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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Incêndios

Incêndios (Incendies) - 2010. Escrito e dirigido por Denis Villeneuve, baseado no texto original de Wajdi Mouawad, com a consultoria de Valérie Beaugrand-Champagne. Direção de Fotografia de André Turpin. Trilha Sonora Original de Grégoire Hetzel. Produzido por Luc Déry e Kim McCraw. Produtora: micro_scope / França | Canadá.


O pano de fundo de Incêndios (2010), filme dirigido pelo canadense Denis Villeneuve, é o conflito que há décadas assola o Oriente Médio. Por meio de uma história visceral, que vai de 1970 à 2009, o filme retrata a corrente de ódio que torna aparentemente interminável um conflito que é ao mesmo tempo étnico, religioso e, principalmente, político. Com uma abordagem seca e sem atenuantes, o filme expõe, tal como uma enorme ferida aberta, os diversos tipos de atrocidades cometidos por ambos os lados. Sem maniqueísmos e livre do excesso de dramatização característico do cinema mainstrean, a narrativa abre espaço para um realismo incômodo e extremamente angustiante. 

O desenrolar da trama se incia quando os gêmeos Jeanne (Mélissa Désormeaux-Poulin) e Simon Marwan (Maxim Gaudette) são comunicados sobre as últimas vontades da mãe, Nawal Marwan (Lubna Azabal), manifestas por meio de um testamento que ela deixara aos cuidados de seu ex-patrão, um oficial de um cartório de notas. Ela pede aos filhos que procurem o pai biológico e um irmão, que eles nem sabiam que tinham. De acordo com as instruções deixadas, eles deverão encontrar estes familiares e entregar a eles cartas deixadas por ela. À princípio apenas Jeanne se dispõe a atender estes últimos pedidos, o que a leva, sozinha, ao oriente médio (a um país não revelado na trama) em busca de informações sobre o passado da mãe e o paradeiro do restante da família. 


Através de sucessivas idas e vindas no tempo, o roteiro mergulha na surpreendente história de Nawa, que vai adquirindo ares de tragédia grega no decorrer de seu desenvolvimento. Quando jovem, a mãe de Jeanne e Nawal se envolvera na guerra entre radicais muçulmanos e cristãos, conflito que assolou a região em que ela vivia, destruindo a vida de um incontável número de pessoas, que morreram, foram presas ou expatriadas durante quase quatro décadas de confronto. As marcas deixadas por este envolvimento foram carregadas por ela até o fim de sua vida e, após sua morte, acabaram sendo legadas aos filhos, que se viram então obrigados a lidar com segredos dolorosos, verdades que nunca tinham sequer imaginado.



A narrativa se distancia ideologicamente do conflito e se aproxima dos personagens e das situações retratadas e isso acaba sendo o seu grande diferencial. Pode soar controverso, dada a frieza observada na condução da história, mas vejo Incêndios como um filme extremamente humanista e é justamente neste humanismo, presente em toda a sua trama, que se baseia a catarse que ele nos proporciona em seu último ato. Porém, diferente do anestésico social que representava na tragédia grega, a catarse funciona aqui mais como um convite à reflexão e à indagação dos porquês da perpetuação de uma realidade tão cruel e, aparentemente, destituída de qualquer senso humanitário...


Todo o elenco entrega atuações carregadas de verdade, condizentes com a visceralidade da trama e com a proposta do filme. Destaco o desempenho de Mélissa Désormeaux-Poulin que torna crível, através de sutilezas como expressões e olhares (principalmente olhares), o drama enfrentado por Jeanne, e o de Lubna Azabal, que se entrega de corpo e alma na composição de uma personagem que é extremamente complexa. O aparato técnico do filme também é soberbo, o que potencializa o impacto que a trama, por si só, já seria capaz de provocar. A composição da mise-en-scène trabalha de uma maneira muito interessante o contraponto entre ambientes claustrofóbicos (como uma cela, o interior de um ônibus e até mesmo escritórios) e outros abertos, mas igualmente aflitivos, que reforçam, através do destaque que se dá às marcas da destruição e à aridez da região, a sensação de que se trata de um meio totalmente inóspito.


A excelente montagem dá fluidez à trama, atenua a tenção e ajuda a localizar no espaço e no tempo a enorme quantidade de personagens e situações retratadas em pouco mais de duas horas de filme. Apesar de cobrir um longo espaço de tempo e da complexidade dos eventos retratados, o filme não aparenta ser demasiadamente superficial ou de difícil compreensão em nenhum momento, há um notável equilíbrio, mérito que atribuo à montagem e à decisão, muito bem sucedida, de focar as relações entre os personagens e não o apego a datas e fatos históricos. Destaco por fim o uso de duas músicas do Radiohead, 'Like Spinning Plates' e 'You and Whose Army?', que retratam perfeitamente a falta de sentido e a brutalidade das situações retratadas nos momentos em que são usadas... Não é nenhum exagero afirmar que Incêndios é uma obra-prima, um dos melhores filmes dos últimos anos.


Incêndios foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. 


Confiram também aqui no Sublime Irrealidade a crítica de Os Suspeitos (2013), também dirigido pelo Denis Villeneuve



A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

sábado, 22 de novembro de 2014

Boyhood: Da Infância à Juventude

Boyhood: Da Infância à Juventude (Boyhood) - 2014. Escrito e dirigido por Richard Linklater. Direção de Fotografia de Lee Daniel e Shane F. Kelly . Produzido por Richard Linklater, Jonathan Sehring, John Sloss e Cathleen Sutherland. Produtoras: IFC Productions e Detour Filmproduction / USA.


