O Bebê de Rosemary (Rosemary's Baby) - 1968. Dirigido e escrito por Roman Polanski, baseado na obra de Ira Levin. Direção de Fotografia de William A. Fraker. Música Original de Christopher Komeda. Produzido por William Castle. William Castle Productions / USA.
O Bebê de Rosemary (1968) foi o primeiro filme de Roman Polanski produzido e rodado nos Estados Unidos, pode-se dizer que ele é um fruto do momento histórico pelo qual Hollywood passava e para entender isso vale a pena fazer um breve retrospecto: Aquele era um período de experimentação e de rompimento com antigos paradigmas. Na Europa esta transformação no cenário cultural tinha começado alguns anos antes, no final da década de 50, e era natural que mais cedo ou mais tarde a reinvenção pela qual o cinema passara lá e em diversas outras parte do mundo (inclusive no Brasil com o Cinema Novo) chegasse à já envelhecida meca americana dos sonhos. Os grande estúdios, que demoraram para compreender o que estava acontecendo no resto do mundo, viviam um período de recessão econômica e isso era uma consequência do crescente desinteresse pelas grandes produções, nas quais a suntuosidade se sobrepunha ao valor artístico, e da popularização da TV, que impactava negativamente nas cifras arrecadas nas bilheterias.
Com a crise financeira e de criatividade que a indústria vivia, a contratação de cineastas europeus, que estavam acostumados a produzir com poucos recursos, se tornara uma opção a ser considerada. Roman Polanski, que ganhara notoriedade com seu primeiro filme, A Faca na Água (1962), e se tornara um cineasta ainda mais respeitado após o lançamento de Repulsa ao Sexo (1965), foi então convidado para filmar em Hollywood, este convite o fez mudar para os Estados Unidos em 1968, para rodar aquele que se tornaria o segundo filme de sua 'trilogia do apartamento'. O efeito de todo este panorama pode ser facilmente observado em O Bebê de Rosemary, principalmente na trama obscura, que toca em temas que vão muito além do viés ocultista presente na história contada. Transcendendo os gêneros aos quais foi associado, o filme se mostra como uma bem construída metáfora da decadência do american way of life e da própria indústria cinematográfica.
A história gira em torno do casal Rosemary (Mia Farrow) e Guy Woodhouse (John Cassavetes), ele é ator de teatro e sonha em trabalhar no cinema, ela é uma mulher submissa e dedicada ao lar, seu maior sonho é ser mãe. Eles constituem à princípio uma representação quase perfeita do sonho americano, eles se amam, estão felizes e fazem planos juntos para o futuro. No entanto, tudo começa a desandar depois que eles compram um apartamento em um antigo prédio do centro de Nova Iorque. O lugar foi no passado o palco de estranhos casos, que envolviam bruxaria e mortes misteriosas... Logo depois de se mudarem, Rosemary e Guy conhecem um casal de idosos que moram no apartamento ao lado. Minnie (Ruth Gordon) e Roman Castevet (Sidney Blackmer), os vizinhos, se mostram gentis e prestativos e logo ganham a confiança do casal recém-chegado.
Pouco tempo depois, Rosemary engravida e as fortes dores que ela sente no início da gestação indicam que tem algo de estranho acontecendo com o seu bebê, aconselhada pelos vizinhos, ela desiste do acompanhamento tradicional e se submete a um tratamento alternativo, proposto pelo doutor Sapirstein (Ralph Bellamy), um dos mais respeitados obstetras do país. O tratamento, no entanto, produz poucos resultados. Tomada pela paranoia, Rosemary passa a suspeitar que existe uma conspiração sendo arquitetada contra ela, uma trama macabra que envolve a criança a quem ela dará a luz e os interesses obscuros de um grupo de satanistas. Ela passa então a desconfiar de quase todos que estão à sua volta, inclusive de Guy, que aparenta não levar a sério aquilo que ela sente, nem tão pouco suas suspeitas.
Apesar da questão do satanismo ser a premissa que sustenta a trama do filme, o que nos mete medo nele não são as questões metafísicas, mas aquelas que são reais e passíveis de acontecer com qualquer um de nós. Sua trama é apreensiva porque ela dialoga com nossos próprios medos, dentre eles o de estar só e desamparado, o de ser traído por quem mais confiamos e, principalmente, o de ver o nosso projeto de vida falir diante de uma situação sobre a qual não temos controle nenhum. Nos compadecemos da situação na qual Rosemary se encontra porque antes nos identificamos com os seus planos e sonhos. Em uma análise da obra podemos tomar a protagonista como um arquétipo da sociedade americana e, por extensão, da nossa própria (afinal compartilhamos com eles a mesma ética triunfalista que contempla a felicidade e a autorrealização como o fim maior de nossas vidas), ela personifica a fragilidade do indivíduo frente às ameaças e peripécias que podem distanciá-lo de seus projetos e de seus sonhos.
