão? A personagem central do filme se vê diante da mesma reflexão, ela no entanto é incapaz de responder por si, dada sua condição, mas nós não o somos, ao percebermos isso, abre-se uma porta para mudanças e transformações em nossa maneira de interpretar e de interagir com o mundo à nossa volta.


A inegável influência de Bertolt Brecht está também na montagem do filme, que faz com que cada sequência exista por si mesma, independente das demais. A trama é dividida em 12 partes e cada uma destas em "subtítulos" que anunciam de forma literal alguns dos acontecimentos daquela secção... A tensão é desenvolvida pelo andamento da trama e não pela prenunciação da solução dos conflitos dramáticos, aspecto também característico do Teatro Épico; esta constatação explica a forma seca com que Godard conclui o longa, sem catarse nem qualquer tipo de redenção, nem para a personagem, nem para nós nós expectadores... É interessante também a forma com a câmera relata a ação, capturando as imagens ora por ângulos improváveis, como na primeira sequência em que os personagens são focados pelas costas, ora de forma ensandecida, como na cena memorável em que Nana dança em um bar, se insinuando de forma sensual para os presentes.


Anna Karina é como sempre um destaque à parte no filme, sou meio suspeito para falar, pois para mim ela é uma das mais belas atrizes de todos os tempos, não tem como não se apaixonar por aquele olhar cheio de expressão e embebecido de sentimentos diversos... Acreditem ou não, ela chegou a acusar Godard, seu marido na época, de tê-la enfeiado no filme, acusação que, convenhamos, é simplesmente absurda! Ela, que atua durante quase todo o tempo com um cigarro entre os dedos e mantém uma postura constantemente sedutora, nos faz lembrar o estereótipo das femme fatales dos films noir da década de 40, porém a melancolia de seu olhar surge como um contraponto à tal imagem, tornando-a visivelmente sensível e angustiada.


Mas, não só de sua trama filosófica e de Anna Karina, vive o filme, dentre seus méritos estão também a bela fotografia em preto e branco dirigida por Raoul Coutard, contumaz parceiro de Godard e a áurea mágica dos anos 60, que ele exala junto o ranço característico das produções da Nouvelle Vague francesa, o que, resumindo, o torna praticamente perfeito em sua proposta. Este é um clássico obrigatório para todos os amantes da sétima arte! Dica: Ao assisti-lo preste atenção na passagem em que Nana assiste A Paixão de Joana D’Arc (1928) de Carl Dreyer e na memorável sequência em que ela contracena com o filósofo e ensaísta francês Brice Parain, que interpreta a si mesmo... Sim, é uma obra prima!


Assistam ao trailer de Viver a Vida no You Tube, clique AQUI !

Confiram também aqui no Sublime Irrealidade as resenhas de outros filmes de Jean-Luc Godard: Tempo de Guerra (1963)Bande à Part (1964)Alphaville (1965)!

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra, 
portanto não devem ser consideradas spoilers!

32 comentários:

  1. Ótima reflexão e crítica que você faz ao filme Bruno. Parabéns! Um clássico inesquecível do cineasta, aliás, se tem um cara de uma obra completa cult este é Godard. É difícil analisar as nuances de seus filmes, aqui você tira de letra.

    Gostei da relação que você fez com Brecht e a citação de Platão. Realmente é um estudo teórico interessante sobre a fita.

    Anna Karina tem grandes momentos aqui, ela parece uma "Audrey Hepburn melancólica". Sempre achei ambas atrizes parecidas no jeito meio moleca, porém diferentes no olhar. Acho que prefiro ela em "O Demônio das Onze Horas", mas preciso fazer mais uma visita a obra do diretor (esses dias tava querendo rever 'Acossado').

    Adoro "Banda à Parte", o meu favorito, vemos que Tarantino se inspirou bastante também em Godard.

    É um cinema-arte-filosófico. Adoro conversar e refletir sobre. O melhor artista vivo da Nouvelle vague!

    Abraço.