Boyhood de Richard Linklater é um fruto de uma proposta ousada, ele foi filmado durante 12 anos, o mesmo período que a sua trama transcorre. A ideia era reforçar o realismo da história contada, conferindo a ela uma maior credibilidade e maior aproximação em relação ao público, que tenderia a aceitar com maior facilidade a verossimilhança da narrativa, uma vez que não haveria nela o risco de tropeçar naquilo que boa parte dos filmes que percorrem um longo espaço temporal normalmente tropeçam, que é a habilidade de conseguir, através dos elementos de linguagem, convencer de que há de fato um deslocamento no tempo. Em Boyhood não há maquiagens ou efeitos especiais, nem tão pouco troca de atores para imprimir nos personagens as marcas da passagem dos anos, nada disso se faz necessário porque os atores envelhecem e se transformam junto com os seus personagens. E não é só os atores que se transformam, o mundo muda no decorrer do período de produção e o reflexo disso está presente no filme, da maneira mais natural possível.

Alguns críticos chegaram a afirmar que o convencionalismo do roteiro, escrito pelo próprio Linklater, não fez jus à ousadia conferida pelo formato inusitado, não discordo totalmente desta afirmação, porém, penso que é justamente aí que reside a sacada e o maior trunfo do filme. Na história não há nenhum grande drama, nenhum grande objetivo a ser alcançado e, pode-se dizer que nas quase três horas de duração do filme também não há nenhuma grande reviravolta, o que Boyhood retrata (de uma maneira soberba) é a própria vida e a forma com que ela avança, muitas vezes sem sentido e sem oferecer qualquer tipo de explicação para as mudanças com as quais nos vemos obrigados a lidar. Pode-se dizer que ele é um filme sobre os ritos de passagem (no plural mesmo) pelos quais todos nós passamos em diferentes fases de nossa vida... É antes de tudo um filme sobre o tempo e ele é um de seus principais personagens.


Já no primeiro ato do filme vemos os membros da família, em torno da qual a história gira, lidando com uma primeira peripécia, é apenas uma mudança para uma casa nova, mas esta pequena transformação já é o suficiente para que esbocem comportamentos que serão recorrentes durante quase todo o filme. Mason (Ellar Coltrane), o protagonista, sua mãe (Patricia Arquette) e sua irmã, Samantha (Lorelei Linklater), não sabem lidar com as mudanças que a vida lhes impõe e, por temerem as transformações, eles resistem a elas o máximo que podem. Em uma análise um pouco mais profunda, eu diria que o que os assusta é na verdade o simples decorrer do tempo, que insurge como o grande antagonista da história, um vilão capaz de separar pessoas queridas, destruir relacionamentos e dar à vida rumos diferentes daqueles que tinham sido planejados. 


Mason e Samantha atravessam no filme dois períodos de intensas mudanças, o primeiro deles é a passagem da infância para a adolescência e o segundo, que é retratado já perto do film do filme, é a passagem da adolescência para a vida adulta. Durante este tempo eles lidam com o distanciamento do pai divorciado (Ethan Hawke) e com as mudanças no seio familiar, descobrem os primeiros amores e o senso de responsabilidade e, complexos que são, se transformam como grupo e como indivíduosE não é só em Mason que podem ser observados os efeitos desta implacável ação do tempo, eles estão presentes em toda a família. Em maior ou menor grau, positiva ou negativamente, todos acabam afetados pelas transformações que vivenciam em casa, na escola, no grupo de amigos, no trabalho, ou nos relacionamentos. 


A mãe é afetada de uma maneira diferente, ela aparenta estar o tempo todo correndo contra o grande vilão da história, o tempo, para manter os filhos seguros e a família unida. Numa das passagens mais representativas do filme, ela se depara com o que acredita ser o fim de sua vida, a perda da corrida contra o tempo, que é representada pela independência dos filhos já crescidos e pela falta de um projeto pessoal para abraçar a partir de então, o seu drama é o de não mais conseguir se adequar ao tempo que está vivendo; na passagem em questão, o filho compreende isso e a repreende. Em outro momento emblemático do longa, o pai sentencia em tom reflexivo: "o tempo nos torna mais resistentes"; ele próprio é a prova disso na trama, no entanto esta sentença não pesa apenas sobre ele, é ela que impede cada um dos outros personagens de vergarem, em diversos momentos, diante da já citada ação do próprio tempo.


Boyhood tem a seu favor um atributos que mais admiro no cinema, que é o poder de retratar o trivial, o cotidiano e algo aparentemente não dotado de grande significação com um olhar diferenciado, capaz de evocar inúmeras reflexões e questionamentos sobre a nossa própria vida. O misto de nostalgia e de encantamento diante de uma realidade que nos é apresentada - que não é tão diferente da nossa própria - funciona como uma espécie de convite para revisitar as nossas próprias memórias e para uma reflexão sobre a forma com que nós mesmos estamos lidando com a passagem do tempo e com uma quase inevitável angústia existencial, advinda da noção de que tudo pode passar ou se desfazer em um piscar de olhos... 


Um aspecto que, obviamente, eu não poderia deixar de comentar é a trilha sonora, os nomes presentes dispensam qualquer comentário adicional sobre ela, no entanto, creio que seja necessário destacar que cada canção foi muito bem utilizada na trilha, constituindo um elemento da própria linguagem e não apenas um mero acompanhamento, no mais, resta dizer que estão nela nomes como Arcade Fire, Coldplay, The HivesGeorge HarrisonPaul McCartney, Daft PunkFoo FightersThe Flaming LipsGary GlitterVampire WeekendPhoenixKings of LeonBob DylanFoster the PeopleYo La Tengo e os brasileiros Moreno VelosoLuísa Maita



A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Wish I Was Here

Wish I Was Here - 2014. Dirigido por Zach Braff. Escrito por Zach Braff e Adam J. Braff. Direção de Fotografia de Lawrence Sher. Produzido por Zach Braff, Adam J. Braff, Michael Shamberg e Stacey Sher. Produtoras: Worldview Entertainment, Double Feature Films e Wild Bunch / USA.


