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sábado, 13 de maio de 2023

Esperando Godot - “O absurdo é a vida!”

Esperando Godot. Adaptada da peça En attendant Godot de Samuel Beckett. Montagem realizada pelo Teatro Oficina com a direção de Zé Celso. Apresentando Marcelo Drummond, Alexandre Borges, Ricardo Bittencourt, Roderick Himeros e Tony Reis. Primeiro espetáculo da temporada, estreia no SESC Palladium em Belo Horizonte.

Dois homens à beira de uma estrada esperam por algo, ou por alguém, alguém que disse que viria, bem, que talvez disse que viria, mas, será que era alguém mesmo? Será que já não veio? Que dia disse que viria? Que dia é hoje? Quinta? Sexta? Talvez sábado. Talvez não venha hoje, mas amanhã…

O drama de “Esperando Godot” é o drama da ânsia pelo que aparenta nunca se concretizar, pelo que sempre se adia, que ora renova expectativas, ora frusta a mais resiliente das esperanças. Há quem, diante do vazio da espera, que é por extensão o vazio da própria existência, consiga rir. Hoje, durante a encenação, muita gente conseguiu, eu não consegui, mesmo nas passagens em que o tom cômico estava aflorado. Como rir diante da angustia provocada pela repetição e pela completa ausência de sentido? 



A peça nos mostra espelhos e em dado momento nos alerta: “estamos ficando menores, cada vez menores”, mas alguns de nós nem se da conta disso. Ao final, durante os agradecimentos, Zé Celso sentenciou, o absurdo não é do teatro, é da vida, isso resume tudo. A peça fala de todos nós, alguns compreendem isso, outros não. Mas, apesar das expectativas frustradas, ainda há alguma esperança, nem tudo permanece sempre igual, apesar de ser a repetição uma propulsora da crescente perda de sentido. A esperança se abraça ao nada, encara o dia que se esvai como superação - “menos um dia” - sem perceber que é a própria vida que se esgota pouco a pouco. Em uma existência que se resume a uma sequência de ciclos que se repetem indefinidamente, a cada volta tudo parece importar um pouco menos. É a lógica do eterno retorno de Nietzsche. 


Hoje, na faculdade, no caminho entre uma sala e outra, meu professor comentou sobre a experiência com dores crônicas, a sensação parece menor quando se passa a antever quando e de que forma a dor virá e quando e de que forma ela desaparecerá. Não é que dói menos, é a experiência repetida que evoca menos significados, o medo e a apreensão se tornam menores diante do que já é familiar. Isso explica a mudança de tom que há entre o primeiro e o segundo ato da peça. A repetição como farsa não sucede uma experiência trágica, mas uma outra farsa, que é antecedida por outra e as pontas disso nunca são encontradas encontradas, nem o começo, nem o fim. Daí o absurdo. A vida como absurdo.



Quem seriam Vladimir (Alexandre Borges) e Estragão (Marcelo Drummond), os dois homens à espera de Godot? Paupérrimos, maltrapilhos, amargurados e desiludidos, poderiam ser eles uma espécie de alegoria do gênero humano? No meu entendimento não, há diferentes formas de lidar com o vazio, o que se nota nos poucos personagens que atravessam aquelas paragens e a vida dos protagonistas. O homem rico explorador, o trabalhador extenuado, o mensageiro. Eles, cada um ao seu modo, lidam com a mesma falta de sentido, mas, representam categorias distintas, o burguês, o proletário e o religioso, que se põe entre homem e divindade…. Mas, e Vladimir e Gogo? Há uma pista. Em uma passagem um dos protagonistas diz ao outro: “você devia ter sido poeta”, no que o outro responde: “eu fui, não está na cara?”. 


Acredito que a metalinguagem da peça vá bem além das quebras da quarta parede, que há no desenrolar (ou no emaranhar, melhor dizendo) de sua trama. Creio que Vladimir e Estragão sejam artistas, há indicações disso em diversas passagens. Não haveria um paralelo entre o que se despe de sentido na medida em que repete na vida, e a encenação de uma peça, que faz com que o autor, os atores e demais membros da trupe revivam todo o dia a mesma noite? 


Seria a angústia dos dois expectadores (os que criam expectativas) diante da submissão e agressividade do trabalhador extenuado, uma referência à dificuldade do diálogo entre uma arte de algum modo engajada e as classes populares que deveriam ser as protagonistas da luta?



Não seriam a angústia, a frustração, ou mesmo a esperança teimosa dos personagens uma extensão da própria vivência do Zé Celso e da forma com que ele lida com seus próprios fantasmas? Pois é, não creio que a montagem tenha sido por acaso. Não seria surpresa o fato de que alguém, do alto de seus 86 anos, esteja entregue às reflexões acerca do sentido da vida, da solidão, do silêncio do divino e da posição de cada um diante das dores do mundo. 


Às vezes, mesmo depois de tanto tempo fazendo uma mesma coisa, é pertinente que se indague “o quê mesmo que estamos fazendo aqui? Vamos embora?”, alguém pode até responder “estamos esperando Godot”, e a saída talvez esteja em subverter tal espera, em não deixar que ela se transforme em uma crescente paralisia. Zé Celso cansou de esperar Godot, e nós?



