Os Miseráveis (Les Misérables) - 2012. Dirigido por Tom Hooper. Escrito por William Nicholson e James Fenton, com composições de Herbert Kretzmer, baseado no musical de Alain Boublil e Jean-Marc Natel; no livro de Claude-Michel Schönberg e de Alain Boublil e no romance de Victor Hugo. Direção de Fotografia de Danny Cohen. Produzido por Tim Bevan, Eric Fellner, Debra Hayward e Cameron Mackintosh. Working Title Films e Cameron Mackintosh Ltd. / UK.
Antes de dar início às considerações sobre Os Miseráveis (2012) é preciso deixar claro que este musical dirigido por Tom Hooper não é uma adaptação direta do clássico literário de Victor Hugo, mas sim da peça homônima escrita por Alain Boublil e Jean-Marc Natel. Por conta disso, o que vemos na tela é uma convergência entre a linguagem teatral e a cinematográfica, onde em diversos aspectos se sobressai a primeira. A parte do público que não está acostumada com este tipo de linguagem provavelmente a estranhará. É preciso lembrar também que em musicais, independente da história contada, o senso de realismo diminui para ceder espaço para a criação de alegorias e representações daquilo que seria de fato real, o que neste caso remete ao formato da tragédia grega, na qual os personagens eram definidos, não pelo nível de profundidade psicológica que tinham, mas pelas atitudes que tomavam e pelas consequências delas.
Aristóteles, em sua obra A Poética, classificou a tragédia como "a imitação de uma ação completa e elevada, em uma linguagem que tem ritmo, harmonia e canto", esta definição se enquadra perfeitamente no filme de Hooper e as semelhanças com o formato clássico vão além. Jean Valjean (Hugh Jackman), o personagem central de Os Miseráveis, traz em sua composição diversos elementos característicos do herói trágico, ele é um homem virtuoso, porém um único ato falho lhe conduz à inúmeras peripécias que destroem completamente sua vida, todavia, diferente do herói do teatro grego, ele não acaba sendo determinado por sua falha, mas pelo que resulta dela, é então que nos deparamos com aquele que é o tema central da obra de Victor Hugo, que felizmente foi mantido no longa: o embate entre a justiça, representada pela lei, e a graça, representada pelo perdão.
A história começa em 1815 com Jean Valjean sendo solto, após 19 anos de trabalho forçado, ele fora condenado por ter roubado um pão para alimentar o sobrinho que estava na beira da morte e sua permanência na prisão foi prolongada devido a uma tentativa de fuga. No entanto, a liberdade condicionada que Valjean acabara de ganhar não lhe restitui sua vida, em cada lugar onde chega, ele precisa apresentar seu termo de condicional, o que desperta o medo e o repúdio das pessoas, que passam a tratá-lo como se ele não fosse digno de qualquer misericórdia. Um bispo (vivido por Colm Wilkinson), que encontra Jean dormindo na rua, lhe oferece comida e abrigo, mas antes do raiar do dia, o ex-presidiário foge levando consigo diversas peças de prata. Ele é novamente capturado e trazido à presença do religioso, que surpreendentemente decide isentá-lo da culpa.
O bispo conta para o policial que as peças de prata foram dadas a Valjean de presente e que inclusive, na pressa, ele esquecera de levar dois castiçais, também de prata. Em troca, já longe da vista dos policiais, o religioso apenas pede a Jean, que ele use o que lhe foi dado para iniciar uma nova vida (a prataria possuía um altíssimo valor). Este gesto gracioso deixa o personagem envergonhado de seu próprio ato e muda completamente a percepção dele sobre sua própria desgraça, aquele ato de perdão passa a guiar sua consciência a partir de então, disposto a começar uma nova história, ele rasga sua carta de condicional e troca de identidade. Sua paz, no entanto, não dura muito tempo, pois o cruel Javert, que fora guarda da prisão onde ele esteve por tantos anos, se torna chefe de polícia na cidade para onde ele foi. Passa a ser uma questão de tempo até Valjean ser descoberto e condenado a pagar pela quebra da condicional.
