GAME OF THRONES - porque eu não consigo enxergar, para além dos aspectos técnicos, nada de extraordinário na série.
Nos últimos dias descobri que não só as sobre política envolvem emoções à flor da pele e posições extremas. Discutir Game of Thrones pode ser mais arriscado do que debater se foi ou não golpe. O lado ruim de discussões acaloradas é que nem sempre escutam o que você diz e frequentemente lhe atribuem posições que você não defendeu.
Pra tentar deixar claro o meu ponto de vista e a leitura que fiz das três temporadas da série que assisti, decidi escrever esta breve análise. Pra começar, preciso deixar claro que não acho a série ruim, longe disso, no tocante aos aspectos técnicos ela é grandiosa. O problema, como defendi desde a minha frustrada tentativa de fazer uma maratona, está no roteiro e na construção dos personagens.
A trama é desinteressante? Não. Se o fosse a série não teria despertado a curiosidade de tanta gente. O que é necessário analisar é se há de fato valor artístico na construção da narrativa ou se há apenas mero entretenimento. Antes de qualquer consideração, é necessário distinguir arte de entretenimento, a arte pressupõe diálogo entre obra e expectador, o entretenimento envolve apenas estímulos sensoriais.
Mas, porque abordar isso? A pretenção artística é atributo necessário para a qualidade de uma obra? Não, a obra deve ser avaliada de acordo com aquilo que ela se propõe a ser. O equívoco talvez esteja no fato de que Games of Thrones é entretenimento, bom entretenimento por sinal, e andou sendo vendido, principalmente pelo público, como obra de arte. E, ao menos nas três temporadas que assisti, não há muito espaço para diálogo.
A trama de Games of Thrones é simples e superficial, uma falsa noção de complexidade é criada pela presença de um grande número de personagens e de sub-tramas. Tal como num tabuleiro de xadrez, visto por alguém que analisa o jogo sem participar dele, o elemento surpreendente são os movimentos e os seus resultados e não as motivações que os tornaram possíveis.
Em Games of Thrones a velocidade, advinda da necessidade de manter o expectador médio preso à série, sacrifica qualquer possibilidade de exploração das motivações e das bases subjetivas dos personagens. Desde a primeira temporada, criou-se a ideia de que todos são capazes de tudo, o que elimina a ponderação acerca de cada ato. Um personagem pode ordenar a degola de outro e isso causará surpresa, mas não o tipo de espanto que leva à reflexão, sequer há tempo ou espaço no desenrolar da trama para que o espectador reflita acerca dos estímulos que recebe.
O contexto extremamente adverso no qual a história se desenvolve brutalizou a grande maioria dos personagens, tirando-lhes a humanidade. A perda da humanidade, no entanto, não se dá em um processo, ela ocorre subitamente em alguns casos ou é inata aos personagens em outros, apenas um personagem foge à esta lógica, Tyrion Lannister. Há deste modo uma sujeição da maioria absoluta dos personagem aos mecanismos da narrativa. Abre-se mão daquilo que poderia ser uma base para a complexidade em prol de artifícios, que visam tão somente a produção de estímulos, que têm como fim a fidelização do expectador.
Nos comentários do post que rendeu a discussão, defendi que, no tocante à construção dos personagens, até mesmo The Walking Dead, série irregular, era superior a GOT. A TWD soube em diversos momentos abrir mão da velocidade e da ação, pra desenvolver melhor as tramas e as relações que se dão entre os personagens. Há, tal como em GOT, uma situação de perda da humanidade, mas aqui ela se dá em um processo, no qual o maior inimigo de cada personagem não é um zumbi que possa estar à espreita, mas ele mesmo. A reflexão acerca de cada ato é o que confere valor artístico à narrativa.
O herói trágico, base de quase tudo que se produziu na literatura e em outras narrativas nos últimos milênios, tinha como principal característica a presença de uma falha de caráter ou pecado que o conduzia à peripécia, que por sua vez lhe levava à desgraça. Este formato funcionou e ainda funciona tão bem porque a simples presença de uma falha ética ou moral torna o personagem mais humano e é a sua reação ou reflexão diante desta falha que lhe torna complexo. Ainda que ele venha a se desumanizar, isso ocorre de forma gradativa, diferente do que ocorre com os outros persongens tidos como secundários, nos quais a superficialidade da construção pode não necessariamente se tornar um problema.
Em GOT não uma moral externa ou uma ética interna que possa servir como mediador de condutas ou base para conflitos internos ou perturbações. A ausência destes reguladores, que não é um defeito em si, torna a grande maioria dos personagens rasos e seus comportamentos previsíveis, ainda que o elemento surpresa esteja presente no efeito de suas ações. Se objetivo da série fosse o de retratar a trajetória de apenas um personagem, Tyrion, talvez o objetivo fosse alcançado com maior sucesso, mas a narrativa aposta na manutenção de diversos núcleos dramáticos, mas sem inserir neles personagens com um mínimo de profundidade.
Outro ponto que merece ser discutido é o suposto pioneirismo da série. A verdade é que não há nada de novo nela. Nem o sexo quase explícito, nem a violência ou a morte de personagens centrais é novidade. Hitchcock matou uma de suas protagonistas antes da metade do filme, isso em 1960. Em 1976, o filme Império dos Sentidos, um clássico de Nagisa Oshima, chocou meio mundo com sequências de sexo real e explícito - a primeira vez que isso acontecia fora de um filme pornô - perto da sequência em que um personagem introduz um ovo cozido na vagina de sua parceira e o come em seguida, as passagens picantes de GOT parecem saídas de programas adolescentes. O fato é que de lá pra cá tudo isso deixou de ser novidade, o mundo é outro, não há mais contestação em mostrar sexo ou violência, apenas uma satisfação dos desejos de uma parcela hipócrita da população que busca na ficção justamente aquilo que condena na vida real.
Um último ponto que merece menção é a ancoragem da série na obra original, recorrente nos argumentos de quem defende a qualidade de seu roteiro, frequentemente ouve-se a justificativa: "no livro era assim", mas isso não deve ser argumento. Qualquer obra adaptada deve ser completamente independente da obra que a originou, se há uma relação de dependência é porque o processo de adaptação não foi bem sucedido. Não li os livros, mas aparentemente lá os personagens são melhores construídos, há evidentemente a questão do tempo, o ritmo literário abre mais possibilidades de desenvolvimento. Todavia, isso não é justificativa para a notável pressa e superficialidade da trama na série.
A minha conclusão é a de que GOT pode ser um ótimo entretenimento, com notáveis atributos que justificam o hype criado em torno dela, isso, no entanto, não exclui o fato de que seu roteiro não possui absolutamente nada de extraordinário e seus personagens não passam de peças sujeitas às movimentações que objetivam tão somente levar aos sucessivos plot twists.
P.S. Um último ponto, prometo: premiação não é sinônimo de qualidade. As entidades que organizam e entregam os prêmios agem seguindo a lógica do mercado e estão sujeitas às politicagens internas, compra de votos e pressões de canais de TV e produtoras. As injustiças não são raras, algumas delas são verdadeiras aberrações (David O. Russel manda lembranças). Isso quer dizer que todos os prêmios recebidos por GOT foram injustos? Absolutamente que não. Quer dizer apenas que tais premiações não devem servir de parâmetro para nada.r
Texto escrito e publicado no Facebook em 24 de agosto de 2017.