En attendant Godot foi escrita originalmente em 1949 pelo dramaturgo irlandês Samuel Beckett e estreou nos palcos em 1953 sob a direção de Roger Blin, tida como uma das peças mais importantes do chamado Teatro do Absurdo, ela foi remontada em diversas partes do mundo e é apontada como uma das produções mais importantes da história do teatro. Esta é a terceira vez que o Teatro Oficina realiza a montagem.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Culpa e compulsão em “A Baleia” de Darren Aronofsky


Um artista, ao criar uma obra de arte, ainda que adaptada a partir de outra, empresta a ela seu próprio horizonte de sentido, na obra ficam impressos sua visão de mundo, seus sentimentos e suas questões mais profundas. Evidente que isso nem sempre acontece e, normalmente, a falta de uma marca autoral é o que distingue uma obra de arte de um mero produto de entretenimento. Quando mais o autor se sujeita a fórmulas preconcebidas, menor será a sua marca autoral. Se em uma adaptação, por exemplo, o autor se sujeita por completo ao texto original, a marca autoral que prevalecerá será a do autor original.

Darren Aronofsky é um exemplo de cineasta com uma marca autoral fortíssima, que perpassa todos os seus filmes, sem excessão. No caso dele, a marca está em aspectos técnicos, mas principalmente nos questionamentos levantados pelas narrativas. Há dois temas que podem, a partir de um olhar mais atento, ser identificados em todos os filmes, são eles culpa e compulsão. E a relação entre eles é de uma causa e efeito que se retroalimenta, a culpa produz compulsão, a compulsão que nunca se satisfaz produz mais culpa, que atenua mais ainda a compulsão e assim por diante.

Ao lidar com a culpa, os personagens de Aronofsky esboçam dois tipos de comportamentos, que, apesar de parecem opostos, a linha que os separa é extremamente tênue. Há os que desejam entregar desempenhos transcendentais para aplacar a culpa, e há os que se destroem em razão dela. É na autodestruição como parte do processo no qual o personagem se transcendentaliza que estes comportamentos opostos acabem se tocando. 


“Cisne Negro”, “Pi”, “Noé”, “Fonte da Vida” e “O Lutador” são exemplos do primeiro caso, “Réquiem para um Sonho” e “Mãe” e “A Baleia” do segundo. Seja como uma opção abnegada ou como uma consequência de ir além dos próprios limitas na busca pela transcendentalidade, o fim acaba sendo comum: o sacrifício como forma de expiação da culpa. Culpa e compulsão dialogam com outros dois temas recorrentes: pecado e expiação. Não por acaso, o elemento religioso está presente em boa parte das obras.

Sem entender isso, que seria o básico para analisar uma obra de Aronofsky, “A Baleia”, seu filme mais recente, certamente se torna um desastre. Mas, do contrário, a compreensão das questões levantadas dão uma outra dimensão para o roteiro. Definitivamente, não se trata de um filme de atuação, assim chamado aqueles em que o desempenho de um ator ou de um grupo de atores se sobrepõe aos demais aspectos. Brandan Fraser entrega um desempenho assustador, mas, é preciso ressaltar que não é um aspecto descolado dos demais. 

É um erro, neste e em qualquer outro filme, separar aspectos técnicos da narrativa. Aspectos técnicos servem à narrativa, por isso não há possibilidade de avaliá-los sem considerar o básico: a forma com que eles se relacionam com os demais elementos da linguagem cinematográfica. Dito isso, é preciso ressaltar o quanto a direção de arte, a montagem, a edição de som, e fotografia com toda sua textura, ajudam em conjunto a compor um ambiente opressivo, sempre à meia luz, o que ajuda a reforçar a ideia de reclusão do personagem. 


A falta de luz nos ambientes pode ser interpretada como uma metáfora para a ausência de Deus, e a grande questão posta é a seguinte: ou Ele não existe, ou abandonou o personagem principal (percebam que esta é apenas mais uma das relações paternas, que envolvem abandono, abordadas pelo filme). 

Se o escuro representa a ausência de Deus, a luz, obviamente irá representar sua presença. A casa está tomada pelas sombras, mas lá fora há luz (fisicamente falando e metaforicamente também, basta que lembremos do pássaro que vem à janela para comer). Outro ponto que reforça tal interpretação é o de que em pelo menos três momentos da narrativa, personagens são impedidos de sair da casa pela chuva que cai lá fora. Estaria Deus dando uma chance de reconciliação para os personagens? Uma passagem que envolve dois deles aponta para uma resposta para esta pergunta.

Referências claras à obra “Moby-Dick” de Herman Melville estão espalhadas por todo o filme, a começar pelo nome. Na história contada pelo livro o caçador passa a vida inteira perseguindo a baleia, quando ele finalmente a alcança, todo o esforço da busca perde o sentido. A baleia não era o importante, era apenas uma compulsão. A compulsão afasta do que é real de fato. 



Percebo ainda outra referência, esta não tão clara, que é à obra “A Metamorfose” de Franz Kafka, que tem como tema, adivinhem… a culpa. Tal como Gregor Sansa do livro de Kafka, Charlie o personagem de “A Baleia” se enxerga como uma figura monstruosa capaz de causar repulsa em quem quer que seja. A aparência é, em ambos os casos, uma metáfora para a culpa que corrói internamente. 

E Deus diante da culpa? Se agradaria do autoflagelo de quem se reconhece como pecador. Esta é outra questão que vem à toda em alguns momentos. No fim das contas, o mal maior talvez seja a hipocrisia, o que faz com que cada um tenha receio de se expor como realmente é, e a “salvação” talvez esteja na aceitação do real, em outras palavras, em se mostrar como se é, ou em ser autêntico.