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    1. Obrigado Rodrigo, eu geralmente me empolgo ao falar de Godard, ele tem uma das filmografias mais importantes, belas e influentes da história da sétima arte, para mim ele é sem dúvidas o maior da Nouvelle Vague!

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  2. Pelo que li aqui me parece ser um filme muito interessante e suas criticas eu ja percebi que vc usa uma linguagem bem coloquial e fácil de entender sendo bastante realista. Parabéns!

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  3. Pode acreditar, mas nunca assisti! INACREDITÁVEL, eu sei!

    Neste mês estou me permitindo assistir muitos clássicos. Quem sabe eu não achei algum tempo para ver "Viver a vida"!

    Anotadííííssimo!

    bjinhos

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  4. Puxa, é tão gostoso ler uma crítica de cinema tão bem montada.
    Fiquei muito interessada.
    Obrigada pela recomendação!
    Beijos

    http://www.giselecarmona.blogspot.com/

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    1. Obrigado Gisele!
      "Viver a Vida" é uma clássico que merece ser refletido e apreciado por todos, assista sim!!!

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  5. Ola,
    Realmente muito interessante sua crítica, principalmente abordando um clássico como "Viver a Vida". Eu também curto bastante os trejeitos femininos presentes nos filmes clássicos.

    Abraços, Flávio.
    --> Blog Telinha Critica <--

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    1. Acho interessante a forma com que a sensualidade era explorada em décadas passadas, sem precisar de apelações, Anna Karina materializa isso apenas pelo olhar!

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  6. Oi Bruno,

    vc faz uma resenha do filme impressionante.
    Dizer que o saber não ocupa lugar, mas no teu blog, ele tem morada certa!
    É um prazer meu amigo!

    Abraço,

    Rui

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    1. Obrigado Rui!
      Receber um elogio deste é um uma honra meu caro!

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  7. Bela crítica. Fiquei com vontade de ver...

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    1. Obrigado Gilberto!
      Assista sim! É um clássico imperdível!

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  8. A crítica está muito boa assim como este filme do Godard também, tal como Acossado e O Desprezo, mas eu sou filiado mais a François Truffaut do que à esquisitice intelectual e pouco convidativa de Jean-luc.

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    1. Eu me identifico muito mais com a obra de Godard do que a de Truffaut, na verdade eu sem considero seu estilo uma "esquisitice", nem tão pouco "pouco convidativa", acho que seus filmes conseguem mesclar de forma ímpar poesia e reflexão, coisas que pouquíssimos outros conseguem...

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  9. Sou fã de Godard, tudo que vi dele até hj achei belo e genial. Não considero seus filmes nem esquisitos, nem pouco convidativos. O problema é que temos tantas vezes o olhar viciado sobre o mundo e suas coisas.
    Não tenho reflexões complexas a respeito de suas obras, mas é sempre ótimo perceber as entrelinhas e o olhar alheio sobre elas. Esta, não assisti até hoje, mas a curiosidade pairou no ar, principalmente depois dessa resenha, ou é melhor dizer artigo científico?! rsss.
    Quando houver oportunidade para conferir a película certamente o farei.
    Bruno, um grande abraço e parabéns pelo estudo belíssimo acerca da obra.

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    1. Sintia, mais uma vez concordo contigo, de fato a visão de mundo que Godard explora em seus filmes pode facilmente se chocar com a nossa, quando temos dificuldade de olhar a realidade com outros olhos...

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  10. Oi Bruno,

    Adoro Godard! E só de pensar nesse resgaste da caverna, não tenho dúvida que vou conferir. Penso que a vida não tem uma resposta e sim só busca. Foi assim como senti quando você descreveu essa inquietação.

    Beijos.

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    1. Assista sim Luciana, já antecipo que vou querer e muito conversar contigo sobre ele!

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  11. Sempre que venho aqui adoro!
    Conheço diversos filmes dos quais nem sabia a existência!
    Adorei a dica e vou procurar para assistir.

