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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Um outro mundo - Um Mergulho no Cinema Iraniano


Na semana passada, os olhares do mundo se voltaram novamente para o oriente médio. O atentato na França, praticado por fundamentalistas islâmicos contra o periódico Charlie Habdo, trouxe novamente à tona discussões sobre os efeitos nefastos do fundamentalismo religioso. E, como já era de se esperar, não tardou para que a discussão ganhasse, em diversos momentos, contornos xenofóbicos e islamofóbicos. Pautados pelo mídia ocidental, frequentemente esquecemos que o fundamentalismo está presente não só no islamismo; os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque com a bandeira do cristianismo hasteada; Israel há décadas massacra o povo árabe em nome da tradição judaica. No entanto, a impressão que ainda se tem é a de que todo muçulmano é um terrorista em potencial, o que, obviamente, é puro preconceito. 

Por acaso, ou por mera ironia do destino, eu tinha começado esta maratona com filmes iranianos poucos dias antes do atentado e, já nos primeiros filmes, eu já tinha refletido sobre a importância desta riquíssima produção cinematográfica, que consegue mostrar uma realidade que tão pouco conhecemos, isso porque simplesmente a mídia, à qual temos acesso, prefere, por questões políticas e econômicas, não retratá-la. Esta reflexão se intensificou após o atentado... Diante de obras dotadas de um humanismo tão belo e tão tocante é praticamente impossível não questionar as impressões preconcebidas que alimentamos durante tanto tempo. O Irã retratado nestas obras é ao mesmo tempo tão distante e tão próximo de nossa própria realidade. Ainda existe o afastamento cultural e geográfico, porém há coisas muito mais profundas que nos aproximam e nos ajudam a compreender uma realidade que ainda nos causa tanto estranhamento.

O Irã é atualmente o maior produtor de gás natural do mundo e possui a 4° maior reserva comprovada de petróleo, não por acaso ele se encontra no eixo afetado pelo conflito econômico (disfarçado de religioso) que há décadas dizima o Oriente Médio. Obviamente, a realidade social, política e econômica do país influencia diretamente sua produção cultural, os ecos dos inúmeros conflitos, da desigualdade social e da falta de liberdade estão presentes em praticamente todos os filmes iranianos que já assisti, porém estes temas são retratados na maioria das vezes de uma forma singela e altamente poética, um efeito natural da censura e da patrulha ideológica que já vitimou, dentre outros, o cineasta Jafar Panahi, que foi condenado a seis anos de prisão e a 20 anos sem filmar, escrever ou sair do país, sob a acusação de conspirar contra o regime de Mahmoud Ahmadinejad e filmar sem autorização prévia do governo. 

Estilisticamente, o cinema iraniano bebe muito da fonte da Nouvelle Vague Francesa e do Neorrealismo Italiano; da primeira escola foi herdado o experimentalismo formal e estético, a construção de tramas minimalistas que ganham significados maiores durante os seus desenvolvimentos e a supremacia do viés autoral em relação ao comercial; da segunda escola foi herdado o fatalismo social, a opção por filmar nas ruas e em locação reais e não em estúdios e a preferência por retratar a dura realidade dos oprimidos e dos menos favorecidos - Sem mais delonga, vamos aos filmes. Desta vez, optei por comentá-los não na ordem em que foram vistos, mas separando-os por autores, pois assim fica mais fácil correlacioná-los. 


Assisti a quatro filmes de Abbas Kiarostami, um dos maiores nomes do cinema iraniano, cuja obra é marcada por reflexões morais e existencialistas. A morte, o sentido da vida, a felicidade e o sofrimento que há no mundo são temas recorrentes em seus filmes, que ganham ares filosóficos ao abordar tais questões. Três dos longas assistidos compõem aquela que ficaria conhecida como a trilogia de Koker. O primeiro deles, Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), tem como protagonista o menino Ahmad (Babek Ahmed Poor), que sai de Koker, o vilarejo onde mora, para procurar a casa de um colega de escola para devolver-lhe um caderno de tarefas que seria avaliado pelo professor no dia seguinte. Em sua busca, o menino acaba se encontrando com diversas outras pessoas com quem acaba interagindo, os diálogos deixam evidente que o plot da trama é apenas um ponto de partida e que ela está na verdade discutindo questões muito mais complexas. Vale destacar a ótima atuação de Babek e a capacidade do cineasta de usar como elementos de linguagem as locações, os enquadramentos e a escolha entre o que mostrar e o que não mostrar - muitas vezes o que não é mostrado diz muito mais do que aquilo que vemos