Já a crítica à indústria cinematográfica é feita de forma sutil, tanto que ela poderá passar facilmente despercebida para alguns. Na trama, Guy preza pelo valor artístico das obras nas quais atua, mas ele também quer reconhecimento e no afã de conquistar um papel de destaque ele acaba se vendendo e traindo suas próprias convicções. Neste aspecto está uma referência clara ao esvaziamento artístico que já afetava uma significava parcela da produção americana, que prezava mais pelo resultado financeiro e pela glória do que pelo valor artístico de cada obra. Curiosamente, John Cassavetes, que interpreta o personagem, acabou percorrendo, em sua trajetória como cineasta, um caminho bem diferente do escolhido por Guy e graças a isso ele seria lembrado ainda hoje como uma espécie de patrono do cinema independente dos Estados Unidos.
O Bebê de Rosemary já nasceu clássico (me perdoem pelo trocadilho), mas alguns fatos curiosos o tornaram ainda mais cultuado com o passar do tempo e dentre eles estão alguns acontecimentos estranhos que, direta ou indiretamente, teriam o nome do filme associado a eles: John Lennon foi assassinado em 8 de junho de 1980, em frente ao prédio em que morava em Nova Iorque, o prédio é o mesmo no qual o filme se passa. Quatorze meses após a finalização do longa, Sharon Tate, a esposa de Roman Polanski, que estava grávida de oito meses, foi assassinada em um ritual por Susan Atkins, um membro da família de Charles Manson. Atkins era um ex-seguidor de Anton LaVey, o fundador da igreja de satã nos Estados Unidos. Reza a lenda que LaVey teria prestado uma espécie de consultoria sobre os ritos de magia negra durante as filmagens do longa. O caso dos crimes cometidos pelo clã de Manson ficaria conhecido como Helter Skelter, nome de uma canção dos Beatles, que teria supostamente inspirado a série de assassinatos.
É legal também perceber uma espécie de autorreferência que Roman Polanski faz no filme, em determinada passagem, Rosemary diz que "coisas terríveis acontecem em apartamentos", esta declaração simples, banal até, ganha um significado maior quando lembramos que esta foi a premissa sob a qual as tramas de Repulsa ao Sexo (1965) e O Inquilino (1965) também foram edificadas (estas são as outras duas produções que, junco com O Bebê de Rosemary, ficariam conhecidas como a "trilogia do apartamento").
O aparato técnico de O Bebê de Rosemary é soberbo e isso já fica evidente na sequência de abertura do filme, na qual a câmera ronda, pelo alto, o prédio no qual a trama se passa ao som de uma música, quase fúnebre, cantarolada pela própria Mia Farrow. Ainda que sua construção seja relativamente simples, esta cena já consegue nos causar alguns arrepios e isso denota o domínio que Polanski tem sobre a linguagem, o que também pode ser notado no restando do filme, em praticamente todos os aspectos, nos enquadramentos, na fotografia, na direção de arte, nos figurinos (prestem atenção na forma com que a cor da roupa usada ajuda a dissimular as reais intenções dos personagens, outros cineastas poderiam ter optado pelo óbvio, que seria o uso de roupas escuras pelos antagonistas e de roupas claras pelos protagonistas) e na maquiagem (a transformação da protagonista durante o filme é notável e o trabalho de maquiagem colabora muito para isso).
Os excelentes desempenhos do elenco principal potencializam o efeito da trama e agregam ainda mais valor à obra, reforçando a minha tese de que ela já nasceu clássica. A Mia Farrow está ótima e sua interpretação conta muita no processo de identificação entre o público e a sua personagem, o que é fundamental para o bom funcionamento da trama (há o boato de que uma cena de nudez no filme, muito bem construída por sinal, teria sido o estopim para o fim do casamento da atriz com o cantor Frank Sinatra). A Ruth Gordon não deixa nenhuma dúvida de que foi justa a sua premiação no Oscar na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante, o tom caricato que ela dá à sua Minnie Castevet, também é essencial na construção de um dos conceitos mais importantes do roteiro... John Cassavetes, Sidney Blackmer e Ralph Bellamy mantêm o alto nível com grandes desempenhos.
O Bebê de Rosemary ganhou o Oscar na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante (Ruth Gordon), tendo sido indicado também ao prêmio de Melhor Roteiro Adaptado. No Globo de Ouro o filme venceu na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante (Ruth Gordon) e foi indicado aos prêmios de Melhor Roteiro, Melhor Atriz de Drama (Mia Farrow) e Melhor Trilha Sonora.
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A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.