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domingo, 30 de junho de 2024

Parte daquilo que somos… (entulhos)


Há mais de um ano eu tenho me divido entre duas cidades, Belo Horizonte e São Pedro dos Ferros, ao menos uma vez por semana estou na estrada, arrastando malas, tentando não perder o ônibus, perdido, como um objeto sem rumo, sendo arrastado de um ponto ao outro do mapa. Não sei quando estou indo, não sei quando estou voltando, a referência deveria o lar, não sei em qual dos dois extremos há um lar, já nem sei se existe um.


Lar é o lugar que nos cabe, não apenas o corpo, mas todo o amontoado daquilo que somos, seja este amontoado físico ou não. Há mais de um ano, meus CDs e discos estão em caixas, os DVDs apenas postos na estante sem qualquer tipo de organização, a vitrola acumula poeira e se deteriora, os livros estão divididos, tal como eu, entre duas cidades. Às vezes procuro um e não encontro, nem lá, nem aqui. Como disse, nem sei mais diferenciar o lá do aqui. Às vezes o livro reaparece fora do lugar, às vezes não reaparece.


Para olhares que não o meu, os livros, os discos, as revistas, os CDs são apenas entulhos, um estorvo em uma casa que ja carece da falta de espaço. Imagino a felicidade que sentiriam se um dia vissem todo este acúmulo ser posto na rua para ser recolhido pelo caminhão de lixo. Mas este entulho, este excesso de coisas, este estorvo, é parte daquilo que sou, é a parte que impede que eu caiba.


Na última mudança, alguma boa alma achou que seria interessante guardar alguns de meus DVDs (incluindo dois boxs dó Almodóvar, um do Fellini e um outro com a trilogia clássica do Indiana Jones) em uma sacola preta junto com uma toalha molhada, o saco foi jogado em uma pilha de entulho e eu só o encontrei há poucos dias, quase um ano depois. Ninguém é responsável, ninguém disse ao menos um “sinto muito, poderíamos ter sido mais cuidadosos”, o culpado sou eu que nem estava presente no dia da mudança. 


O recado é claro, aquilo que é importante pra nós não necessariamente o será para outras pessoas. Eu tenho tentado lidar com isso, mas enquanto tento, sinto atenuada a sensação de estar sem lugar; sem lugar físico e sem lugar afetivo. Terei achado um lugar quando eu finalmente encontrar um lugar que me caiba, a mim, meus livros, discos, revistas, que são parte daquilo que eu sou

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Monotonia e solidão em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo”


Transitando entre a ficção e o documentário, entre o melodrama e o experimento e entre o realismo e o subjetivismo, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009) é um filme único, seja pela forma, pela ousadia estética ou pela intensidade com que desconstrói e reconstrói um subgênero tão tradicional como o road movie.

José Lucas, o personagem principal é interpretado por Irandhir Santos, que não aparece em nenhuma cena do filme, sua presença se faz apenas pela narração em off, recurso usado em não poucas vezes de uma forma desnecessária no cinema nacional, mas aqui ele funciona muito bem, tanto como subversão do gênero documental como estrada para os interiores áridos do psicológico do personagem.

Geólogo, 35 anos, José Lucas viaja a trabalho, sua tarefa é fazer um relatório avaliativo/descritivo da região que será atravessada pelo canal de transposição do rio São Francisco, ele cruza os interiores do nordeste brasileiro em uma jornada que espera concluir em 30 dias. Neste caminho há vidas em abandono, desolação, muita solidão (geográfica e afetiva), sonhos e projetos desfeitos e uma monotonia dolorida, que está presente nas beiras de estradas e horizontes que parecem se repetir indefinidamente.




Desejo de fuga e de retorno se entrelaçam, mas na realidade nenhum dos dois se mostra viável, a vida é o que é, e parece que é isso que ela está dizendo para o personagem o tempo todo e é isso também que a narrativa está dizendo para nós espectadores. 

O filme oscila entre o documental e subjetivo e há ao menos duas transições bem nítidas, a primeira acontece quando um fato importante da narrativa é revelado, o que faz aprofundar o subjetivismo;  na segunda, é a vida real que insurge contra o subjetivismo,  e nesta passagem o predomínio da perspectiva do personagem central é rompida pela fala de uma jovem garota de programa, que parece não ignorar a presença da câmera que a constrange, nesta fala é como se a dureza do exterior trouxesse o próprio personagem de suas divagações de volta para o agora.




Felizmente o que se vê em Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo não é o tipo de experimentalismo que tem predominado em muitos festivais de cinema, que sobrepõe a forma à narrativa supondo que isso é exercício de linguagem. Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, que dirigiram e assinaram o roteiro, se distanciam do mais do mesmo ao atingir um nível de coerência entre os diversos elementos de linguagem, eles sabem que forma é narrativa e é isso que torna o filme grandioso.

Para olhares deformados pelo cinema comercial, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo pode parecer excessivamente lento e com poucos estímulos sensoriais, mas o que pode ser visto como defeito por alguns, são  na verdade alguns dos aspectos mais importantes. A lentidão da narrativa permite que se compreenda a solidão do personagem e sua forma de lidar com tanto com o passado, para onde ele almeja voltar, quanto com o futuro; e a falta de estímulos sensoriais ajuda reforçar a percepção da monotonia angustiante de seus dias.



É possível estabelecer ainda mais um paralelo entre realidade e subjetividade, que pode ser percebido na própria ideia da transposição que avançaria por sobre casas e por cidades inteiras, destruindo vivências e o acúmulo de significados de vidas inteiras. Aqui é como se o filme lembrasse, e isso é dito expressamente, que nada é eterno, tudo é transitório. Para a realidade que se apresenta como fator de transformações, o atropelo das subjetividades pouco importa e a vida de José Lucas é apenas mais uma evidência disso.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Anatomia de uma Queda - Reflexões sobre Direito, justiça e verdade a partir de um dos melhores filmes da temporada!