Como reagir em um daqueles momentos em que tudo aparenta estar fora de seu devido lugar e a vida nos surpreende com peripécias que parecem estar muito além daquilo que conseguimos suportar? Esta questão é o alicerce da trama de Wish I Was Here (ainda sem título nacional), o novo filme dirigido por Zach Braff. Diferente do que o seu mote sugere, não se trata tão somente de um drama, aqui, tal como em seu primeiro longa, Hora de Voltar (2004), Braff consegue a proeza de dosar na medida certa o trágico e o cômico e o resultado é uma obra que encanta e que emociona sem perder em momento algum a leveza, que se sobressai em situações inusitadas, diante das quais um riso, que chega a ser inocente, é quase inevitável. 

Seguindo o que considero ser uma tendência no cinema indie americano atual, Wish I Was Here retrata em sua trama uma América bem diferente daquela que Hollywood sempre mostrou; distante do padrão "terra das oportunidades", o que vemos aqui é um país de oportunidades minguadas, ainda assolado pelo fantasma do desemprego. É neste contexto que Aidan Bloom (vivido pelo próprio Zach Braff), o personagem central, está inserido. Ele é casado, pai de dois filhos e está desempregado. Aspirante a ator, ele ainda espera conseguir um papel de destaque e enquanto isso tenta sobreviver de pequenos trabalhos em comerciais. Sua esposa, Sarah (Kate Hudson), se torna a provedora da casa e, mesmo sendo frequentemente assediada por um colega de trabalho, ela se mantém no emprego para não tirar do marido a chance de viver um sonho cada vez mais distante, que ele continua a alimentar. 


A situação se complica ainda mais quando Gabe (Mandy Patinkin), o pai de Aidan, descobre que está com uma doença terminal, ele decide se submeter a um tratamento experimental que é bem caro e por isso deixa de ajudar no pagamento do colégio das netas. O protagonista se vê então diante de duras missões: conseguir um emprego rentável, reunir a família que está se desintegrando, não deixar que os filhos sejam obrigados a ir para a escola pública e ainda dar todo o suporte que o pai precisa. O problema é que ele não tem a mínima ideia de como fazer tudo isso e a sua falta de jeito no trato com estas situações torna cada tarefa ainda mais difícil. Durante o desenvolvimento do filme, é interessante notar o destaque que os enquadramentos dão para o rosto cansado e as rugas já salientes de Aidan; o fato dele já não ser tão jovem é apenas mais um complicativo, que atenua seu drama. 


Temas ásperos como a proximidade da morte, a desestruturação familiar e a crise econômica são retratados pelo filme com uma sutileza tamanha, que pode ser facilmente confundida com despretensão, ledo engano, afinal Braff demonstra ter plena ciência de onde quer chegar, sabiamente ele costura situações que, destituídas da sutileza, poderiam ser facilmente confundidas com um amontoado de clichês; aqui no entanto elas compõem um retrato tragicômico da atual situação dos Estados Unidos; situação esta que é marcada não só pela crise econômica, mas também pela crise de referenciais (tão bem exploda em uma das instituições retratadas no filme: o colégio judeu ortodoxo onde os filhos de Aidan estudam).   


Wish I Was Here provavelmente não figurará nas listas de melhores do ano, não será indicado a prêmios importantes para a indústria cinematográfica e tão pouco será apontado como uma obra-prima. Ele, no entanto, tem a seu favor a capacidade de cativar pela simplicidade e este pode ser o seu grande trunfo para envelhecer tão bem como Hora de Voltar... Destaco a ótima trilha sonora, composta  por nomes como Cat Power e ColdplayBob DylanThe Shins (como já era de se esperar) e os brasileiros do Bonde do Rolê; e o ritmo bem conduzido, que faz com que seu tempo de duração passe em um piscar de olhos. 

Curiosidade: A produção do filme, que custou dois milhões de dólares, foi realizada com o apoio do próprio público por meio de uma campanha de crowd funding (forma de financiamento coletivo). 


Assistam ao trailer de Wish I Was Here no You Tube, clique AQUI !


Confiram também aqui no Sublime Irrealidade a crítica de Hora de Voltar (2004), também dirigido pelo Zach Braff. 

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

sábado, 10 de maio de 2014

A Professora de Piano

A Professora de Piano (La Pianiste) - 2001. Escrito e dirigido por Michael Haneke, baseado na obra de Elfriede Jelinek. Direção de Fotografia de Christian Berger. Produzido por Veit Heiduschka. Produtoras: Les Films Alain Sarde, MK2 Productions, Wega Film, Arte France Cinéma e Österreichischer Rundfunk (ORF) / França | Alemanha.


O maior risco que se corre diante de um filme complexo como A Professora de Piano (2001) de Michael Haneke é o de avaliá-lo de forma reducionista, tomando como critério apenas os seus aspectos mais aparentes. É em parte devido a isso que, nos anos que seguiram seu lançamento, o filme se tornou vítima da repulsa de muitos críticos e cinéfilos que o consideraram uma obra agressiva demais. Todavia, a pressuposta agressividade de algumas sequências se torna um detalhe pequeno diante da profundidade dos temas que ele aborda, mas, se tal profundidade não for percebida ou for negligenciada sobra apenas aquilo que está na superfície. A percepção limitada dos significados realmente pode tornar a experiência de assisti-lo ainda mais incômoda - neste ponto, vale lembrar que a compreensão dos temas abordados, no entanto, não torna esta experiência menos angustiante, principalmente se chegarmos à conclusão de que aquilo que nos é mostrado, apesar de ser uma situação extrema, é o resultado de questões existenciais e de aspectos presentes nos relacionamentos que não nos são totalmente estranhos. 