Em sua trajetória, que como eu disse é repleta de peripécias, Jean Valjean cruza o caminho de diversas pessoas, cuja vida ele acaba transformando, nem sempre para melhor. Fantine (Anne Hathaway) é uma mãe solteira que se vê obrigada a descer até o fundo do poço para conseguir sustentar a filha pequena, Cosette (interpretada por Amanda Seyfried na juventude), que mora em uma estalagem administrada por um esperto casal de trapaceiros, os Thénardier (Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter). Éponine (Samantha Barks), Marius Pontmercy (Eddie Redmayne), Enjolras (Aaron Tveit) e Gavroche (Daniel Huttlestone) são jovens militantes que acreditam na liberdade e se juntam à luta armada para tentar proclamar a república e eliminar a pobreza que assolava o país. Todos estes personagens interagem com Valjean em algum momento da história e suas respectivas realidades dão um panorama de qual era a situação na França no período retratado.
O livro de Victor Hugo (que ainda não terminei de ler) desenvolve melhor cada um dos personagens e adentra com uma maior profundidade em cada um dos temas que aborda, todavia, esperar que a peça ou o filme faça o mesmo seria tolice, uma vez que é praticamente impossível condensar em menos de três horas, uma trama que se desenvolve por anos a fio e que no livro ocupa mais de mil páginas na maioria das edições (a obra literária é frequentemente dividida em dois volumes). Contudo, o filme preserva aquilo que ao meu ver é o essencial, o já citado embate entre a lei e a graça, aspecto este que é relativamente bem trabalhado na trama, evocando reflexões sobre o quão difícil é perdoar sem pedir nada em troca e também ser perdoado sem oferecer em favor do misericordioso algum tipo de retribuição (dilema enfrentado por um dos personagens no filme).
Ao contrário do que parte da crítica tem afirmado, os números musicais não deixam tanto a desejar. A dificuldade de alguns dos atores em soltar a voz é notável, mas compreensível, visto que esta é a primeira vez que boa parte deles participa de uma produção do gênero, no entanto isso não compromete a narrativa, que se mantém ancorada sobre as boas atuações (que não se resumem à técnica vocal). A presença de atores que fizeram parte da montagem teatral ajuda muito neste aspecto, são deles, obviamente, as melhores interpretações musicais, dentre as quais destaco o número solo da Samantha Barks, um dos melhores do filme. O Hugh Jackman e a Anne Hathaway estão muito bem, é possível perceber o quanto eles estão à vontade em seus personagens, diferente do Russell Crowe, que convence mais pelo esforço do que pela destreza. O Sacha Baron Cohen e a Helena Bonham Carter seguram bem o viés cômico do filme, a primeira sequência protagonizada por eles funciona como um alívio para o drama predominante na história até então.
Não creio que Os Miseráveis seja merecedor de todos os prêmios aos quais tem sido indicado, ouso dizer que há um pouco de exagero por exemplo em sua indicação ao Oscar de Melhor Filme, uma vez que ele, apesar de ser uma boa produção, não traz nada tão excepcional e ainda tropeça em alguns aspectos técnicos, como por exemplo a construção das cenas de ação, que deixam bastante a desejar (felizmente são poucas). Ao meu ver, apenas as indicações aos prêmios de Melhor Figurino e Direção de Arte são inquestionavelmente justas, pois nestes aspectos o filme é praticamente impecável.
Recomendo o filme para todos com a ressalva de que não se pode encontrar nele a mesma profundidade e o mesmo detalhismo do livro que indiretamente o originou.
Os Miseráveis ganhou o Globo de Ouro nas categorias de Melhor Filme de Comédia ou Musical e Atriz Coadjuvante (Anne Hathaway). Ele está indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Ator (Hugh Jackman), Atriz Coadjuvante (Anne Hathaway), Canção Original (Suddenly), Maquiagem, Figurino, Direção de Arte e Mixagem de Som.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.