Anatomia de uma Queda, filme francês dirigido por Justine Triet e vencedor da Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, possui uma trama aparentemente simples: A escritora Sandra (Sandra Hüller) mora em um chalé na montanha com o marido, Samuel (Samuel Theis), que é um ex-professor e aspirante a escritor, e o filho, Vincent (Swann Arlaud), um menino com deficiência visual. Samuel é encontrado morto por Vincent, e aquilo que a princípio parecia ser apenas um acidente passa a ser visto pelas autoridades responsáveis pela investigação como um possível assassinato e Sandra passa a ser a principal suspeita. 

Na medida em que a trama se desenrola, fatos novos surgem, indícios vão aparecendo, e o roteiro, que é muito bem escrito, permite que ora acreditemos na inocência da personagem, ora duvidemos de que não tenha sido ela a responsável. De uma forma muito interessante o filme mostra que o fato original não pode ser recriado, as intenções dos envolvidos não podem ser acessadas e o que se tem é apenas um quebra-cabeças que pouco a pouco aparenta estar sendo montado a partir dos horizontes apresentados pela mulher, pelo filho e pelos indícios encontrados.

É a partir destes horizontes entrecortados que já no tribunal uma trama dentro da trama começa a ser desembolada. Passamos a nos questionar: o que nos faz crer que a personagem é inocente ou culpada são indícios concretos ou nós, expectadores sem visão privilegiada dos fatos, estamos tão sujeitos, assim como o tribunal, a aquilo que se apresenta como mera narrativa e que não necessariamente corresponde à verdade? É curioso perceber que os flashbacks presentes nesta parte do filme não servem para nos conduzir aos fatos originais, mas tão somente à uma reconstrução criada à partir da versão de algum dos personagens. E mesmo as versões apresentadas por peritos e especialista não são objetivas, são igualmente baseadas na interpretação, onde na maior parte das vezes os preconceitos dos intérpretes falam mais que as coisas analisadas em si.


Em um dado momento, um dos personagens afirma que no processo a verdade dos fatos não é o que importa, mas as impressões criadas e alimentadas; outra personagem, mais adiante, afirma que é necessário decidir mesmo diante de uma dúvida substancial e que o decidido tem validade, tem valor de verdade, como se a decisão consistisse em uma última análise em uma substituição da verdade factual pela verdade solipsista daquele em quem está investido o poder de julgar.

Aqui já é possível ensaiar algumas reflexões sobre a diferença entre a verdade factual e a verdade processual. A verdade processual sempre resultará de atos de interpretação, é a partir da linguagem que uma recriação da situação original é possível, o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer nos lembra que “o ser que pode ser conhecido é linguagem”, o que quer dizer que acessamos as coisas sempre tendo a linguagem como condição, e no processo a verdade se forma como uma narrativa que resulta da apresentação de um horizonte por um dos lados, pela contraposição deste horizonte ao horizonte apresentado pelo outro lado da lide e pela ampliação destes horizontes pela produção/dilação probatória.

Há, no entanto, situações em que os horizontes apresentados, mesmo após contrapostos e ampliados, se mostram insuficientes para que a verdade insurja, é o que na linguagem jurídica é chamado de dúvida substancial. Uma situação deste tipo traz o questionamento proposto pelo filme: há justiça no ato de entregar a alguém, que decidirá conforma sua consciência em uma situação de incerteza, o poder de destruir a vida de outrem? Este é um dos dilemas fundamentais da justiça, é o problema com o qual a deusa Palas Atena se depara no último ato da peça As Eumênides, escrita na Grécia no ano de 458 a.C por Ésquilo. É o mesmo dilema que os jurados enfrentam no clássico Onze Homens e uma Sentença (1957), de Sidney Lumet.


Em Anatomia de uma Queda a justiça é representada por um dos personagens (e tem um elemento óbvio que comprova esta minha tese), é este personagem que faz questionamentos pertinentes em uma dada passagem da trama e é a ele que cabe, ainda que indiretamente, a mesma decisão que no clássico grego coube à deusa Atena.

Anatomia de uma Queda é um filme que merece ser visto e muito debatido, é um excelente material para uma aula de Teoria do Direito ou de Processo Penal, principalmente em um tempo em que estamos, como sociedade, tão entregues à sanha punitivista que nos faz confundir justiçamentos com justiça. 


Anatomia de uma Queda, que estreou no Brasil na última quinta-feira, está indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Melhor Direção (Justine Triet), Melhor Atriz (Sandra Hüller), Melhor Roteiro Original e Melhor Edição. Deveria estar indicado também na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira, mas a França apostou em La Passion de Dodin Bouffant, que não recebeu nenhuma indicação. A cerimônia do Oscar acontecerá no dia 10 de março.


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Quem é o "monstro"? Kore-Eda nos dá espelhos em seu novo filme!


Se você tiver alguma oportunidade, assista ao filme Monster, obra mais recente do cineasta japonês Hirokazu Kore-Eda. É, eu creio que será melhor eu refazer este comando imperativo retirando a condicionante: Simplesmente, assista “Monster”! Não só porque é um dos melhores filmes do ano passado; não só porque o Kore-Eda é um diretor que precisa ser acompanhando de muito perto; não só porque o roteiro foi premiado na última edição do festival de Cannes… eu já falei que é o melhor filme de 2023?