Classifico A Professora de Piano como um filme sobre relações de dominação e os conflitos que elas provocam nos relacionamentos interpessoais e no psicológico de cada indivíduo. Para que eu possa tentar explicar tal interpretação, é necessário primeiro comentar quem é a personagem central, e relembrar alguns de seus relacionamentos e o meio social no qual ela está inserida. Erika Kohut (Isabelle Huppert), a professora à qual o título do filme no Brasil se refere, é uma mulher de meia idade que vive com a mãe (Annie Girardot) em um pequeno apartamento. Especialista nas obras de Schubert e Schumann, ela é respeitada por todos no conservatório em que trabalha. Sua rigidez no trato com os alunos evidencia o seu perfeccionismo e sua dedicação extrema aquilo que faz. Com certa maestria, ela consegue intercalar sua vida social em um meio repleto de pompa e circunstância e suas incursões por um submundo de depravação, no qual ela mergulha em busca por prazeres doentios.


A chegada de um novo aluno, Walter Klemmer (Benoît Magimel), faz com que Erika vislumbre a possibilidade de finalmente vivenciar algumas de suas fantasias. O jovem rapaz não consegue esconder a paixão que sente por ela e a aparente submissão no qual este ardente sentimento o coloca o torna um alvo em potencial para os jogos que ela anseia por em prática. À princípio, Erika se nega a ceder às vontades de Walter, mas logo em seguida ela o coloca de volta no controle (ainda que de forma relativa), ao entregar para ele uma lista daquilo que ela espera que ele faça com ela. Similar a um manual de masoquismo, esta lista contém o passo-a-passo de jogos sexuais repletos de violência. Ao entregar a a lista, a professora pede que durante a realização dos jogos a sua vontade seja completamente ignorada e que seu atos contrários ao roteiro combinado sejam impedidos e/ou silenciados, ainda que de forma violenta, se necessário.

A análise da relação de Erika com sua mãe é o ponto de partida para que se possa compreender alguns de seus atos; não é por acaso que filme tenta deixar evidente, já em sua primeira sequência, os conflitos presentes neste relacionamento. Aqui se constrói a primeira relação de domínio presente na trama: apesar de já ser adulta Erika continua sendo tratada pela mãe como uma adolescente que precisa ter seus atos vigiados e sua vontade silenciada. Totalmente submissa, a pianista se vê diante de uma situação com a qual não sabe lidar. Apesar de tudo, nota-se que ela ainda sente um amor um tanto distorcido pela mãe e é este amor que a torna tão vulnerável e suscetível à culpa que lhe corrói em diversos momentos. É a ânsia de se libertar deste julgo que a leva a tentar construir outras relações de domínio, nas quais possa ocupar posições diferentes. Curiosamente, a primeira destas relações se dá com a música (o ato de tocar pode ser analisado aqui como o exercício do domínio sobre o próprio corpo e sobre os próprios sentimentos). 


No entanto, a música é apenas uma válvula de escape incapaz de libertar Erika da influência exercida pela progenitora e é então que a subversão surge como um caminho possível. Mas, as incursões pelo submundo apenas alimentam e potencializam aquilo que ela sente e lhe indicam a urgência de quebrar o julgo imposto pela mãe. É então que Walter entra na história e tem início a mais complexa de todas as relações. É interessante observar que a princípio o rapaz acredita ter controle sobre o relacionamento que se inicia entre os dois, mas, logo a professora reivindica este controle para si, para em seguida devolvê-lo ao rapaz. Ela acredita poder se livrar da influência materna se subjugando a alguém capaz de exercer sobre ela uma força maior, ainda mais opressiva, alguém criado e controlado (aqui está o ponto mais interessante) por ela mesma. 


Walter chama a atenção de Erika não apenas por sua virilidade, mas principalmente por causa da liberdade irrestrita que seus atos representam, ele quebra regras, não se coloca sob o domínio de ninguém e tem plena confiança em si mesmo (o que pode ser notado na avaliação que ele faz para entrar no conservatório), tudo isso, aliado ao seu ponto fraco - que é representado pela paixão que ele sente - o torna a pessoa ideal para viver os jogos sexuais propostos por ela, ele é a pessoa perfeita para desempenhar o papel esperado por ela na relação de domínio que ela pretende criar. Ela imagina poder transferir para ele domínio exercido pela mãe e acredita exercer controle o suficiente para romper esta relação quando os jogos chegarem ao fim. Mas, algo dá errado, toda a virilidade do rapaz parece cair por terra no momento em que ele lê a carta com o roteiro proposto por ela, por medo ele recua alguns passos e este é o primeiro indicativo de que algo pode dar errado e o resultado pode ser não ser o esperado por ela.


Michael Haneke constrói e correlaciona tudo, do roteiro adaptado aos elementos técnicos, de uma forma magistral. Nenhum elemento ou personagem é descartável na trama, tanto que a questão da dominação, que vejo como o mote principal da história contada, pode ser observada até mesmo nas relações entre personagens secundários. É curioso observar que apenas em uma passagem o ato sexual é mostrado de forma explicita no filme e isso acontece em uma cena que mostra a protagonista assistindo vídeos pornográficos em uma cabine; entendo isso como uma maneira sutil do cineasta de dizer que naquele filme que a personagem assiste o foco é o ato sexual em si, enquanto no dele o foco está sobre questões bem mais complexas, questões estas que o ato por si só é incapaz de retratar (apesar de ser através dele que a protagonista ensaia sua libertação na trama).


Isabelle Huppert está monstruosa na pela da protagonista, sua composição é visceral, o que confere um alto grau de realismo e consequentemente de credibilidade aquilo que sua personagem sente e vive. Annie Girardot e Benoît Magimel também entregam composições muito bem trabalhadas, que também chamam a atenção pelo realismo, o que chega a ser assustador dada a força que possui algumas das sequência nas quais eles contracenam com Huppert. A trilha sonora também merece destaque, fugindo dos caminhos óbvios como lhe é característico, Haneke opta também neste filme apenas pelo uso da trilha sonora diegética e este é um outro elemento que reforça o realismo da trama e seu intento de apelar mais para o racional do que para o sensorial. 


