Os Suspeitos (Prisoners) - 2013. Dirigido por Denis Villeneuve. Escrito por Aaron Guzikowski. Direção de Fotografia de Roger Deakins. Música Original de Jóhann Jóhannsson. Produzido por Kira Davis, Broderick Johnson, Adam Kolbrenner e Andrew A. Kosove. Alcon Entertainment, 8:38 Productions e Madhouse Entertainment / USA.
Toda sociedade possui um sistema legal, simples ou complexo, cuja função é proteger a coletividade e o indivíduo de uma provável ruína que poderia ser causada por desvios de conduta, crimes ou contravenções. Ao criar um conjunto de leis e normas a serem seguidas, a sociedade transfere para uma instância maior (no caso o estado) o poder de legislar, julgar e executar penas que corrijam as distorções observadas. Porém, quando um indivíduo ou grupo decide reivindicar para si algum destes poderes que foram outorgados ao estado, todo o sistema legal entra em colapso e isso põe em risco toda a organização social. Tal usurpação de poder geralmente ocorre quando algum tipo de fragilidade é percebido no sistema. Em algumas situações, no entanto, esta fragilidade surge apenas de uma leitura equivocada da realidade, muitas vezes motivada por emoções que se encontram à flor da pele e pelo impulsos que delas decorrem.
Esta questão, que é bastante complexa, está no cerne da trama de Os Suspeitos (2013), o filme mais recente do cineasta canadense Denis Villeneuve. O longa, que já figura em algumas listas dos melhores do ano, nos coloca diante de uma complicada questão moral: até que ponto a intervenção do indivíduo no sistema pode ser justificada pela suposta ineficácia do aparato legal. O roteiro nos aproxima emocionalmente da história contada ao nos colocar na condição de voyers. Nossas emoções são despertadas através do suspense criado de forma magistral por cada um dos elementos de linguagem e o nervosismo e a ansiedade que experimentamos diante de determinadas passagens chega a tornar compreensível as posturas controversas de alguns dos personagens e isso acontece com maior intensidade em pelos menos dois momentos do filme, o que é o resultado de um fenômeno interessante que comentarei mais adiante.
A história começa com o misterioso desaparecimento de duas garotinhas no dia de ação de graças (um detalhe de extrema importância para a narrativa), à princípio as suspeitas recaem sobre Alex Jones (Paul Dano), um jovem mentalmente perturbado que fora visto nas redondezas pouco antes do sumiço das meninas. Alex é detido e interrogado, porém a falta de provas faz com que a suspeita não seja confirmada pela polícia local. Keller Dover (Hugh Jackman), o pai de uma das garotas, se revolta ao descobrir que Jones fora solto após decorrido o prazo legal, durante o qual a polícia podia mantê-lo sob custódia mesmo sem ter provas contra ele. Mesmo sem nenhum indício de que o rapaz tenha algum envolvimento com o caso, Dover se convence de que ele é o responsável, ou um dos responsáveis, pelo desaparecimento de sua filha. Descrente na atuação da polícia, ele sequestra o suspeito e passa a torturá-lo em busca de informações.
Keller Dover usurpa para si o poderes de jurgar e de executar penas, totalmente descontrolado ele age sem ao menos refletir sobre o peso, o significado e as consequências de suas ações. No afã de encontrar a filha, ele acaba envolvendo também os pais da outra menina no sequestro; Franklin (Terrence Howard) e Nancy Birch (Viola Davis) vivenciam de uma forma ainda muita intensa o dilema moral que toda a situação representa, mas mesmo assim acabam sendo coniventes com as ações desesperadas de Dover. Os atos dos três são tão condenáveis quando os do sequestrador de suas filhas, com a diferença de que as ações deste são apenas presumidas enquanto que as deles são reais e extremamente violentas. A postura de Grace (Maria Bello), a esposa de Keller, é bem diferente da do marido, ela se abate terrivelmente com a situação, mas consegue manter um considerável nível de lucidez, mesmo permanecendo na maior parte do tempo sob o efeito de medicamentos tranquilizantes.
Loki (Jake Gyllenhaal), o detetive responsável pelo caso, é outro personagem de extrema importância para a narrativa, ele é a representação perfeita das limitações e da fragilidade do estado. Visivelmente atormentado pelos seus próprios fantasmas, ele recorre a respostas vazias para manter os ânimos dos familiares das vítimas sob controle, todavia fica evidente que nem ele mesmo consegue mais acreditar naquilo que diz. Em uma das passagens mais emblemáticas do filme ele próprio decide ultrapassar os limites da lei em busca de uma informação; esta passagem aponta para um problema maior e deixa evidente qual é a real intenção do roteiro ao abordar as problemáticas em torno desta questão.
Acredito que a proposta da trama de Os Suspeitos não é emitir juízo moral, nem tão pouco condenar as ações de seus personagens, talvez a sua real intensão seja a de colocar as questões abordadas em evidência, chamando assim a atenção para a fragilidade dos poderes constituídos, para as consequência da usurpação destes poderes por pessoas ou grupos que se encontrar incapacitados para administrá-los e principalmente para conduta moral que demonstramos diante de uma situação semelhante. É neste último ponto que se encontra a importância do processo mental criado pelo filme, que nos coloca em uma situação similar à dos personagens que decidem agir à margem da lei. É natural que nós expectadores, ao assistirmos a um filme, aprovemos ou não os atos dos personagens diante de algumas situações complexas, aqui tal avaliação de conduta ganha uma enorme importância, por estar diretamente relacionada à reflexão que o filme propõe.
As ótimas atuações aliadas à excelente construção dos personagens tornam a história ainda mais forte, impactante e plausivelmente real. A trilha sonora, a fotografia, os movimentos de câmera e a edição contribuem para a manutenção de um clima extremamente opressivo e melancólico, que é condizente com o retrato social que o filme como um todo representa. Em um ano em que consegui assistir a um número bem reduzido de filmes, Os Suspeitos foi uma das mais gratas surpresas, não tenho dúvidas, trata-se de uma obra de inegável qualidade, que prova que Hollywood ainda é capaz de dosar na quantidade certa o entretenimento e a profundidade dramática.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.