É necessário falar muito sobre Monster, mas o problema é que não dá pra falar muito sobre ele sem estragar a experiência de quem ainda não assistiu. Tentarei fazê-lo, SEM SPOILERS, sob pena de que daqui pra frente o texto fique ainda mais confuso. Se me serve de justificativa, digo que a culpa pela má escrita é do próprio filme, que assisti aqui em BH no Cine Una Belas Artes, ainda estou inebriado, sob o efeito poderoso desta sessão. E, antes que me ataquem, o que se desenrola nestas linhas tortas talvez seja mais um relato de experiência que uma crítica.

Feitas as ressalvas, vamos lá! A trama é simples: percebendo o comportamento estranho do filho e que ele chegou machucado da escola, a mãe o questiona e ele acaba contando que foi agredido por um de seus professores. Ela vai ao colégio e tudo o que consegue é um educado, pomposo e ineficaz pedido de desculpas. Quanto mais ela tenta cobrar uma ação efetiva da diretora e dos demais professores, mais perceptível se torna o muro (ou os muros) que a separa de seu intento. É isso. É só isso? Não, é tudo isso!


Parece bobo, parece banal, mas é precisamente o oposto. O filme faz gato e sapato de nossa percepção, usando termos gadamerianos, eu diria que o filme alimenta nossas precompreenssões para adiante demoli-las em uma ampliação de horizontes. A trama brinca com a angústia de nossa condição existencial, somos seres lançamos em um mundo que enxergamos sempre a partir do ponto em que nos encontramos. Somos condenados a não ter uma noção precisa do todo e sem dar conta disso, nos contentamos com os fragmentos.

No livro A verdade e as formas jurídicas, Michel Foucault fala de um meio de produção e validação da verdade existente na Grécia antiga, que está presente inclusive no inquérito no qual o herói trágico Édipo é submetido. Uma mesma pessoa nunca detém toda a verdade, que é uma espécie de quebra-cabeças, cujo sentido só é revelado quando as outras pessoas que detêm as outras partes se pronunciam. Na tragédia de Sófocles só se descobre a gravidade do infortúnio de Édipo, que sem saber casou com a própria mãe e matou o próprio pai, porque surgem pessoas que detém cada uma parte da história.

O roteiro de Monster se vale deste mesmo método de produção da verdade, com a diferença de que nele não há um inquérito, as partes se encaixam e as pontas soltas se juntam na medida em que as perspectivas de personagens distintos vão sendo sobrepostas, revelando um sentido que que não poderia ser encontrado a partir de um horizonte solipsista. E aqui vale dizer que o que o filme faz é uma contundente crítica ao solipsismo que caracteriza o nosso tempo, no qual julgamentos baseados em precompreenssões são poucas vezes pensados e questionados por quem os emite.


Depois de nos revirar de ponta cabeça e ao avesso e de nos sacudir, a reposta para pergunta que é feita em diversos da trama, “quem é o monstro”, se desvela. O monstro sou eu, o monstro é você, o monstro somos todos nós. Monster nos lembra que urge pôr abaixo os muros da incomunicabilidade e ampliar os horizontes, sem isso, na vida assim como no filme, estaremos pecando o tomar o recorte, como um todo capaz de produzir algum sentido.


Monster ganhou o prêmio de melhor roteiro na edição do Festival de Cannes de 2023.

sábado, 13 de maio de 2023

Esperando Godot - “O absurdo é a vida!”

Esperando Godot. Adaptada da peça En attendant Godot de Samuel Beckett. Montagem realizada pelo Teatro Oficina com a direção de Zé Celso. Apresentando Marcelo Drummond, Alexandre Borges, Ricardo Bittencourt, Roderick Himeros e Tony Reis. Primeiro espetáculo da temporada, estreia no SESC Palladium em Belo Horizonte.

Dois homens à beira de uma estrada esperam por algo, ou por alguém, alguém que disse que viria, bem, que talvez disse que viria, mas, será que era alguém mesmo? Será que já não veio? Que dia disse que viria? Que dia é hoje? Quinta? Sexta? Talvez sábado. Talvez não venha hoje, mas amanhã…

O drama de “Esperando Godot” é o drama da ânsia pelo que aparenta nunca se concretizar, pelo que sempre se adia, que ora renova expectativas, ora frusta a mais resiliente das esperanças. Há quem, diante do vazio da espera, que é por extensão o vazio da própria existência, consiga rir. Hoje, durante a encenação, muita gente conseguiu, eu não consegui, mesmo nas passagens em que o tom cômico estava aflorado. Como rir diante da angustia provocada pela repetição e pela completa ausência de sentido? 



A peça nos mostra espelhos e em dado momento nos alerta: “estamos ficando menores, cada vez menores”, mas alguns de nós nem se da conta disso. Ao final, durante os agradecimentos, Zé Celso sentenciou, o absurdo não é do teatro, é da vida, isso resume tudo. A peça fala de todos nós, alguns compreendem isso, outros não. Mas, apesar das expectativas frustradas, ainda há alguma esperança, nem tudo permanece sempre igual, apesar de ser a repetição uma propulsora da crescente perda de sentido. A esperança se abraça ao nada, encara o dia que se esvai como superação - “menos um dia” - sem perceber que é a própria vida que se esgota pouco a pouco. Em uma existência que se resume a uma sequência de ciclos que se repetem indefinidamente, a cada volta tudo parece importar um pouco menos. É a lógica do eterno retorno de Nietzsche. 


Hoje, na faculdade, no caminho entre uma sala e outra, meu professor comentou sobre a experiência com dores crônicas, a sensação parece menor quando se passa a antever quando e de que forma a dor virá e quando e de que forma ela desaparecerá. Não é que dói menos, é a experiência repetida que evoca menos significados, o medo e a apreensão se tornam menores diante do que já é familiar. Isso explica a mudança de tom que há entre o primeiro e o segundo ato da peça. A repetição como farsa não sucede uma experiência trágica, mas uma outra farsa, que é antecedida por outra e as pontas disso nunca são encontradas encontradas, nem o começo, nem o fim. Daí o absurdo. A vida como absurdo.



