Melancolia (Melancholia) - 2011. Escrito e dirigido por Lars von Trier. Direção de Fotografia de Manuel Alberto Claro. Produzido por Meta Louise Foldager e Louise Vesth. Zentropa Entertainments, Memfis Film, e Liberator Productions / Dinamarca | Suécia | França | Alemanha.
É inexplicável a reação de estar diante de uma verdadeira obra de arte e sendo assim seria uma tarefa árdua tentar convencer do contrário qualquer um que tenha apontado Melancolia (2011) como um filme chato e carente de um bom roteiro. Ele foi pra mim precisamente o oposto disso. Se trata de mais um exemplar daquele tipo raro de produção, que subverte totalmente a ideia de que o cinema serviria tão somente como bom entretenimento. Os desavisados que esperavam do longa uma boa história sobre catástrofes naturais certamente saíram do cinema amargando uma baita decepção. Lars von Trier consegue se superar e me surpreender a cada filme, eu, que considerei Anticristo (2009) uma espécie de ápice criativo, fiquei boquiaberto da primeira à última sequência de Melancolia. Se seu filme anterior evocava o asco ao expor sem atenuantes o mais brutal da natureza humana, neste ele reproduz de forma quase palpável a mais profunda angústia existencial, condição que ele mesmo experimentou nos últimos anos.
Melancolia tem sua trama focada em alguns dias na vida de duas irmãs, Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg), como de praxe Lars von Trier divide o filme em capítulos e dedica cada um deles a uma das irmãs. O primeiro, intitulado "Justine", acompanha a festa de casamento da personagem, ela não está empolgada com a cerimônia e está alheia à tudo que acontece à sua volta. A irmã, o cunhado e outros convidados exigem de Justine uma adequação às formalidades da ocasião, mas ela não deseja, nem consegue, cumprir as normas de etiqueta social que lhe cobram. Ele está imersa em um profunda depressão e todo o lampejo de alegria que esboça não passa de mera fantasia social. Sua melancolia é agravada pelas dúvidas que ela tem acerca de seu casamento, ela visivelmente tenta de tudo para agradar seu noivo, o gentil Michael (Alexander Skarsgård), mas isso também não passa de uma reação superficial, sem uma real entrega aos estímulos oferecidos pelo meio.
A explicação para a aversão de Justine à tudo que está vivendo pode estar na relação de seus pais, que estão separados, sua mãe é uma mulher liberal que não acredita nem no casamento, nem na família, já o pai parece apenas aceitar toda a situação que está vivendo sem questionar ou reclamar. Creio que não é por acaso que o filme comece justamente em uma cerimônia de casamento, afinal não é de hoje que o cinema usa a família como alegoria para situações experimentadas pelo indivíduo e pela coletividade, o casamento fadado ao fracasso aponta para a decadência da família e da própria sociedade, situações que atenuam ainda mais a angústia existencial experimentada pelos indivíduos. Aqui está um ponto chave do filme, o sofrimento e suas consequências seriam algo inerente à condição humana, algo comum a todos os indivíduos, o que varia é apenas a forma com que cada um reage a isso.
A segunda parte do filme, "Claire", direciona o foco para a segunda irmã, é neste capítulo que é anunciada a possível catástrofe, um planeta (isso mesmo, um planeta), chamado Melancholia está em rota de colisão com a Terra. Cientistas defendem que não acontecerá um choque entre os dois planetas, não havendo portanto com o que se preocupar, mas teorias diversas se espalham pela internet e Claire se expõe à elas. Ao contrário do que poderíamos esperar, é Claire, e não Justine, quem se alarma com um possível fim do mundo. Seria este o fim da existência? Em um diálogo Justine afirma: “A Terra é má, não precisamos sentir pena dela... estamos sozinhos, a vida só existe na Terra e não por muito tempo...”. Na primeira parte do filme, Claire faz de tudo para reprimir as emoções da irmã, nesta é ela quem não consegue controlar aquilo que sente, ela é tomada pelo pânico e pelo medo de perder tudo aquilo a que está apegada.
O planeta que se aproxima não é um mero detalhe, mas é tão somente uma metáfora. Assim como os personagens e suas respectivas realidades não passam de alegoria do que seria de fato real. Para Lars apenas a dor é real e ela contagia cada um de seus personagens, nenhum deles fica ileso. No tocante à metáfora ilustrada pela aproximação do planeta, entendo que a pretensão do roteiro é construir uma associação entre a iminência de uma catástrofe e a forma com que nos relacionamos com a nossa dor e a nossa angústia. A melancolia de Justine a torna imune ao medo, pois ela não tem nada a perder, o fim do mundo significa, ao seu modo de ver, o fim do sofrimento. Já Clarie está completamente indefesa, pois é então que ela passa a ter noção de sua própria fragilidade, Melancholia então a assusta de uma forma bem diferente da dos outros personagens, seu marido, John (Kiefer Sutherland) se apóia na ciência para acalentá-la e para dissimular seu próprio temor.
Mais uma vez a ciência é a extensão da ignorância e da limitação humana, o que aponta para uma visão totalmente cética e niilista. O homem não pode confiar em Deus (estamos falando de Lars von Trier), não pode confiar em si mesmo, nem tão pouco na ciência... O que restaria seria apenas uma opção por se entregar à dor, sentimento que seria capaz de tornar o indivíduo mais forte, à medida que este estivesse exposto a ele. Percebe-se aqui mais um eco da filosofia de Nietzsche na obra de Trier (o roteiro de Anticristo também tem perceptível influência da obra deste pensador, conforme comentei na resenha crítica que fiz do filme), que se manifesta nesta ideia de que o sofrimento seria o estímulo capaz de livrar o indivíduo da sentença de pairar constantemente no ar, se distanciando da terra e do que seria a verdade experimentada. Esta condenação, da qual o homem é liberto, poderia leva-lo a se tornar um ser “semi-real”, sendo assim a dor seria o fardo que empurra para o chão, para a realidade.
O desfecho do filme, que muitos apontaram como o mais positivista de Lars von Trier, não passa, ao meu modo de ver, de mais uma piada do cineasta. Ele ironiza metaforicamente as ilusões criadas para trazer conforto e atenuar a dor que se sente. O filme termina e me sobra uma pequena dúvida, teria Justine transcendido sua condição melancólica e alcançado o ideal proposto por Nietzsche do “super-homem”? Na verdade encontrar a resposta para esta pergunta não é o mais importante, o que importa é ter chegado à ela. Reforçando sua condição de obra de arte, o filme nos conduz a esta reflexão e a tantas outras acerca de nossa natureza, de nossas relações sociais e de nossas angústias. Posso não concordar com esta visão, mas isso também não importa, o fato é que Melancolia é uma verdadeira obra prima, seja pela trama, pelas excelentes atuações ou pela belíssima fotografia. Sem dúvidas um dos melhores filmes deste ano, porém seria uma besteira recomendá-lo para todos...
Melancolia ganhou o prêmio de Melhor Atriz ( Kirsten Dunst) no Festival de Cannes.
Confira também aqui no Sublime Irrealidade a resenha crítica de
Anticristo, também escrito e dirigido por Lars von Trier!