Não ouso recomendar A Professora de Piano para todos, justamente por saber que muitos negligenciarão a profundidade de sua trama e se aterão à superficialidade daquilo que é mostrado na tela, mas não tenho dúvidas de que estou diante do tipo raro de filme que mantém vivo o meu tesão de escrever sobre cinema: o tipo que transcende os limites da linguagem cinematográfica e explora todo o potencial filosófico e reflexivo que a sétima arte ainda possui... 


A Professora de Piano ganhou em Cannes os prêmios de Melhor Ator (Benoît Magimel), Melhor Atriz (Isabelle Huppert) e o Grande Prêmio do Juri. 

Assistam ao trailer de A Professora de Piano no You Tube, clique AQUI !

Confiram também aqui no Sublime Irrealidade as críticas de Amour (2012), A Fita Branca (2009) Caché (2005), também dirigidos pelo Michael Haneke.

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Renoir

Renoir - 2013. Dirigido por Gilles Bourdos. Escrito por Gilles Bourdos, Jérôme Tonnerre e Michel Spinosa, baseado na obra de Jacques Renoir. Direção de Fotografia de Ping Bin Lee. Música Original de Alexandre Desplat. Produzido por Olivier Delbosc e Marc Missonnier. Fidélité Films / França.


O que é capaz de conferir valor artístico à uma determinada obra? Alguns dirão que é tão somente o olhar de quem a contempla. Outros dirão que basta a intenção do autor. Eu, porém, acredito que tal valor nasce é do diálogo que se dá entre o público (personificado por cada indivíduo que o compõe) e o artista, tendo a obra como canal. Penso que se este diálogo não existe, o valor artístico também não. Tal pressuposto explica o fato de que uma mesma obra possa ter um valor incalculável para uma pessoa e, ao mesmo tempo, ser absolutamente descartável para outra. Ao nos colocarmos diante de uma obra de arte, levamos junto uma enorme bagagem, dentro da qual estão nossos sentimentos, nossas experiências e toda a singularidade da forma com que enxergamos e interpretamos o mundo à nossa volta, em última instância, é esta bagagem que ditará o tom deste diálogo.

Em algumas situações o processo de comunicação supracitado acontece de forma fluída e sem tantos ruídos, já em outras há a intervenção de fatores (internos e/ou externos à cada uma das partes) que influenciam na mensagem que está sendo decodificada. Quando isso acontece há uma boa chance de que a mensagem recebida pelo indivíduo que contempla a obra não seja a mesma que fora emitida pelo artista, o valor artístico, todavia, não é necessariamente afetado quando isso acontece. Ouso dizer que é a presença de tais ruídos, que convertem a mensagem original em outras novas mensagens, adaptáveis ao olhar de cada um, é o que torna a experiência artística tão sublime e interessante de ser analisada. A cinebiografia Renoir (2013), dirigida por Gilles Bourdos, aborda em sua trama diversas questões que estão associadas a este diálogo tramado entre o artista e seu público. 



O filme retrata os últimos anos da vida do pintor francês Pierre-Auguste Renoir, período no qual ele esteve recluso em sua imensa propriedade, que era quase um oásis em meio ao terror proporcionado pela primeira grande guerra. O foco da narrativa se encontra sobre os relacionamento de Renoir (Michel Bouquet) com sua musa, a jovem e bela Andrée Heuschling (Christa Theret), e seus filhos, o futuro cineasta Jean Renoir (Vincent Rottiers) e o rebelde Coco Renoir (Thomas Doret). Como pano de fundo, o longa retrata a criação de algumas das obras mais belas do artista, cuja sensibilidade parece ter sido aguçada pelo avanço da doença degenerativa que tem e pela ciência da proximidade da morte. O filme é quase uma ode à beleza, tanto àquela que pode ser encontrada na natureza, quanto àquela que vem à existência através da criação artística.



A questão acerca do valor atribuído à arte, que está presente do início ao fim do filme, ganha expressão no comportamento e nas atitudes de cada um dos personagens. Coco não consegue enxergar beleza alguma nas obras pintadas pelo pai, traumatizado pelos horrores da guerra, ele cria sua própria forma de expressão, que só tem valor e significado para ele mesmo. Em Jean, se materializa a paixão pela arte, que se manifesta em um misto de respeito, admiração e curiosidade, é evidente que ele tem o pai como uma referência e isso certamente influenciaria no futuro a sua própria obra. Andrée, por sua vez, não consegue fazer um mergulho tão profundo nas obras, à princípio o que desperta seu interesse é apenas a beleza estética e a oportunidade de se juntar a alguém respeitado no meio artístico. 



A visão do próprio Pierre-Auguste Renoir é, no entanto, a mais interessante, ele enxerga a criação artística como um mero ofício, em dado momento ele chega à compara-la à carpintaria e outros trabalhos manuais. Estas  visões distintas acerca da arte constitui um dos aspectos mais interessante do filme, que é capaz de evocar inúmeras reflexões sobre o tema. Outra reflexão pertinente surge da dicotomia entre a arte, apresentada como um ato de criação e vida, e a guerra, que seria a oposição de tudo isso, representando portanto a destruição e a morte. Em dada passagem, o pintor lamenta a a ida de um dos filhos para a guerra e sentencia que quem deveria ir para o front não são os jovens, mas os velhos e enfermos. Tal reflexão me leva a crer que a arte se tornara para ele uma motivação para se manter vivo e para não se tornar uma vítima de sua própria sentença, acabando assim em guerra travada contra si mesmo...