O segundo filme da trilogia de Koker, Vida e Nada Mais... (1992), retrata a busca de um cineasta (Farhad Kheradmand), alter-ego de Abbas, e de seu filho (Buba Bayour) por notícias de Babek Ahmed Poor, o ator que interpretou Ahmad no filme anterior. A história se passa no ano de 1990, dias após um terremoto que devastou toda uma região do Irã. O cineasta teme que o menino que participara de seu filme esteja morto, assim como tantas outras pessoas da cidade de Keker... O formato do longa é semelhante o de seu antecessor, porém agora os protagonistas, que também procuram desesperadamente por algo, estão em um carro e interagem com pessoas que encontram à beira da estrada. Dos diálogos surgem reflexões sobre a morte e sobre o sofrimento. O fatalismo se faz presente nos depoimentos de pessoas que atribuem tão somente à vontade de um deus a responsabilidade pelo sofrimento que se abatera sobre as suas vidas. O cenário de destruição remete diretamente ao neorrealismo italiano e a relação entre pai e filho mostrada no filme me fez lembrar de um dos maiores clássicos desta escola, Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica.


No último filme da trilogia, Através das Oliveiras (1994), a metalinguagem adquire uma proporção ainda maior. Na história, que se passa no set de filmagens de Vida e Nada Mais..., o diretor (Mohamad Ali Keshavarz), novamente um alter-ego de Abbas, se vê na difícil situação de dirigir um casal de jovens atores, o rapaz (Hossein Rezai) está apaixonado pela moça (Tahereh Ladanian), porém a família dela não aceita o casamento porque ele é analfabeto e não tem uma casa para morar. Ciente de que se trata de um amor impossível ela se recusa a conversar com ele e sequer dá algum tipo de atenção para as inúmeras perguntas e declarações que ele faz. Eles interagem um com o outro apenas nos momentos da gravação, quando estão ambos nas peles de seus respectivos personagens... Neste filme a reflexão proposta sai do campo existencialista e vai, na maior parte dos diálogos, para o social. Sutilmente o diretor chama a atenção para o distanciamento entre as classes e para costumes separatistas que continuam sendo propagados de geração para geração. 


Em O Vento Nos Levará (1999), Kiarostami coloca a morte novamente no foco das reflexões filosóficas ensaiadas pela trama. Na história, um homem (Behzad Dorani) conhecido apenas como o 'engenheiro' chega com sua equipe a uma cidade do interior do Irã com a desculpa de que fará um serviço de engenharia. Mas, o real interesse do grupo é na verdade documentar um tipo de cerimônia religiosa, realizada em sepultamentos, que só acontece naquela região do país. O 'engenheiro' e sua equipe esperam ansiosos pela morte de uma anciã que, acometida por uma doença grave, se encontra impossibilitada de andar e não consegue mais comer. Porém, os dias vão passando e a moribunda começa apresentar sinais de melhoras, o 'engenheiro' se vê então diante de um dilema ético e moral e deste dilema surgem as reflexões sobre a finitude da vida, sobre a sua desvalorização diante da espetaculização da morte e sobre a nossa própria fragilidade e efemeridade.


Majid Majidi, um dos meus favoritos dentre os iranianos, consegue estabelecer um meio termo muito interessante entre o realismo proposto por Bahman Ghobadi - cujos filmes comentarei mais adiante - e  a poética das obras de Kiarostami. Com um olhar sempre singelo, ele retrata através de suas obras a luta de indivíduos para se adaptarem e sobreviverem em meios que lhes são de alguma forma estranhos e hostis. Assuntos como desemprego, pobreza, má qualidade de serviços públicos ganham evidência em suas obras, porém de uma forma que consegue ser contestadora sem perder a ternura e a sensibilidade. Em Filhos do Paraíso (1997), Majidi parte de uma situação simples para construir uma história capaz de nos emocionar e nos fazer questionar uma série de paradigmas. Ali (Amir Farrokh Hashemian) mora com os pais e a irmã, Zahra (Bahare Seddiqi) em um subúrbio de Teerã, capital do Irã, sua mãe está doente e o pai provê o sustento da casa fazendo pequenos bicos. No início da história Ali perde um par de sapatos da irmã e, com medo da represália da mãe, ele não conta sobre o ocorrido. À partir de então ele e a irmã passam a dividir um surrado par de tênis para irem à escola, o que acaba os envolvendo em uma série de confusões. 