    BjO

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    1. Que bom Blake, fico feliz que estou conseguindo despertar sua curiosidade acerca dos filmes que tenho resenhado...

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  12. Bruno, Godard e Ana Karina sempre em parcerias deliciosas. Gosto muito de "Uma Mulher é Uma Mulher" também com ela. Sublime, como sempre.

    Sobre o seu comentário no meu blog, antes de vê-lo postei sobre o recente filme da Madonna haha Dá lá uma olhada quando tiver um tempo: http://sublimeirrealidade.blogspot.com/2012/03/viver-vida.html

    E eu concordo que a realidade "machista" do cinema daria um belo estudo, para quem souber como realizá-lo.

    Estou seguindo você. Parabens pelo blog.

    Abraços!

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    1. Seja bem vinda Andressa, fico feliz que tenha gostado e espero vê-la por aqui mais vezes...

      Ah, você postou o link errado acima, o endereço postado foi o deste post aqui mesmo, mas não se preocupe vou passar pela tua página e procurar a postagem da qual você falou...

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  13. Bruno, suas resenhas são as mais inteligentes que vi em blogs, desde que entrei pra esse universo, há pouco tempo atrás.
    Parabéns pelo blog, estou seguindo.

    PS: muito boa a sua autodefinição, principalmente a parte do "Escritor(por ilusão)". Eu me sinto assim também, mas não podemos parar de acreditar, né? O primeiro passo sempre foi acreditar, tanto para os bem quanto para os mal sucedidos! Um abraço!

    http://letrasnodiva.blogspot.com

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    1. Olá Alexandre, seja bem vindo!

      Fico muito feliz que você tenha gostado do blog e me sinto honrado com seus elogios!

      Sobre as nossas ilusões eu recorro a uma frase do pensador anarquista Bakunin, ele dizia "foi buscando o que era impossível que conquistamos aquilo que era possível..." Ainda que nossos sonhos não se realizem eles ao menos nos levarão a algum lugar, pois são eles que nos mantém em constante movimento...

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  14. Viver a Vida é meu Godard favorito. Dito isso, é uma responsabilidade analisá-lo. E você conseguiu muito bem passar por esse desafio, com louvor! É mesmo uma obra-prima, um filme poético, e que transcende qualquer gesso cinematográfico, quebrando padrões e inovando completamente. Não só é interessante refletir acerca do filme, como é um exercício incrível captar as qualidade técnicas do longa. E, provavelmente, um diretor nunca fez uma maior declaração de amor para uma atriz como Godard fez para a perfeita Anna Karina!

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  15. Este comentário foi removido pelo autor.

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  16. Primeiramente, eh inegavel sua agucada maestria de analise, conseguiu de maneira louvavel, fazer varios intertextos e inumeras leituras, algo que realmente so eh possivel pelo intemedio de uma boa bagagem, uma vez que Godard enriquece sua obra propositadamente com uma fotografia incrivel,dialogos riquissimos,etc... como o que se passar entre ela e um poeta, dentro de um bar, discorrendo sobre a existencia, a verdade,filosofia alema, um dos meus dialogos favoritos!reconheco essas cenas poeticas e aparentimente extra diegeticas como um Stop noo filme para pensarmos sobre nos ela, seu contexto, 7 arte, a obra como um todo, ou seja um presente para o proprio expectador para comecar um processo reflexivo enfim... algo que enriquece a experiencia com o filme, e nos fazer refletir sobre o mundo. Outro momento, eh quando ela ouve um rapaz recitar um texto de Edgar Poe, discorrendo sobre um pintor que confundira a realidade com a sua propria arte, sua pintura, e concomitantemente vemos ela no centro do plano com um cigarro, e tentando depreender aquelas palavas... enfim.. uma das partes deliciosas desse filme tambem, momento que considero como um intervalo da trama para novamente estabelecermos um processo de reflexao interna externa e com a propria obra, um filme somente para pessoas sensiveis, eu diria, Realmente uma das melhores do Godard!

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