Quem seriam Vladimir (Alexandre Borges) e Estragão (Marcelo Drummond), os dois homens à espera de Godot? Paupérrimos, maltrapilhos, amargurados e desiludidos, poderiam ser eles uma espécie de alegoria do gênero humano? No meu entendimento não, há diferentes formas de lidar com o vazio, o que se nota nos poucos personagens que atravessam aquelas paragens e a vida dos protagonistas. O homem rico explorador, o trabalhador extenuado, o mensageiro. Eles, cada um ao seu modo, lidam com a mesma falta de sentido, mas, representam categorias distintas, o burguês, o proletário e o religioso, que se põe entre homem e divindade…. Mas, e Vladimir e Gogo? Há uma pista. Em uma passagem um dos protagonistas diz ao outro: “você devia ter sido poeta”, no que o outro responde: “eu fui, não está na cara?”. 


Acredito que a metalinguagem da peça vá bem além das quebras da quarta parede, que há no desenrolar (ou no emaranhar, melhor dizendo) de sua trama. Creio que Vladimir e Estragão sejam artistas, há indicações disso em diversas passagens. Não haveria um paralelo entre o que se despe de sentido na medida em que repete na vida, e a encenação de uma peça, que faz com que o autor, os atores e demais membros da trupe revivam todo o dia a mesma noite? 


Seria a angústia dos dois expectadores (os que criam expectativas) diante da submissão e agressividade do trabalhador extenuado, uma referência à dificuldade do diálogo entre uma arte de algum modo engajada e as classes populares que deveriam ser as protagonistas da luta?



Não seriam a angústia, a frustração, ou mesmo a esperança teimosa dos personagens uma extensão da própria vivência do Zé Celso e da forma com que ele lida com seus próprios fantasmas? Pois é, não creio que a montagem tenha sido por acaso. Não seria surpresa o fato de que alguém, do alto de seus 86 anos, esteja entregue às reflexões acerca do sentido da vida, da solidão, do silêncio do divino e da posição de cada um diante das dores do mundo. 


Às vezes, mesmo depois de tanto tempo fazendo uma mesma coisa, é pertinente que se indague “o quê mesmo que estamos fazendo aqui? Vamos embora?”, alguém pode até responder “estamos esperando Godot”, e a saída talvez esteja em subverter tal espera, em não deixar que ela se transforme em uma crescente paralisia. Zé Celso cansou de esperar Godot, e nós?



En attendant Godot foi escrita originalmente em 1949 pelo dramaturgo irlandês Samuel Beckett e estreou nos palcos em 1953 sob a direção de Roger Blin, tida como uma das peças mais importantes do chamado Teatro do Absurdo, ela foi remontada em diversas partes do mundo e é apontada como uma das produções mais importantes da história do teatro. Esta é a terceira vez que o Teatro Oficina realiza a montagem.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Culpa e compulsão em “A Baleia” de Darren Aronofsky


Um artista, ao criar uma obra de arte, ainda que adaptada a partir de outra, empresta a ela seu próprio horizonte de sentido, na obra ficam impressos sua visão de mundo, seus sentimentos e suas questões mais profundas. Evidente que isso nem sempre acontece e, normalmente, a falta de uma marca autoral é o que distingue uma obra de arte de um mero produto de entretenimento. Quando mais o autor se sujeita a fórmulas preconcebidas, menor será a sua marca autoral. Se em uma adaptação, por exemplo, o autor se sujeita por completo ao texto original, a marca autoral que prevalecerá será a do autor original.

Darren Aronofsky é um exemplo de cineasta com uma marca autoral fortíssima, que perpassa todos os seus filmes, sem excessão. No caso dele, a marca está em aspectos técnicos, mas principalmente nos questionamentos levantados pelas narrativas. Há dois temas que podem, a partir de um olhar mais atento, ser identificados em todos os filmes, são eles culpa e compulsão. E a relação entre eles é de uma causa e efeito que se retroalimenta, a culpa produz compulsão, a compulsão que nunca se satisfaz produz mais culpa, que atenua mais ainda a compulsão e assim por diante.

Ao lidar com a culpa, os personagens de Aronofsky esboçam dois tipos de comportamentos, que, apesar de parecem opostos, a linha que os separa é extremamente tênue. Há os que desejam entregar desempenhos transcendentais para aplacar a culpa, e há os que se destroem em razão dela. É na autodestruição como parte do processo no qual o personagem se transcendentaliza que estes comportamentos opostos acabem se tocando. 


“Cisne Negro”, “Pi”, “Noé”, “Fonte da Vida” e “O Lutador” são exemplos do primeiro caso, “Réquiem para um Sonho” e “Mãe” e “A Baleia” do segundo. Seja como uma opção abnegada ou como uma consequência de ir além dos próprios limitas na busca pela transcendentalidade, o fim acaba sendo comum: o sacrifício como forma de expiação da culpa. Culpa e compulsão dialogam com outros dois temas recorrentes: pecado e expiação. Não por acaso, o elemento religioso está presente em boa parte das obras.

Sem entender isso, que seria o básico para analisar uma obra de Aronofsky, “A Baleia”, seu filme mais recente, certamente se torna um desastre. Mas, do contrário, a compreensão das questões levantadas dão uma outra dimensão para o roteiro. Definitivamente, não se trata de um filme de atuação, assim chamado aqueles em que o desempenho de um ator ou de um grupo de atores se sobrepõe aos demais aspectos. Brandan Fraser entrega um desempenho assustador, mas, é preciso ressaltar que não é um aspecto descolado dos demais. 