A Cor do Paraíso (1999), tem como personagem principal, o menino Mohammad (Mohsen Ramezani), ele, que estuda em uma escola para cegos em Teerã, é levado pelo pai nas férias para reencontrar o restante da família, de quem ele ficou distante por um ano. Apesar de ser cego, o garoto consegue perceber e decodificar o mundo que o cerca melhor do que todos os outros que estão à sua volta. Seu maior desafio, no entanto, é convencer o pai de que pode se virar sozinho e de que tem talento o suficiente para ir muito além de onde ele próprio conseguiu chegar... Tanto em Filhos do Paraíso, quanto em A Cor do Paraíso, as crianças são quem representam uma oportunidade de superação do contexto relativamente opressivo no qual todos estão inseridos. O curioso é que os adultos, presos aos seus dogmas, costumes e legalismos, não conseguem compreender isso e acabam colocando em risco aquilo que pode ser um último fio de esperança de que aconteça uma real mudança nas vidas de todos. Este viés também está presente em A Canção dos Pardais (2008), filme de Majid Majidi já resenhado aqui no Sublime


Bahman Ghobadi trilha um caminho bem diferente dos seguidos por Abbas Kiarostami e Majid Majidi, o realismo de seus filmes é mais seco e muito mais brutal. Suas obras retratam os absurdos dos conflitos armados e do terrorismo de uma forma direta, sem tantos atenuantes. Se outros cineastas citados conduzem à reflexão por meio de metáforas e de sutilezas, Ghobadi o faz pelo choque. Isso no entanto não tira de seus filmes a beleza estética e um certo lirismo que eles trazem consigo. Me perguntei várias vezes, enquanto assistia às suas obras, de onde vinha este lirismo; cheguei à conclusão de que ele vem do destaque que se dá à inocência e à esperança que ainda resistem em meio ao caos, aspecto presente nas duas obras assistidas. Tempo de Cavalos Bêbados (2000) retrata a realidade de atravessadores que cruzam as montanhas geladas da fronteira do Irã com o Iraque com produtos e/ou emigrantes ilegais. Ayoub (Ayoub Ahmadi) e Ameneh (Amaneh Ekhtiar-dini), os protagonistas, são apenas crianças, mas já trabalham em uma feira e dividem com o pai viúvo a responsabilidade pela criação dos outros três irmãos, dentre eles Madi (Madi Ekhtiar-dini), o caçula, que tem uma grave doença. Com a morte do pai eles se vêm obrigados a assumir todas as responsabilidades sozinhos e a necessidade os levam a se envolver com os grupos de atravessadores. 


Tartarugas Podem Voar (2004) também mantém o foco de sua narrativa sobre as crianças. Na história, Satellite (Soran Ebrahim) é um menino que lidera um grupo de crianças órfãs que desenterram minas para revendê-las. A trama, que se passa na fronteira entre o Irã e a Turquia, se desenvolve nos dias que antecedem a invasão americana ao Iraque. No vilarejo todos querem receber notícias sobre a guerra que se aproxima, Satellite propõe então que façam o mesmo que foi feito em outros vilarejos vizinhos, uma 'vaquinha' para comprar uma antena parabólica para sintonizar canais estrangeiros. Com a colaboração de quase todos e com a ajuda do tino que o garoto tem para os negócios, eles acabam conseguindo comprar uma antena por um bom preço (parte do pagamento é feito com minas desenterradas pelo grupo de garotos). As poucas notícias que chegam vão aumentando gradativamente a tenção, mas Satellite parece sentir um prazer estranho diante de tudo o que está acontecendo, ele nutre um certo fascínio pela cultura americana. Fascínio este que demora para ser desconstruído. 