Renoir não foi tão bem recebido pelo crítica nem pelo público, em parte devido ao convencionalismo evidente do desenrolar de sua trama, que evoca diversos lugares comuns que geralmente associamos às produções hollywoodianas. Todavia, o seu valor não se encontra na trama nem nos acontecimentos presentes em seu desenvolvimento, mas sim nas entrelinha, nos momentos de silêncio e contemplação, nas questões que são levantas em cada diálogo e nas considerações feitas por cada um dos personagens; e aqui cabe a mesma reflexão que propus no início desta resenha: o valor artístico de Renoir se encontra é justamente no diálogo que ele é capaz de estabelecer com cada um de nós espectadores, diálogo este que pode culminar em uma profunda reflexão sobre a natureza da arte e os processos de criação e apreciação. 



Destaco as boas atuações (Michel Bouquet está excelente) e todo o aparato técnico do filme. Os primorosos trabalhos de fotografia, figurinos, maquiagem e direção de arte conferem ao longa uma incrível beleza visual, que constitui por si só um convite à contemplação. A trilha sonora de Alexandre Desplat também merece destaque, apesar dele recorrer em alguns momentos à uma dramatização característica de compositores como John Williams, suas canções não soam em nenhum momento apelativas ou enfadonhas, elas ajudam a ditar o ritmo e tom reflexivo que o filme adquire em diversas passagens. Não creio que Renoir seja um filme impecável, nem tão pouco pode ser considerado uma obra prima de seus realizadores, mas ainda o vejo como um bom drama biográfico com algo a mais e, neste caso, este algo a mais pode fazer toda a diferença.



Assistam ao trailer de Renoir no You Tube, clique AQUI!

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Azul é a Cor Mais Quente

Azul é a Cor Mais Quente (La vie d'Adèle) - 2013. Dirigido por Abdellatif Kechiche . Escrito por Abdellatif Kechiche e Ghalia Lacroix, baseado na comic book de Julie Maroh. Direção de Fotografia de Sofian El Fani. Produzido por Brahim Chioua, Abdellatif Kechiche e Vincent Maraval. Quat'sous Films e Wild Bunch / França | Bélgica | Espanha.



Adèle (Adèle Exarchopoulos), que até então nunca tinha ficado com outra garota, teve algo despertado dentro de si logo na primeira vez que viu Emma (Léa Seydoux), ela fora tomada por um sentimento desconcertante, que a fizera perder o chão por alguns minutos. Ainda que haja um certo ceticismo em relação ao amor à primeira vista, pode-se afirmar que foi desta forma que nasceu a paixão que transformaria completamente sua vida em um espaço de tempo relativamente curto. Não demorou muito até que as duas se conhecessem, o que se deu quase ao acaso. É interessante perceber que já no primeiro encontro são assumidos alguns papéis que iriam determinar os rumos da relação que se iniciaria entre elas. Emma, mais velha e experiente, assume uma função de protetora, uma quase mentora de Adèle, esta por sua vez se entrega de corpo e alma à paixão que queima dentro de si e a intensidade desta entrega à torna relativamente vulnerável quando começam as primeiras crises no relacionamento.

Nas relações entre as garotas e seus amigos e familiares também é possível notar a extensão dos papéis que foram assumidos no dia em que se conheceram. Emma é bem resolvida, seus pais tratam com naturalidade a sua sexualidade, sem qualquer tipo de preconceito, e seus amigos a aceitam tal como ela é. Já Adèle não consegue conversar com seus pais sobre sua relação com Emma e as piadas e de suas amigas sobre sua suposta amizade com a 'garota dos cabelos azuis' a impede de abrir o jogo com elas também. Em uma evidente ânsia de se resguardar, ela se esconde e adota uma personalidade que não condiz com a sua verdadeira essência. Este é um traço da personalidade de Adèle que não está relacionado apenas à sua homossexualidade, em dado momento ela diz ter receio de compartilhar seus escritos por eles serem pessoais demais. Nota-se que o que ela está vivendo não é só um processo de descobertas, é também um processo de autoaceitação.



Não é por acaso que o filme tenha sido dividido em dois capítulos (que acabaram sendo lançados juntos), a sua história pode ser dividida em dois momentos bem distintos um do outro. O primeiro é caracterizado pela descoberta, nele vemos a transformação da paixão avassaladora que uniu Adèle e Emma em algo mais sólido, este processo é retratado de uma forma brilhante pelo filme. Neste primeiro capítulo a ingenuidade, a fragilidade e a insegurança podem ser apontados como os traços que melhor caracterizam o comportamento da protagonista. Ela ainda carrega consigo os medos e os dilemas típicos da adolescência, mas isso logo mudará. Em um segundo momento, Adèle passará por um amadurecimento forçado, que mudará completamente sua postura em relação ao mundo à sua volta e por fim sua visão sobre os relacionamentos.


Com o surgimento das primeiras crises a idealização criada em torno do relacionamento começa a se desfazer em um processo que é extremamente doloroso, principalmente para Adèle. A sucessão de erros cometidos por ambas as garotas torna a relação cada vez mais complicada e nenhuma delas consegue lidar tão bem com isso. A abordagem adotada pelo filme se abstém do olhar romantizado para retratar os relacionamentos tal como eles são, os problemas enfrentados pelas duas e os temores que elas sentem são extremamente comuns e a verdade é qualquer relação, por mais sólida que ela seja, sempre estará sujeita a ser afetada por eles. A trama de Azul é a Cor Mais Quente ganha ainda mais significado e profundidade por conseguir evocar diversas características atribuídas aos relacionamentos pós-modernos, nela podem ser observados aspectos como a fragilidade dos laços criados, a transitoriedade das relações e, principalmente, a angústia de projetar no outro aquilo que se espera da vida a dois.