É um erro, neste e em qualquer outro filme, separar aspectos técnicos da narrativa. Aspectos técnicos servem à narrativa, por isso não há possibilidade de avaliá-los sem considerar o básico: a forma com que eles se relacionam com os demais elementos da linguagem cinematográfica. Dito isso, é preciso ressaltar o quanto a direção de arte, a montagem, a edição de som, e fotografia com toda sua textura, ajudam em conjunto a compor um ambiente opressivo, sempre à meia luz, o que ajuda a reforçar a ideia de reclusão do personagem. 


A falta de luz nos ambientes pode ser interpretada como uma metáfora para a ausência de Deus, e a grande questão posta é a seguinte: ou Ele não existe, ou abandonou o personagem principal (percebam que esta é apenas mais uma das relações paternas, que envolvem abandono, abordadas pelo filme). 

Se o escuro representa a ausência de Deus, a luz, obviamente irá representar sua presença. A casa está tomada pelas sombras, mas lá fora há luz (fisicamente falando e metaforicamente também, basta que lembremos do pássaro que vem à janela para comer). Outro ponto que reforça tal interpretação é o de que em pelo menos três momentos da narrativa, personagens são impedidos de sair da casa pela chuva que cai lá fora. Estaria Deus dando uma chance de reconciliação para os personagens? Uma passagem que envolve dois deles aponta para uma resposta para esta pergunta.

Referências claras à obra “Moby-Dick” de Herman Melville estão espalhadas por todo o filme, a começar pelo nome. Na história contada pelo livro o caçador passa a vida inteira perseguindo a baleia, quando ele finalmente a alcança, todo o esforço da busca perde o sentido. A baleia não era o importante, era apenas uma compulsão. A compulsão afasta do que é real de fato. 



Percebo ainda outra referência, esta não tão clara, que é à obra “A Metamorfose” de Franz Kafka, que tem como tema, adivinhem… a culpa. Tal como Gregor Sansa do livro de Kafka, Charlie o personagem de “A Baleia” se enxerga como uma figura monstruosa capaz de causar repulsa em quem quer que seja. A aparência é, em ambos os casos, uma metáfora para a culpa que corrói internamente. 

E Deus diante da culpa? Se agradaria do autoflagelo de quem se reconhece como pecador. Esta é outra questão que vem à toda em alguns momentos. No fim das contas, o mal maior talvez seja a hipocrisia, o que faz com que cada um tenha receio de se expor como realmente é, e a “salvação” talvez esteja na aceitação do real, em outras palavras, em se mostrar como se é, ou em ser autêntico.


quarta-feira, 24 de agosto de 2022

GAME OF THRONES - A Série

GAME OF THRONES - porque eu não consigo enxergar, para além dos aspectos técnicos, nada de extraordinário na série. 


Nos últimos dias descobri que não só as sobre política envolvem emoções à flor da pele e posições extremas. Discutir Game of Thrones pode ser mais arriscado do que debater se foi ou não golpe. O lado ruim de discussões acaloradas é que nem sempre escutam o que você diz e frequentemente lhe atribuem posições que você não defendeu. 


Pra tentar deixar claro o meu ponto de vista e a leitura que fiz das três temporadas da série que assisti, decidi escrever esta breve análise. Pra começar, preciso deixar claro que não acho a série ruim, longe disso, no tocante aos aspectos técnicos ela é grandiosa. O problema, como defendi desde a minha frustrada tentativa de fazer uma maratona, está no roteiro e na construção dos personagens. 


A trama é desinteressante? Não. Se o fosse a série não teria despertado a curiosidade de tanta gente. O que é necessário analisar é se há de fato valor artístico na construção da narrativa ou se há apenas mero entretenimento. Antes de qualquer consideração, é necessário distinguir arte de entretenimento, a arte pressupõe diálogo entre obra e  expectador, o entretenimento envolve apenas estímulos sensoriais.   


Mas, porque abordar isso? A pretenção artística é atributo necessário para a qualidade de uma obra? Não, a obra deve ser avaliada de acordo com aquilo que ela se propõe a ser. O equívoco talvez esteja no fato de que Games of Thrones é entretenimento, bom entretenimento por sinal, e andou sendo vendido, principalmente pelo público, como obra de arte. E, ao menos nas três temporadas que assisti, não há muito espaço para diálogo. 


A trama de Games of Thrones é simples e superficial, uma falsa noção de complexidade é criada pela presença de um grande número de personagens e de sub-tramas. Tal como num tabuleiro de xadrez, visto por alguém que analisa o jogo sem participar dele, o elemento surpreendente são os movimentos e os seus resultados e não as motivações que os tornaram possíveis. 


Em Games of Thrones a velocidade, advinda da necessidade de manter o expectador médio preso à série, sacrifica qualquer possibilidade de exploração das motivações e das bases subjetivas dos personagens. Desde a primeira temporada, criou-se a ideia de que todos são capazes de tudo, o que elimina a ponderação acerca de cada ato. Um personagem pode ordenar a degola de outro e isso causará surpresa, mas não o tipo de espanto que leva à reflexão, sequer há tempo ou espaço no desenrolar da trama para que o espectador reflita acerca dos estímulos que recebe.


O contexto extremamente adverso no qual a história se desenvolve brutalizou a grande maioria dos personagens, tirando-lhes a humanidade. A perda da humanidade, no entanto, não se dá em um processo, ela ocorre subitamente em alguns casos ou é inata aos personagens em outros, apenas um personagem foge à esta lógica, Tyrion Lannister. Há deste modo uma sujeição da maioria absoluta dos personagem aos mecanismos da narrativa. Abre-se mão daquilo que poderia ser uma base para a complexidade em prol de artifícios, que visam tão somente a produção de estímulos, que têm como fim a fidelização do expectador. 