Os três últimos filmes pertencem a cineastas diferentes - O Balão Branco (1995) de Jafar Panahi é uma das obras-primas do cinema iraniano, com sua trama minimalista, que remete às obras de Abbas Kiarostami, de quem Panahi já foi auxiliar de direção, ele consegue emocionar e chamar a atenção para questões que ainda minam a convivência humana, como a falta de diálogo, o egoísmo, a falta de perdão e, principalmente a incapacidade da maioria de estender a mão para alguém que precisa. No filme, a pequena Razieh (Aida Mohammadkhani) consegue convencer a mãe a lhe dar dinheiro para comprar um peixinho dourado para as comemorações do ano novo iraniano (uma antiga tradição no Irã), porém ela acaba perdendo o dinheiro no caminho até a loja. Ele reencontra a nota perdida, porém logo em seguida a perde novamente. Ela então descobre que a cédula caíra em um vão que dá no sub-solo de uma outra loja... Este é apenas o começo da odisseia da menina, que conta com a ajuda do irmão Ali (Mohsen Kafili), pouco mais velho que ela, para tentar recuperar o dinheiro. Sutilmente a trama fala ainda de solidão e desamparo, sentimentos que aparentam serem comuns entre os iranianos. 


Gabbeh (1996), de Mohsen Makhmalbaf, é puro lirismo, nele a fantasia se estende à cada uma das passagens, cada fotograma parece uma pintura. Com inúmeras referências à tradição, à religiosidade e aos costumes iranianos, o filme constitui um belíssimo tratado sobre prazer, a busca pelo amor idealizado, o envelhecimento, a dor da perda e principalmente sobre o decorrer de tempo, que corre inexorável e alheio às paixões e angústias. Eu diria que ele é também um filme de arte sobre a arte, sua trama fala justamente da forma com que a criação artística serve de expressão para as alegrias e as dores que vivenciamos. A história se inicia com um casal de idosos lavando um tapete persa em um rio. Uma linda moça, que aparenta sair do tapete, começa a contar para a casal a sua história; ela é apaixonada por um rapaz que frequentemente aparece em seu vilarejo à cavalo e apenas a observa de longe, um amor avassalador, porém impedido de se realizar pelas tradições seguidas pela família dela. No desenrolar da trama, as duas histórias se entrelaçam, a do casal de idosos (seria esta a realidade?) e a da jovem que anseia viver um amor desmedido (seria esta apenas uma abstração artística?). Gabbeh consegue ser ao mesmo tempo reflexivo e sensorial, é impossível não ser impactado de alguma forma por ele. 


A Maçã (1999) é o filme de estreia da cineasta Samira Makhmalbaf, filha de Mohsen Makhmalbaf. Na trama, duas garotas de 12 anos, Massoumeh (Massoumeh Naderi) e Zahra (Zahra Naderi), gêmeas, são mantidas presas pelos pais dentro da própria casa desde que nasceram. A prisão retardou seus desenvolvimentos intelectuais, elas não conseguem falar e na maioria das vezes não conseguem lidar com situações simples do cotidiano. Um vizinha decide então fazer um abaixo assinado pedindo a intervenção do Departamento de Bem Estar Social; este, representado por uma assistente social, passa a acompanhar a família e pouco a pouco as meninas vão conquistando uma liberdade que nunca tiveram. A genialidade do filme está na forma com que ele, num tom que chega a ser a ser quase documental, remete à origem dos vários tipos de prisões. Uma das passagens mais emblemáticas intercala cenas das meninas presas na casa onde moram com cenas da vizinha, a mesma que fez o abaixo assinado, torcendo roupas na janela de sua casa, em ambas situações as mulheres são retratadas atrás de grades. É a forma sutil da diretora de dizer que a prisão também pode ser a limitação imposta pela vida conjugal em um opressivo sistema patriarcal.


Confiram também aqui no Sublime Irrealidade as resenhas de outros filmes iranianos:

Gosto de Cereja (1997) de Abbas Kiarostami
A Separação (2011) de Asghar Farhadi

Confiram também o post sobre a maratona de cinema argentino: 



sábado, 3 de janeiro de 2015

Um breve, porém intenso, mergulho no cinema argentino!