As cenas de sexo explícito, que causaram bastante polêmica quando o filme foi lançado, são condizentes com a trama e eu diria até que são necessárias para o seu pleno funcionamento, afinal de contas é através delas que a narrativa trabalha as mudanças (boa parte delas sutis) que ocorrem no relacionamento entre as duas garotas e a forma com que estas mudanças impactam na relação de dominação que existe entre elas. A primeira transa entre elas, retratada em uma sequência que dura mais de seis minutos, retrata perfeitamente o processo de descoberta que se encontra em curso, o ato é selvagem e nele está evidente a explosão da paixão que ambas sentem. Porém, pouco a pouco, as sutilezas e as carícias vão ganhando mais espaço, o que indica que o sentimento primitivo, observado até então, estava finalmente se transformando em amor.


O curioso é que mesmo com o evidente amadurecimento do relacionamento, a relação de dominação é mantida, o que pode ser percebido em uma outra cena de sexo (aquela que considero a mais bonita do filme), em dado momento Emma interrompe o ato por acreditar que Adèle gritaria devido ao orgasmo, o barulho certamente chamaria a atenção de seus pais (esta é a primeira vez que elas transam na casa de Adèle); esta construção tão simples deixa mais uma vez evidente que é Emma quem está conduzindo, não só a transa, mas toda a relação, ainda que este domínio seja exercido por meio do afeto. Em última análise, é a existência deste afeto que torna tudo ainda mais complicado e doloroso... A consequência da intensidade da entrega de Adèle remonta à principal causa da superficialização das relações: o temor provocado pela ameaça de que o amor e o afeto, quando não mais correspondidos na mesma proporção, se tornem insuficientes para sustentar um relacionamento, levando assim à uma frustração que pode ser aniquiladora...


Adèle Exarchopoulos está excelente no filme, sua atuação é caracterizada por uma completa entrega à personagem, o que fica evidente na verdade contida em cada um de seus sorrisos e olhares. É a grandiosidade de sua atuação que torna a protagonista ainda mais humana e seus sentimentos ainda mais palpáveis, por isso nos identificamos tanto com sua história e com sua ventura, nos vemos nela, afinal seu drama não nos é de todo estranho. Destaco ainda a fotografia e os enquadramentos, que são também essenciais para o desenvolvimento da narrativa, e o ótimo trabalho de edição de som, que prioriza os ruídos diegéticos na ausência de uma trilha sonora. Eu, sinceramente, tenho pena daqueles que deixarão de assistir ao filme, ou de apreciá-lo, pelo preconceito que, infelizmente, pode ser despertado pela sua trama, estes certamente perderão uma das melhores obras lançadas em 2013, sem mais.


Assistam ao trailer de Azul é a Cor Mais Quente no You Tube, clique AQUI !


A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A Grande Beleza

A Grande Beleza (La Grande Bellezza) - 2013. Dirigido por Paolo Sorrentino. Escrito por Paolo Sorrentino e Umberto Contarello. Direção de Fotografia de Luca Bigazzi. Música Original de Lele Marchitelli. Produzido por Francesca Cima e Nicola Giuliano. Indigo Film, Medusa Film, Babe Film, Pathé e France 2 Cinéma / Itália | França.



Em A Doce Vida (1960), clássico absoluto de Federico Fellini, acompanhamos Marcello Rubini (vivido por Marcello Mastroianni), um jornalista amargurado e apático que transita por diversos meios sociais sem fazer ou ao menos se sentir parte de nenhum deles. Por meio de um roteiro quase episódico, o filme retrata a fluidez da vida e a solução encontrada pelo personagem para lidar com ela, ele busca na velocidade dos acontecimentos uma forma de preencher o vazio de sua existência, isso, já naquela época, remetia à uma das características mais marcantes de nosso tempo, que seria tão bem definido pelo sociólogo Zigmunt Bauman como a 'modernidade líquida'. A Grande Beleza (2013), o novo longa de Paolo Sorrentino, além de ser similar em diversos aspectos, repete o mesmo feito realizado pelo filme de Fellini, ele, através de uma trama igualmente episódica, consegue captar a essência do mundo contemporâneo, se tornando assim um recorde bizarro e ao mesmo tempo realista da vida na alta sociedade italiana.

No centro da trama de A Grande Beleza está o jornalista Jep Gambardella (vivido por Toni Servillo, em uma excelente interpretação), um bon vivant convicto que aprecia ao máximo os prazeres que seu dinheiro pode comprar. Tal como Marcello Rubini em A Doce Vida, ele circula por meios sociais distintos, onde aparenta buscar algo que nunca consegue encontrar... Para que se posa compreender o drama de Jep e a reflexão proposta pelo filme basta que se faça uma breve análise de duas passagens presentes no primeiro ato. Na primeira delas, um grupo de turista orientais passeiam por Roma, um deles, embriagado pela beleza do lugar onde se encontram e pela música que toca, quase hipnótica, acaba se distanciando um pouco dos demais. Ele tira várias fotos na esperança de captar e eternizar a beleza do momento, que ele sabe que é efêmero, percebemos em seu rosto a satisfação de estar em contato com algo maior, quase sublime. Em um sutil movimento, a câmera gira em torno dele, ele enxuga o suor da testa com uma das mãos e desfalece, vítima provavelmente de um ataque cardíaco.



A segunda passagem retrata uma festa repleta de excessos e extravagâncias, é o aniversário de 65 anos Jep Gambardella que está sendo comemorado. A experiência fugaz e hedonista proporcionada pela música eletrônica quase ensurdecedora, pelas performances bizarras, pelo sexo e pelas drogas, não consegue aplacar a sensação de vazio que Jep sente. Ainda nesta passagem, há um momento em que ele literalmente se destaca da multidão e do ambiente diegético e se volta para a câmera para explicar que sempre acreditou que estava destinado à sensibilidade - uma sensação que, diga-se de passagem, é incapaz de ser saciada pelos exageros que seu dinheiro podia comprar. Ao compararmos as duas passagens, percebemos uma questão interessante, da qual resulta uma lógica que se manterá durante o restando do filme: A beleza real não está na extravagância, mas na simplicidade, ela não pode ser forjada, pois precisa ser natural, espontânea e antes de tudo autêntica, tal como fora no momento singular vivido pelo personagem da primeira sequência.



