Incêndios (Incendies) - 2010. Escrito e dirigido por Denis Villeneuve, baseado no texto original de Wajdi Mouawad, com a consultoria de Valérie Beaugrand-Champagne. Direção de Fotografia de André Turpin. Trilha Sonora Original de Grégoire Hetzel. Produzido por Luc Déry e Kim McCraw. Produtora: micro_scope / França | Canadá.
O pano de fundo de Incêndios (2010), filme dirigido pelo canadense Denis Villeneuve, é o conflito que há décadas assola o Oriente Médio. Por meio de uma história visceral, que vai de 1970 à 2009, o filme retrata a corrente de ódio que torna aparentemente interminável um conflito que é ao mesmo tempo étnico, religioso e, principalmente, político. Com uma abordagem seca e sem atenuantes, o filme expõe, tal como uma enorme ferida aberta, os diversos tipos de atrocidades cometidos por ambos os lados. Sem maniqueísmos e livre do excesso de dramatização característico do cinema mainstrean, a narrativa abre espaço para um realismo incômodo e extremamente angustiante.
O desenrolar da trama se incia quando os gêmeos Jeanne (Mélissa Désormeaux-Poulin) e Simon Marwan (Maxim Gaudette) são comunicados sobre as últimas vontades da mãe, Nawal Marwan (Lubna Azabal), manifestas por meio de um testamento que ela deixara aos cuidados de seu ex-patrão, um oficial de um cartório de notas. Ela pede aos filhos que procurem o pai biológico e um irmão, que eles nem sabiam que tinham. De acordo com as instruções deixadas, eles deverão encontrar estes familiares e entregar a eles cartas deixadas por ela. À princípio apenas Jeanne se dispõe a atender estes últimos pedidos, o que a leva, sozinha, ao oriente médio (a um país não revelado na trama) em busca de informações sobre o passado da mãe e o paradeiro do restante da família.
Através de sucessivas idas e vindas no tempo, o roteiro mergulha na surpreendente história de Nawa, que vai adquirindo ares de tragédia grega no decorrer de seu desenvolvimento. Quando jovem, a mãe de Jeanne e Nawal se envolvera na guerra entre radicais muçulmanos e cristãos, conflito que assolou a região em que ela vivia, destruindo a vida de um incontável número de pessoas, que morreram, foram presas ou expatriadas durante quase quatro décadas de confronto. As marcas deixadas por este envolvimento foram carregadas por ela até o fim de sua vida e, após sua morte, acabaram sendo legadas aos filhos, que se viram então obrigados a lidar com segredos dolorosos, verdades que nunca tinham sequer imaginado.
A narrativa se distancia ideologicamente do conflito e se aproxima dos personagens e das situações retratadas e isso acaba sendo o seu grande diferencial. Pode soar controverso, dada a frieza observada na condução da história, mas vejo Incêndios como um filme extremamente humanista e é justamente neste humanismo, presente em toda a sua trama, que se baseia a catarse que ele nos proporciona em seu último ato. Porém, diferente do anestésico social que representava na tragédia grega, a catarse funciona aqui mais como um convite à reflexão e à indagação dos porquês da perpetuação de uma realidade tão cruel e, aparentemente, destituída de qualquer senso humanitário...
A narrativa se distancia ideologicamente do conflito e se aproxima dos personagens e das situações retratadas e isso acaba sendo o seu grande diferencial. Pode soar controverso, dada a frieza observada na condução da história, mas vejo Incêndios como um filme extremamente humanista e é justamente neste humanismo, presente em toda a sua trama, que se baseia a catarse que ele nos proporciona em seu último ato. Porém, diferente do anestésico social que representava na tragédia grega, a catarse funciona aqui mais como um convite à reflexão e à indagação dos porquês da perpetuação de uma realidade tão cruel e, aparentemente, destituída de qualquer senso humanitário...
Todo o elenco entrega atuações carregadas de verdade, condizentes com a visceralidade da trama e com a proposta do filme. Destaco o desempenho de Mélissa Désormeaux-Poulin que torna crível, através de sutilezas como expressões e olhares (principalmente olhares), o drama enfrentado por Jeanne, e o de Lubna Azabal, que se entrega de corpo e alma na composição de uma personagem que é extremamente complexa. O aparato técnico do filme também é soberbo, o que potencializa o impacto que a trama, por si só, já seria capaz de provocar. A composição da mise-en-scène trabalha de uma maneira muito interessante o contraponto entre ambientes claustrofóbicos (como uma cela, o interior de um ônibus e até mesmo escritórios) e outros abertos, mas igualmente aflitivos, que reforçam, através do destaque que se dá às marcas da destruição e à aridez da região, a sensação de que se trata de um meio totalmente inóspito.
A excelente montagem dá fluidez à trama, atenua a tenção e ajuda a localizar no espaço e no tempo a enorme quantidade de personagens e situações retratadas em pouco mais de duas horas de filme. Apesar de cobrir um longo espaço de tempo e da complexidade dos eventos retratados, o filme não aparenta ser demasiadamente superficial ou de difícil compreensão em nenhum momento, há um notável equilíbrio, mérito que atribuo à montagem e à decisão, muito bem sucedida, de focar as relações entre os personagens e não o apego a datas e fatos históricos. Destaco por fim o uso de duas músicas do Radiohead, 'Like Spinning Plates' e 'You and Whose Army?', que retratam perfeitamente a falta de sentido e a brutalidade das situações retratadas nos momentos em que são usadas... Não é nenhum exagero afirmar que Incêndios é uma obra-prima, um dos melhores filmes dos últimos anos.
Incêndios foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira.
Confiram também aqui no Sublime Irrealidade a crítica de Os Suspeitos (2013), também dirigido pelo Denis Villeneuve.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.