Não foi algo planejado. Eu estava à procura do filme Relatos Selvagens (2014- coprodução entre Argentina e Espanha, escrita e dirigida pelo Damián Szifron, produzida pelo Almodóvar e com nomes como Ricardo Darín, Darío Grandinetti e Leonardo Sbaraglia no elenco - e, depois de algumas tentativas frustradas desisti de encontrá-lo, foi então que veio a ideia de colocar em dia, ao menos em parte, a enorme dívida que tenho com o cinema argentino. Minha intenção inicial era assistir a dez filmes, acabou sendo nove, pois não consegui encontrar legenda compatível para um deles. A maioria dos filmes assistidos foram lançados no início da década passada, o que não foi intencional, daria para fazer um passeio semelhante passando apenas por obras mais recentes. Esta seleção, no entanto, acabou sendo um reflexo daquele que foi um dos períodos mais prolíferos da cinematografia no país, o auge do 'movimento', surgido na década de 90, que ficou conhecido como Novo Cinema Argentino. 

Durante esta pequena maratona foi quase inevitável não fazer comparações entre o cinema argentino e o nosso. No tocante à qualidade das obras, acredito que temos uma produção tão prolífera e boa quanto a deles. A diferença está, não no processo artístico/criativo, mas no mercadológico. Os hermanos têm conseguido contornar problemas nos quais ainda tropeçamos, boa parte deles relacionado ao financiamento público da produção (geralmente feito através de políticas de incentivo) e à distribuição. A impressão que se tem é a de que os filmes de lá não visam apenas o mercado interno (diferente de boa parte daquilo que é produzido hoje no Brasil) e as melhores obras não ficam restritas apenas ao circuíto de mostras e festivais, como ainda acontece por aqui, o que indica que a industria cinematográfica se encontra em estágios de maturidade diferentes nos dois países. [Pretendo voltar à estas questões em um post específico]. 

Recomendo esta breve maratona para todos! Para iniciá-la, dispa-se da rivalidade tola que fora alimentada durante muito tempo entre os dois países, abra a sua alma e se permita ser impactado por ótimas produções de diferentes gêneros, com propostas diferentes, mas pertencentes a um todo, que daria orgulho a qualquer país! Abaixo seguem breves considerações sobre cada um dos filmes assistidos: 


Minha modesta maratona, que durou uma semana, foi iniciada com O Filho da Noiva (2001), uma pequena obra-prima de Juan José Campanella. O filme, que é o segundo da fruto da longeva e bem sucedida parceria do diretor com o ator Ricardo Darín, tem em sua composição dois dos grandes trunfos do cinema produzido pelos hermanos: a sensibilidade e a universalidade. No centro da história está Rafael (Darín), ele se formou em direito, mas acabou assumindo o restaurante do pai por não ter alcançado sucesso na carreira de advogado. Sobrecarregado por afazeres e responsabilidades,  ele ainda precisa lidar com problemas e conflitos familiares. A pressão é enorme, ele tenta segurar as pontas mas não resiste, o preço a ser pago vem na forma de um infarto, que o deixa por vários dias na UTI, período no qual ele se vê imersos em reflexões forçadas sobre a sua vida e as escolhas que fez. A oportunidade de Rafael encontrar alguma paz interior vem quando o seu pai, Nino (Héctor Alterio), anuncia que quer finalmente se casar na igreja com a sua mãe, Norma (Norma Aleandro); uma proposta ousada devido a um pequeno problema, Norma tem perda de memória, provocada pelo mal de alzheimer, e é incapaz de responder pelos seus atos. O desenrolar da história é uma verdadeira ode ao amor e à valorização dos pequenos prazeres. 


O segundo filme da maratona foi Nove Rainhas (2000), longa dirigido por Fabián Bielinsky, também protagonizado por Ricardo Darín. No centro de sua trama estão dois trapaceiros profissionais, Marcos (Darín) e Juan (Gastón Pauls), eles se conhecem quase que por acaso e decidem 'trabalhar' juntos por um dia. É justo neste dia que surge a oportunidade de aplicar um golpe milionário, que envolve a réplica de uma série de selos raros e um perigoso colecionador que está hospedado na cidade. A fluidez da narrativa, os diálogos afiados e as ótimas atuações dos protagonistas dão ao filme um diferencial que o distancia da grande maioria das obras do gênero que são realizadas atualmente. O último ato, que não comentarei pelo risco de entregar algum spoiler, só confirma aquilo que os primeiros já indicavam, trata-se de uma grande obra, que soube aproveitar da melhor forma possível uma boa história, sem para tal precisar recorrer a malabarismos técnicos e a firulas estilísticas desnecessárias. 


