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sábado, 5 de março de 2011

Bande à Part

Bande à Part (Bande à Part) - 1964. Dirigido, escrito e produzido por Jean-Luc Godard, baseado no romance Fools' Gold de Dolores Hitchens. Música de Michel Legrand. Janus Filmes / França.

 

Em umas das primeiras sequências de Bande à Part (1964), uma professora de inglês explica que o moderno é, na verdade, igual ao clássico, para embasar sua afirmação ela lembra uma frase do poeta T S Eliot, que diz: “tudo que é novo é portanto, automaticamente, tradicional”. Creio que esta citação não foi inserida no roteiro por acaso, ela ajuda a explicar a relação de ruptura/continuísmo em relação a um modelo cinematográfico tradicional, proposta por Jean-Luc Godard, que pode ser percebida neste e em outros de seus clássicos. Alguns críticos consideram Bande à Part uma espécie de reverência do diretor aos filmes de gangsters das décadas anteriores, dos quais Godard era grande admirador. De fato esta homenagem realmente acontece, mas ela não é mera reprodução daquilo a que se propõe a reverenciar. O diretor parece brincar com o estilo e trejeitos daqueles que o influenciaram.

Comparo a relação de Godard com o cinema, com o ato do menino que acabou de ganhar um brinquedo novo e o desmonta para tentar entender como ele funciona. Bande à Part é uma das provas que Godard não só compreendeu o funcionamento e a importância e cada peça, mas também as remontou de uma forma diferente, dando origem a um novo brinquedo, este inusitado por não possuir todas as características de seu original. O menino desmonta seu brinquedo não porque este não o interessa e sim pelo fascínio e curiosidade que ele lhe desperta. Godard, tal como uma criança curiosa, não teve a arrogância de se considerar melhor que os que o antecederam, pelo contrário, a ruptura que ele propõe em seus filmes não é uma negação e sim uma desconstrução do que se tinha como tradicional, para que se pudesse compreender quais eram as possibilidades oferecidas pelo cinema, seja como mídia ou obra de arte. A remontagem das "peças" que daria origem a um novo modelo, ficaria conhecida como Nouvelle Vague, uma das mais importantes e ousadas escolas do cinema no século passado.

A sequência clássica em que os personagens correm no Louvre
seria revisitada por Bertolucci em Os Sonhadores

“Para os atrasados que agora chegam, oferecemos umas poucas palavras escolhidas aleatoriamente: Três semanas antes. Um monte de grana. Uma aula de inglês. Uma casa na beira do rio. Uma garota romântica”

A descrição acima é dada pelo narrador no início de Bande à Part, e praticamente resume a trama simples do filme. Ao contrário de alguns dos outros filmes de Godard, que são considerados de difícil compreensão, este, que é uma das produções mais lembradas da Nouvelle Vague, nos apresenta uma trama linear e sem muitos complicativos. O experimentalismo, que pôde ser observado na montagem e na construção das imagens nos primeiros trabalhos de Godard, agora está presente principalmente na sonoplastia e na edição de som. A ruptura característica da Novelle Vague toma forma em sequências em que através de jogos sonoros a “realidade” da estória é desfeita, dando lugar à noção consciente de que estamos diante de um filme e não de um fragmento do real. Isto acontece visivelmente em duas cenas, a que um dos personagens finge atirar em outro usando o dedo como revólver e realmente sai o som do tiro e a mais clássica em que os personagens decidem fazer um minuto de silêncio e enquanto nenhum deles diz nada, a cena prossegue sem trilha sonora ou ruídos ambientes.

A estória começou quando Odile (Anna Karina, esposa de Godard à época), a garota romântica , conheceu Franz (Sami Frey), "há três semanas" no curso de inglês e contou para ele sobre a grande quantia de dinheiro escondida num quarto na casa de Madame Victoria, sua patroa. Franz por sua vez conta o segredo para seu amigo Arthur (Claude Brasseur). Este é o mote para que ambos os rapazes planejem um grande roubo, justificado pela ideia de que o dinheiro guardado pudesse ser ilegal. Arthur, mesmo sendo arrogante e egocêntrico, consegue conquistar Odile e ele a convence a os ajudar a invadir a casa de Madame Victoria, que fica a beira de um rio. Como eu já havia esclarecido a trama é simples e se desenrola lentamente até um final, também bem simplório, o que não diminui em nada a importância desta obra prima.

Sequencia da dança em um bar inspiraria Tarantino em Pulp Fiction
e seria refilmada na primeira temporada da minissérie Aline

Apesar de simples a trama é carregada de sutilezas e nunces que tornam o filme delicioso de assistir. Anna Karina é um atrativo à parte, sua atuação como a moça inocente e tímida é perfeita, seu olhar, que expressa muito mais que suas falas, é perseguido pela câmera que parece enamorada pela atriz. A fotografia em preto e branco capta lindas imagens de Paris e ajuda a compor algumas cenas memoráveis. A montagem já amadurecida é uma das provas mais concretas que o brinquedo remontado pelo menino curioso pode ser melhor que o original. Algumas sequências emblemáticas foram imortalizadas e serviriam de inspiração para outros cineastas e para referências posteriores feitas pela cultura pop.

 

Bande à Part está dentre os filmes aos quais Bernardo Bertolucci presta homenagem em Os Sonhadores (2003). Théo, Isabelle e Mathew, os protagonistas do longa de Bertolucci, também correm pelos corredores e salões do Museu do Louvre com o intuito de quebrar o recorde conquistado justamente pelo trio de Bande à Part, numas das cenas mais clássicas de todo o cinema. A sequência em John Travolta dança com Uma Thurman em Pulp Fiction (1994) de Quentin Tarantino (cineasta que deu à sua produtora o nome de Band Apart) é uma referência direta à cena em que Odile, Franz e Arthur dançam em um bar, também memorável. A mesma sequência foi usada no clip da música dance with me da banda francesa Nouvelle Vague e teria sido a inspiração para uma sequência da primeira temporada da minissérie Aline (2009), em que os personagens de Maria Flor, Pedro Neschling e Bernardo Marinho dançam ao som de you know i'm no good, canção de Amy Winehouse.

Bande à Part ainda não apresenta o engajamento e a politização que Godard expressaria em alguns de seus filmes seguintes, como já disse este é um filme de sutilezas, e como tal, não tende a agradar ao grande público, ávido por velocidade e ação, mas é um deleite para quem ainda tem um pouco de sensibilidade artística (coisa rara nos tempos de hoje), ou que, como eu, tenha uma atração singular por uma época de sutilezas, paixões e ideologias pungentes. Não recomendo para qualquer um!


De Jean-Luc Godard, indico também: Acossado (1959) e Tempo de Guerra (1963)
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Assista ao trailer de Bande à Part no You Tube ! (clique no link).
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