Nem o oriental, que sucumbe ao se sentir preenchido pela beleza, nem tão pouco Jep conseguem realizar aquilo que vejo como o principal objetivo deles na trama: perpetual os momentos sublimes. O drama do protagonista é ainda mais complexo, ele se perde ao tentar eternizar uma beleza que sequer é real e ele tem plena ciência disso. No decorrer da trama, percebe-se que a aversão que ele tem à realidade está diretamente relacionada ao seu medo de encarar o vazio de sua vida e aos inúmeros fantasmas do passado que ainda lhe atormentam. 



Jep ainda colhe os frutos do lançamento bem sucedido de seu único livro, publicado já há mais de quarenta anos, mas desde então ele nunca conseguiu escrever outra obra. O status que o sucesso lhe proporcionou e o dinheiro que conseguiu acumular lhe garantiu, durante todo este tempo, acesso irrestrito aos meios frequentados pela nata da sociedade de Roma. Porém, ao completar 65 anos ele vê tomado por uma reflexão acerca daquilo que sua vida se tornou, é então que ele decide buscar inspiração para um novo projeto literário. A reflexão lhe transporta para a sua juventude, uma época na qual ele viveu aquele que talvez tenha sido o seu único amor verdadeiro. Entorpecido palas reminiscências, ele tenta buscar no mundo à sua volta, algo que possa ter um significado tão valioso quanto o deste amor, que de repente volta a mexer com os seus sentimentos de uma forma tão intensa. 



Em sua procura por inspiração, Jep se depara com o que ele mais temia: o vazio. A percepção de que tudo em torno de si é superficial e falso se torna ainda mais incômoda à medida em que sua sensibilidade é aguçada pelos fatos do passado que sua mente trás à tona. Ao acompanhar a busca do personagem por respostas e por um significado maior, que possa lhe dar inspiração e um sentido para a sua própria vida, o filme acaba abordando também a incapacidade da arte, da ideologia e da religião de proporcionarem para o indivíduo soluções definitivas para boa parte de suas questões. Ao procurar por respostas, o que Jep encontra são apenas novas perguntas. As pessoas à sua volta, no entanto, se contentam com as meias verdades, com aquilo que se tornou convenção, com a superficialidade e com a falta de significado da vida. Nota-se que este contentamento e o apego às mentiras, que elas contam para si mesmas, foram as formas que estas pessoas encontraram para lidar com o vazio...


A artista performática que se joga contra um muro; a menina pintora que, em um acesso de raiva, preenche uma tela atirando latas de tinta contra ela; o dramaturgo que escreve para impressionar a mulher que ama; o rapaz que fotografou a si mesmo todos os dias durante 15 anos e organizou, ele próprio, uma exposição para mostrar o resultado do trabalho; a stripper que, apesar da idade já avançada, continua a trabalhar para não perder as regalias que a atividade lhe proporciona; o mágico que não se preocupa em quebrar a magia de seu espetáculo ("é apenas um truque', ele diz); a mulher que se gaba da relevância de sua obra e de sua militância política, sem que elas sejam de fato relevantes; a freira anciã, tratada como santa, que também se encontra tão perdida quanto todos os outros em relação às questões inerentes à vida... todos estes personagens e cada um dos outros que surgem na tela durante as duas horas e vinte minutos de filme trazem junto consigo a representação de algo maior, em suas composições caricatas (outro aspecto que remete a Fellini) é possível identificar uma crítica aos valores e aos costumes adotados pela sociedade retratada.  



O que difere Jep Gambardella de Marcello Rubini é apenas a disposição que o primeiro tem de compreender o mundo no qual está inserido, enquanto o outro apenas transitava pelos meios que fraquentava sem intervir neles e nem ao menos questioná-los. Creio que não é forçação de barra pensar que o que A Grande Beleza proporciona é na verdade um choque de gerações, que se dá entre a geração atual e aquela à qual o protagonista pertence (curiosamente, a mesma retratada em A Doce Vida de Fellini). Não é um choque tão grande, afinal de contas tais gerações são similares em diversos aspectos, mas ainda assim é notável o atrito entre as duas, principalmente nas forma de lidar, pensar e questionar a sensação de vazio, que tem se tornado cada vez maior e mais intensa... O interessante é perceber que a beleza da qual o título do filme fala está presente durante toda a sua duração, porém poucos são os personagens que a percebem. 



A fotografia dirigida por Luca Bigazzi transforma Roma em um deleite à parte no filme, a cidade aparenta nunca ter estado tão bela. A escolha das locações e dos enquadramentos captam uma aura que torna cada fotograma uma obra de arte individual, que traz consigo uma carga de significados muito mais ampla do que aquela observada nas 'performances artísticas' que o filme retrata em seu desenvolvimento. A leveza com que a câmera caminha pelos cenários, como se já esperasse captar deles algo que não está sendo verbalizado, remete mais uma vez ao cinema de Fellini, tal sutileza coloca o filme em um ritmo relativamente lento (por favor, não confundam lentidão com algo depreciativo) abre margem para inúmeras reflexões sobre a arte, sobre as coisas às quais apegamos para tentar aplacar o vazio e sobre  vida como um todo. Não tenho dúvidas de que A Grande Beleza seja um filme pretensioso, mas ele cumpre com relativa facilidade tudo aquilo a que se propõe, não deixando nada a desejar. Volto a dizer, a cortina dos clássicos ainda se encontra aberta!



Assistam ao trailer de A Grande Beleza no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.


Confiram também aqui  no Sublime Irrealidade a crítica de Aqui é o Meu Lugar,
também dirigido pelo Paolo Sorrentino.