O filme seguinte foi Plata Quemada (2000), triller de Marcelo Piñeyro, baseado em fatos reais, que retrata a fuga de uma quadrilha de bandidos, que vão para o Uruguai após assaltarem um carro forte. O assalto não acontecera conforme o planejado e os dois policiais que estavam  veículo acabaram sendo mortos pelos bandidos. Movida pelo desejo de vingar a morte dos dois militares, a polícia local dá início à uma investigação para descobrir o paradeiro da quadrilha. Os próprios assaltantes reconhecem que é uma questão de tempo até que o local em que se refugiaram seja descoberto, no entanto eles decidem permanecer até que um aliado no Uruguai consiga documentos falsos para eles virem pra o Brasil. A trama é protagonizada por dois dos assaltantes, El Nene (Leonardo Sbaraglia ) e Ángel (Eduardo Noriega ), conhecidos no meio como 'os gêmeos'; apesar desta alcunha eles são bem diferentes um do outro, El Nene é racional e se porta como o cabeça do grupo, enquanto que Ángel se deixa guiar mais facilmente pela emoção, sendo movido frequentemente pela culpa que sente por ser um fora da lei e por manter um relacionamento homoafetivo com El Nene. A narrativa desenvolve de maneira muito satisfatórias os seus dois viés, o romântico/erótico, sustentado pelo relacionamento entre os dois personagens e o suspense, que coloca o filme em uma tensão sempre crescente, que se torna angustiante com a aproximação do último ato.


O quarto filme da maratona foi Lugares Comuns (2002), drama dirigido por Adolfo Aristarain que conta a história de um professor de literatura, já idoso, que é aposentado compulsoriamente devido às ideias que defende em sala de aula. Com o país passando por uma grave crise econômica, Fernando Robles (Federico Luppi), o protagonista, se vê obrigado a vender a casa em que mora e a pegar como parte do pagamento uma propriedade rural para onde se muda. O desenrolar da trama retrata o processo de adaptação do professor à nova vida, processo este que é retratado com uma singeleza enorme, que chama atenção não só pela tentativa do personagem de vencer suas limitações, mas também pela forma com que as suas ideias, quando postas em prática na história, acabam nos impactando. No último ato o filme perde um pouco de sua unidade, à partir de dado momento da narrativa ele abandona alguns dos conflitos que tinham sustentado a narrativa até então para se apegar a outros. Isso faz com que o desfecho soe um tanto forçado, como se tivesse sido construído de tal forma apenas para despertar no público algum tipo de comoção. Todavia, o filme continua acima da média e sendo uma boa pedida para quem valoriza atrativos que dificilmente seriam encontrados no cinema comercial. 


A História Oficial (1985) foi o próximo a ser assistido. Dirigido por Luis Puenzo, ele foi o primeiro filme latino-americano a ganhar o Oscar na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. É sem dúvidas uma obra-prima, grandiosa em todos os aspectos: Roteiro, atuações (Norma Aleandro está sublime), fotografia, direção de arte, trilha sonora... Todavia, creio que o seu maior trunfo foi ter levado para a tela grande a discussão sobre um tema tão polêmico, tão recente na época, que ainda era uma ferida aberta na história da Argentina. Em sua trama, Alicia (vivida pela Norma) é uma professora de história que preza pela disciplina e pela ordem. Ela não percebe que o rigor de suas posições e a unilateralidade de sua visão sobre aquilo que ensina a têm distanciado da história real de seu país. Alienada das questões políticas e sociais ela se recusa a enxergar a cruel realidade que a ditadura militar representava. No entanto, a suspeita de que a menina, que adotara ainda bebê, possa ser filha de militantes políticos mortos pelo regime, começa mudar a visão que até então ela tinha. Como pano de fundo, o filme retrata a luta da Mães da Praça de Maio, mulheres que se uniram para lutar e reivindicar notícias sobre seus filhos desaparecidos durante a ditadura militar. 