Nos comentários do post que rendeu a discussão, defendi que, no tocante à construção dos personagens, até mesmo The Walking Dead, série irregular, era superior a GOT. A TWD soube em diversos momentos abrir mão da velocidade e da ação, pra desenvolver melhor as tramas e as relações que se dão entre os personagens. Há, tal como em GOT, uma situação de perda da humanidade, mas aqui ela se dá em um processo, no qual o maior inimigo de cada personagem não é um zumbi que possa estar à espreita, mas ele mesmo. A reflexão acerca de cada ato é o que confere valor artístico à narrativa.


O herói trágico, base de quase tudo que se produziu na literatura e em outras narrativas nos últimos milênios, tinha como principal característica a presença de uma falha de caráter ou pecado que o conduzia à peripécia, que por sua vez lhe levava à desgraça. Este formato funcionou e ainda funciona tão bem porque a simples presença de uma falha ética ou moral torna o personagem mais humano e é a sua reação ou reflexão diante desta falha que lhe torna complexo. Ainda que ele venha a se desumanizar, isso ocorre de forma gradativa, diferente do que ocorre com os outros persongens tidos como secundários, nos quais a superficialidade da construção pode não necessariamente se tornar um problema.


Em GOT não uma moral externa ou uma ética interna que possa servir como mediador de condutas ou base para conflitos internos ou perturbações. A ausência destes reguladores, que não é um defeito em si, torna a grande maioria dos personagens rasos e seus comportamentos previsíveis, ainda que o elemento surpresa esteja presente no efeito de suas ações. Se objetivo da série fosse o de retratar a trajetória de apenas um personagem, Tyrion, talvez o objetivo fosse alcançado com maior sucesso, mas a narrativa aposta na manutenção de diversos núcleos dramáticos, mas sem inserir neles personagens com um mínimo de profundidade.


Outro ponto que merece ser discutido é o suposto pioneirismo da série. A verdade é que não há nada de novo nela. Nem o sexo quase explícito, nem a violência ou a morte de personagens centrais é novidade. Hitchcock matou uma de suas protagonistas antes da metade do filme, isso em 1960. Em 1976, o filme Império dos Sentidos, um clássico de Nagisa Oshima, chocou meio mundo com sequências de sexo real e explícito - a primeira vez que isso acontecia fora de um filme pornô - perto da sequência em que um personagem introduz um ovo cozido na vagina de sua parceira e o come em seguida, as passagens picantes de GOT parecem saídas de programas adolescentes. O fato é que de lá pra cá tudo isso deixou de ser novidade, o mundo é outro, não há mais contestação em mostrar sexo ou violência, apenas uma satisfação dos desejos de uma parcela hipócrita da população que busca na ficção justamente aquilo que condena na vida real. 


Um último ponto que merece menção é a ancoragem da série na obra original, recorrente nos argumentos de quem defende a qualidade de seu roteiro, frequentemente ouve-se a justificativa: "no livro era assim", mas isso não deve ser argumento. Qualquer obra adaptada deve ser completamente independente da obra que a originou, se há uma relação de dependência é porque o processo de adaptação não foi bem sucedido. Não li os livros, mas aparentemente lá os personagens são melhores construídos, há evidentemente a questão do tempo, o ritmo literário abre mais possibilidades de desenvolvimento. Todavia, isso não é justificativa para a notável pressa e superficialidade da trama na série. 


A minha conclusão é a de que GOT pode ser um ótimo entretenimento, com notáveis atributos que justificam o hype criado em torno dela, isso, no entanto, não exclui o fato de que seu roteiro não possui absolutamente nada de extraordinário e seus personagens não passam de peças sujeitas às movimentações que objetivam tão somente levar aos sucessivos plot twists. 


P.S. Um último ponto, prometo: premiação não é sinônimo de qualidade. As entidades que organizam e entregam os prêmios agem seguindo a lógica do mercado e estão sujeitas às politicagens internas, compra de votos e pressões de canais de TV e produtoras. As injustiças não são raras, algumas delas são verdadeiras aberrações (David O. Russel manda lembranças). Isso quer dizer que todos os prêmios recebidos por GOT foram injustos? Absolutamente que não. Quer dizer apenas que tais premiações não devem servir de parâmetro para nada.r


Texto escrito e publicado no Facebook em 24 de agosto de 2017. 

domingo, 14 de agosto de 2022

Linguagem e Revolução em “Duas ou Três Coisas que eu Sei Dela” de Jean-luc Godard


“Os limites da minha linguagem denotam o limite do meu mundo”, disse Wittgenstein em sua primeira obra Tractatus Logico-Philosophicus de 1921. Godard retoma esta reflexão no filme “Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela” (1967), na passagem reproduzida abaixa. Na narração em off, feita pelo próprio Godard, a expansão da consciência é apontada como saída para a limitação imposta pela linguagem. 


Pode-se dizer que o que Godard propõe é uma ruptura com o modelo filosófico proposto pelo Wittgenstein naquela que é conhecida como sua primeira fase (a do Tractatus), e o caminho proposto é o inverso do percorrido pelo filósofo. Se este da um passo além  do paradigma da consciência ao considerar que o limite da linguagem é o limite do mundo do indivíduo, Godard da um passo atrás e conclui o inverso, que o mundo pode ser expandido através da consciência e o caminho para isso seria a subversão da linguagem.