Olá, Bruno
ResponderExcluirNão gosto muito de musicais, e mesmo sendo indicando a vários prêmios, não tive muito interesse em ver. O que eu não gosto em musicais são como tantos problemas são levantados e depois são rapidamente descartados. Como a Academia adora musicais, desde o primeiro trailer já dava para perceber que Os Miseráveis foi filme feito para concorrer ao Oscar.
Abraços,
Olá!
ResponderExcluirTambém não alimento muito gosto por esse gênero cinematográfico, como também não apreciei os filmes antecessores a esse remake. Como o Mateus afirmou, são filmes que causam a sensação que foram feitos sob medida para as premiações - e que nem sempre são justificadas.
abraço
marcelokeiser.blogspot.com.br
Bruno:
ResponderExcluirLi sua resenha sobre os "Os Miseráveis" e gostei muito! Está perfeita! O que, aliás, não é nenhuma novidade pra mim, porque você é incrível! Fico dividida entre o seu Blog e o do Rodrigo. Ambos são "the bests". Realmente talentosos! Quero muito ver esse filme, com certeza. Mas, conforme suas palavras.., "é preciso deixar claro que este musical dirigido por Tom Hooper, não é uma adaptação direta do clássico literário de Victor Hugo". Ok, obrigada por essa dica, porque eu assisti o "original" algumas vezes, e realmente é um "clássico" que dispensa comentários! A atuação do Gérard Depardieu como "Jean Valjean", foi majestosa! Eu adoro esse ator! Devo ter visto quase todos os seus filmes. Certamente você viu "Camile Claudel", em que ele interpreta o grande escultor Rodin e a Isabelle Adjani (maravilhosa),como Camile Claudel (sua amante)! Lindo filme! Quero ver sua resenha 'sobre'., aqui no seu blog, em algum tempo. Eu vou 'amar' rever as cenas, através dos seus comments!!
Bem, eu sou taurina, então é típico: eu escrevo muito! Sorry! Grande abraço e parabéns!
Gostei da sua abordagem, bem lúcida. Ainda não vi o filme, mas tenho minhas ressalvas quanto a esse diretor, apesar de querer gostar do filme. Gosto muito da histórias, veremos... Abraço!
ResponderExcluirConheci a obra de Victor Hugo através de uma minissérie francesa com Gerard Depardieu. Vou conferir a nova versão só depois que tiver assistido à de 1936, que há tempo está na minha lista.
ResponderExcluirAbraços!
Eu gosto de musicais, apesar de ter lido que esse é meio decepcionante, com o elenco com voz fraca, já que cantou ao vivo durante as gravações e não com antecedência, como é feito normalmente.
ResponderExcluirSeu texto esta ótimo J. Bruno, mas estou com os dois pés atrás com este filme. Adoro a obra, até mesmo a musical, aliás, faço coro ao Gilberto acima, também adoro musicais, mas este filme parece ser insuportável! Sem diálogos, enfim...um tipo de material muito mais apropriado para se experimentar ao vivo no teatro. Terei que levar a minha avó para assistir, ela é apaixonada por Victor Hugo.
ResponderExcluirAbs.
Olá, José Bruno.
ResponderExcluirNão gosto muito de musicais, mas como a trama e a história deste filme (que anda não vi nenhuma versão anterior e nem li o livro) são bem construídas, fiquei com vontade de assisti-lo.
Abraço.
Aqui esta um típico gênero de filme que nem preciso assistir para dizer que não gosto!
ResponderExcluirApesar do ótimo elenco e de todas as pompas... Para mim o filme "passa batido". Não Gosto!
Well,
ResponderExcluircomo sempre você nos surpreende com uma resenha espetacular!
Raramente, temos um filme que retrate o livro em sua fiel intenção.
Quando fiquei sabendo deste filme já sabia que seria inspirado no Musical(Teatro) e quase sempre quando levamos Teatro para Cinema, podemos ter HORROR-DECEPÇÃO ou PAIXÃO - ENCANTAMENTO.
Meu caso é mais ou menos assim: amo essa história, sou fã do musical-teatro, tive o prazer de ver colegas do meio teatral realizando esta obra...
Enfim, ao contrário de alguns : tô muito curiosa p/ 'sentir' este filme.
beijos