O sexto filme da maratona foi outra obra de Juan José Campanella, O Mesmo Amor, a Mesma Chuva (1998), o primeiro fruto da parceria dele com Ricardo Darín. A trama acompanha o relacionamento entre os dois protagonistas, Jorge Pellegrini (Ricardo Darín) e Laura (Soledad Villamil), durante 20 anos, retratando as crises, os términos, os longos períodos de separação e também os bons momentos, que foi o que manteve uma centelha do sentimento inicial acesa por tanto tempo. Sem os clichês do cinema mainstrean, a narrativa nos apresenta a personagens complexos, dotados de vícios e virtudes, que muitas vezes erram tentando acertar e por isso acabam colocando em risco aquilo que têm de mais importante. Em uma análise mais ampla, eu diria que a história de amor contada funciona como uma metáfora daquilo que o país vivia em cada um dos períodos retratados; começa com a utopia, passa pela esperança (representada na esfera social pela abertura política) e por diversas crises, até chegar à uma espécie de maturidade, onde os problemas ainda não estão todos resolvidos, mas há a sabedoria que impede que erros do passado voltem a ser cometidos.


O sétimo da lista foi Um Conto Chinês (2011), filme dirigido por Sebastián Borensztein, que também traz Ricardo Darín no papel principal. Com sua trama construída sobre a ideia de que talvez exista um porquê associado a questões atribuídas ao acaso, o longa direciona o foco de sua narrativa para a vida monótona de Roberto (vivido por Darín), um homem ranzinza, mas de bom coração, que não faz nada além de administrar sua loja de ferragens. A rotina de Roberto muda completamente depois que seu caminho se cruza por acaso (será mesmo?) com o de Jun (Ignacio Huang), um jovem chinês que fora para a Argentina em busca de um tio com quem nunca teve qualquer tipo de contato. Sem saber uma palavra em Espanhol e sem ter lugar para ficar, Jun acaba sendo acolhido por Roberto. A chegada do rapaz mexe com o pacato comerciante e sutilmente muda a forma com que ele enxerga a si mesmo e o mundo à sua volta. Ao observar o rapaz, Roberto descobre que tem tanta dificuldade de se comunicar como ele, talvez venha daí a empatia que surge entre os dois, sentimento este que impactará a vida de ambos. 


Abraço Partido (2004) de Daniel Burman, o penúltimo filme da maratona, tem como pano de fundo a crise econômica que assolou a Argentina, sua história passa-se quase que totalmente no interior de uma galeria comercial, onde Ariel Makaroff (Daniel Hendler), o protagonista, trabalha. Ariel tenta tirar dupla cidadania (ele é descendente de poloneses) para conseguir finalmente deixar a Argentina e se mudar para a Europa. No entanto, o galho da árvore genealógica que pode o favorecer em sua tentativa de ter a cidadania polonesa aprovada, é o mesmo que o conduz à uma série de dúvidas sobre o seu passado. Seu pai, um judeu idealista, deixara a família pouco tempo depois dele nascer para se alistar no exército de Israel. A recusa da mãe e do irmão mais velho de tocar no assunto indica que pode haver algo que Ariel não sabe. O desenvolvimento da trama retrata a busca do jovem por informações que expliquem o fato do pai não ter voltado e o relacionamento dele com o que sobrou de sua família e com as outras pessoas que também trabalham na mesma galeria. O bom ritmo, a maneira com que diversas sub-tramas são costuradas e a ótima atuação de Hendler ajudam a tornar esta uma grande obra, digna de estar entre as melhores do Novo Cinema Argentino.


Crônica de uma Fuga (2006), dirigido por Adrián Caetano, o último da maratona, é baseado em fatos reais e tem sua trama ambientada durante o período em que a Argentina esteve sob uma ditadura militar. Claudio Tamburrini (Rodrigo de la Serna), o goleiro de um time argentino da segunda divisão, é sequestrado por agentes do governo e levado para uma antiga mansão, usada como campo de detenção e tortura. Lá um grupo de jovens é mantido em cativeiro e submetido a diversos tipos de tortura, métodos estes que são usados para arrancar deles confissões e dados sobre operações suspeitas e outros envolvidos com a militância política de esquerda. Claudio, que não tinha nenhum envolvimento com questões desta natureza, arquiteta junto com outros sequestrados um plano de fuga, que se torna uma última esperança para o grupo, que teme a pena mais alta aplicada pelo tribunal clandestino: a morte. O filme consegue retratar com realismo a angústia e o sofrimento vivenciado no local. A tensão criada pela trama chega a se tornar quase insuportável em alguns momentos. Trata-se, sem dúvidas, de uma grande obra, cujo valor transcende as questões meramente técnicas, é o tipo de história que precisa ser contada para que os erros do passado não voltem a ser cometidos.