O filme, contudo, não para nas reflexões de cunho ontológico, que encaram a linguagem como mero instrumento de decodificação do mundo, há uma forte crítica política ao capitalismo, à sociedade de consumo e à guerra do Vietnã, temas que podem ser facilmente correlacionados. O capitalismo se fortalece na medida em que impulsiona o consumo enquanto silencia os sistemas dissidentes, a guerra vende produtos, enquanto que outros produtos (como os mass medias) criam a ilusão de que a guerra é necessária e seus absurdos aceitáveis. 


Mas, de que forma as reflexões sobre a linguagem e as críticas políticas se relacionam? Vejamos: A revolução possível (aquela capaz de frear o estágio do capitalismo mostrado no filme) passa pela imaginação de um outro mundo possível, o que, para Godard,só poderia pode ser feito tendo como ponto de partida a subversão da linguagem. Se a linguagem convencional é um mero instrumento limitado pela visão de mundo, a experimentação no campo da linguagem pode revelar outros mundos. 


A metáfora da cidade de Paris, que passava na época por processos de modernização estrutural e por uma expansão tecnológica da industria, remete às teorias estruturalistas, nas imagens que da cidade, que surgem a todo momento na tela, o que se vê é a composição ou revitalização das estruturas sobre as quais está sendo edificado um novo estágio social: Edifícios, vias, pontes, viadutos… todas estas edificações remetem à solidez de uma estrutura social que se encontra ainda em expansão. “Objetos mortos permanecem vivos, pessoas estão frequentemente mortas”, conclui o narrador.


O mundo físico e não sua representação na linguagem é a metáfora porque o fundamento último do modelo de organização social se encontra na própria linguagem. É na linguagem que está a estrutura que precisa ser reconhecida como tal e destruída para abrir caminho para a idealização do novo. Esta seria a revolução possível. Plenamente consciente disso, Godard faz do próprio filme um jogo de metalinguagem: ele aborda a subversão da linguagem como tema ao mesmo tempo em que subverte a linguagem cinematográfica como experimento.


Toda a reflexão, no entanto, não deixa de soar um tanto datada, visto que Godard aparentemente ignora as contribuições do Wittgenstein da segunda fase, que vai muito mais além ao romper com as pressupostos da primeira fase, ao reconhecer o caráter intersubjetivo da linguagem, rompendo, deste modo, em definitivo com o paradigma da consciência. Ao considerar que a linguagem possui caráter intersubjetivo, infere-se que haja um freio social que impede que a linguagem seja desconstruída no âmbito da consciência de um único sujeito (os elementos da linguagem não podem ser simplesmente aquilo que o indivíduo quer que eles sejam). 


A revolução possível, ao contrário do que imaginou Godard, não se efetiva apenas pela ruptura com modelos de linguagem no âmbito da consciência de cada indivíduo. Há toda uma tradição (um chão linguístico) que precisa ser enfrentada coletivamente tendo o reconhecimento da linguagem não apenas como mero instrumento, mas como condição de possibilidade de qualquer compreensão e da própria existência do indivíduo no mundo (como Heidegger bem compreenderia).

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Realidade e expectativa em “Madres Paralelas” de Almodóvar


Me proponho a escrever estas breves linhas não como uma resenha do filme em si, mas como uma crítica de parte das críticas que li sobre ele. Decido fazê-lo porque algo que considero um equívoco se mostrou de  forma reiterada em grandes partes das análises que li. Apesar de eu ter gostado muito do filme, eu não o colocaria no topo de meu ranking pessoal das obras do cineasta espanhol. Ressalto de antemão que minha divergência em relação a tais críticas não se dá por elas serem negativas, mas por adotarem premissas que, ao meu ver, estão erradas.

Antes de adentrar no ponto central deste breve texto, penso que é necessário fazer algumas considerações, a primeira é a de que Almodóvar é um homem, e, portanto, sua visão sobre o universo feminino, como autor, sempre vai ser a partir da perspectiva de um homem, não deveria haver dificuldade para entender isso, mas aparentemente ainda há. Algumas análises apontam isso como demérito e não como fatalidade. 

Outro ponto que vale ressaltar é que os filmes de Almodóvar não são e não devem ser analisados como tratados sobre o universo feminino, eles não possuem pretenções sociológicas e possuem pouco compromisso com a ideia de se fazer um retrato da vida como ela é, o que é uma característica essencial do melodrama, subgênero pelo qual Almodóvar sempre transitou.

O problema, extremamente recorrente em muitos críticos, e aqui chegamos no ponto central deste texto, é querer que a obra seja como eles próprios  a imaginaram e não como ela é. Sempre defendi que a análise de uma obra de arte deve ser pelo que é e nunca pelo que poderia ter sido. O campo do “poderia ter sido” será sempre demasiadamente grande e tão diverso quanto o número de críticos que se proponha a idealiza-lo.



Este é o problema em boa parte das análises de “Madres Paralelas” que li. Curiosamente, percebo que há uma preguiça dos autores de tais análises de tentar relacionar os dois arcos narrativos presentes no filme, aí fica a impressão de que um invade o outro em dado momento da narrativa, sendo que ambos estão entrelaçados desde o início. Faltou nestes casos a compreensão de que uma das “madres” às quais o título faz referência é a pátria espanhola e que a conotação política não emerge apenas no final do filme. Deveria ser algo óbvio, mas pra muitos aparentemente não foi. 

Parte das críticas negativas que li se concentrou no fato de que Almodóvar deixou de aprofundar determinados aspectos da narrativa. Porém, este não aprofundamento é em si uma opção narrativa. Se ao escrever um roteiro eu deixo de aprofundar um aspecto em especial, eu estou tacitamente dizendo que o foco deve estar em outro. Mas, parafraseando um personagem de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, enquanto Almodóvar está apontando para a lua, os imbecis continuam a olhar para o dedo.

Há notadamente nas críticas às quais me refiro um conflito entre realidade, o que o filme é, e expectativa, o que o filme poderia ter sido. O que não é algo novo. Fenômeno semelhante ocorreu há mais de 60 anos, em “A Aventura”, clássico de Antonioni, nele há uma expectativa de que a trama se desenvolva em uma direção, o desaparecimento de uma personagem, mas ela acaba tomando outra, a contemplação do vazio existencial de outros dois personagens. Há também em uma obra clássica de Hitchcock uma formidável quebra de expectativa quando aquela que foi a protagonista durante a primeira parte da trama morre e é substituída por outra. 

Tanto em “A Aventura” e no filme de Hitchcock (que evito nominar por conta do spoiler), quanto em “Madres Paralelas” a expectativa criada é um problema do espectador, não do filme como obra de arte. É o ego do crítico/espectador tentando dizer mais sobre a obra que o próprio autor, e neste processo acaba sendo perdido o essencial, a noção do que de fato a obra se propunha a ser. Em, “A Aventura”, por exemplo, quem esperar pelo reencontro da personagem desaparecida não conseguirá embarcar na reflexão proposta sobre a banalidade da existência e sua completa falta de sentido. Em “Madres Paralelas” a atenção dedicada a aspectos secundários da trama pode impedir a compreensão do essencial, a existência do conflito ético entre o que se espera como ser político e o que se faz ou se pretende fazer como indivíduo.



Talvez por estarmos tão apegados a uma narrativa convencional, qualquer ruptura com o esquema baseado em causa/consequência acabe por nos causar certo desconforto. A reação aos saltos no tempo e às abordagens superficiais de temas espinhosos (que não são o foco da narrativa) em “Madre Paralelas” não difere muito da repulsa que filmes com finais abertos normalmente causa em quem se acostumou a ver sempre finais com todas as pontas da trama cuidadosamente amarradas.

Linguagem e Poder


Língua e linguagem não são imutáveis, são construções sociais, sujeitas a mudanças e principalmente capazes de reproduzir os jogos de poder. Língua e linguagem podem ser instrumentos de exclusão e de dominação, há uma vastíssima bibliografia sobre isso. Todo língua é viva, tão viva que pode morrer, o latim é considerado uma língua morta, umas dentre tantas que ruíram junto com verdadeiros impérios, o que deixa evidente a relação entre língua/linguagem e poder. Enquanto viva a língua se transforma, “vossa mercê” se torna “você”, que se torna “vc”.

Há uma tentativa de reduzir a linguagem às normas gramáticas que regulamentam o uso formal do idioma, que na prática pouco ou quase nunca ocorre. É nestas normas gramaticais que aqueles que temem transformações sociais se apegam quando determinado uso da língua é apontado como capaz de validar um mecanismo de dominação, eles se esquecem, no entanto, que, ainda que de forma mais lenta, a norma culta também muda. O Brasil, vale lembrar, passou por reformas ortográficas internas em 1943 e 1971, e em 1990 assinou o acordo ortográfico que visava uniformizar o uso gramatical do português em todos os países que o têm como língua principal (até o momento apenas Brasil e Portugal colocaram o acordo em prática). 

O problema, contudo, é que a coletividade tende a aceitar melhor a imposição de determinado uso como norma culta quando este é posto por setores dominantes da sociedade, ainda que não façam sentido algum. Somos até mesmo capazes de aceitar que há alguma razão para a existência de vários tipos de porquês (junto, separado, acentuado e não acentuado), mas, tendemos a repudiar quando a forma adversa da linguagem (adversa no sentido de oposição mesmo) vem como resposta de setores tradicionalmente dominados.

Quando determinado grupo alerta sobre a carga pejorativa que determinados termos trazem (como no caso de “índios”, termo que deve ser substituído por “povos indígenas” ou “povos originários” ou “escravos”, que deve ser substituído por “escravizados”), a reação primeira de grande parte das pessoas é a de dizer que “este politicamente correto tá ficando muito chato”, “isso são só besteiras” ou que “não tem nada de errado porque todo mundo sempre falou assim”. Todavia, vale recordar: (1) rever posturas sempre será algo “chato” pra quem está apegado aos próprios erros; (2) não são só “besteiras”, são maneiras de exercício de poder que precisam ser confrontadas; (3) não foi sempre assim e não precisa continuar sendo porque a língua é vida. 

Outros poderiam dizer ainda que está em curso uma tentativa de politizar tudo, contudo, não é difícil compreender que tudo aquilo que afeta de algum modo a vida social é em sua essência um ato político, seja de contestação ou de conformação ao poder (ou aos poderes) estabelecido. O uso que fazemos da língua é político, sempre foi assim, ele confere e restringe acessos, reforça ou destrói pressupostos, valida ou desconstrói determinado sistema de dominação. 

A linguagem é, recorrendo a Heidegger e Gadamer, condição de possibilidade para se chegar a aquilo que é, deixando de lado aquilo que aparenta ser. Para se compreender o sistema de dominação como um todo é necessário “revolver o chão linguístico no qual está assentada determinada tradição”, ou em outras palavras é necessário mostrar aquilo que a linguagem está sendo usada para encobrir, pois o exercício do poder consiste justamente na substituição do que é, pelo que aparenta ser, ou vice versa.

No exercício de revolver o chão linguístico se descobre que encoberto pela tradição (o “isso sempre foi assim”) estão questões raciais, de classe e de gênero, que não precisam ser perpetuadas. Tanto o poder de outrora quanto o de hoje precisam ser confrontados para que tais questões deixem de ser instrumentos de dominação e esse confronto passa, necessariamente, pela linguagem.


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