Na semana passada, os olhares do mundo se voltaram novamente para o oriente médio. O atentato na França, praticado por fundamentalistas islâmicos contra o periódico Charlie Habdo, trouxe novamente à tona discussões sobre os efeitos nefastos do fundamentalismo religioso. E, como já era de se esperar, não tardou para que a discussão ganhasse, em diversos momentos, contornos xenofóbicos e islamofóbicos. Pautados pelo mídia ocidental, frequentemente esquecemos que o fundamentalismo está presente não só no islamismo; os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque com a bandeira do cristianismo hasteada; Israel há décadas massacra o povo árabe em nome da tradição judaica. No entanto, a impressão que ainda se tem é a de que todo muçulmano é um terrorista em potencial, o que, obviamente, é puro preconceito.
Por acaso, ou por mera ironia do destino, eu tinha começado esta maratona com filmes iranianos poucos dias antes do atentado e, já nos primeiros filmes, eu já tinha refletido sobre a importância desta riquíssima produção cinematográfica, que consegue mostrar uma realidade que tão pouco conhecemos, isso porque simplesmente a mídia, à qual temos acesso, prefere, por questões políticas e econômicas, não retratá-la. Esta reflexão se intensificou após o atentado... Diante de obras dotadas de um humanismo tão belo e tão tocante é praticamente impossível não questionar as impressões preconcebidas que alimentamos durante tanto tempo. O Irã retratado nestas obras é ao mesmo tempo tão distante e tão próximo de nossa própria realidade. Ainda existe o afastamento cultural e geográfico, porém há coisas muito mais profundas que nos aproximam e nos ajudam a compreender uma realidade que ainda nos causa tanto estranhamento.
O Irã é atualmente o maior produtor de gás natural do mundo e possui a 4° maior reserva comprovada de petróleo, não por acaso ele se encontra no eixo afetado pelo conflito econômico (disfarçado de religioso) que há décadas dizima o Oriente Médio. Obviamente, a realidade social, política e econômica do país influencia diretamente sua produção cultural, os ecos dos inúmeros conflitos, da desigualdade social e da falta de liberdade estão presentes em praticamente todos os filmes iranianos que já assisti, porém estes temas são retratados na maioria das vezes de uma forma singela e altamente poética, um efeito natural da censura e da patrulha ideológica que já vitimou, dentre outros, o cineasta Jafar Panahi, que foi condenado a seis anos de prisão e a 20 anos sem filmar, escrever ou sair do país, sob a acusação de conspirar contra o regime de Mahmoud Ahmadinejad e filmar sem autorização prévia do governo.
Estilisticamente, o cinema iraniano bebe muito da fonte da Nouvelle Vague Francesa e do Neorrealismo Italiano; da primeira escola foi herdado o experimentalismo formal e estético, a construção de tramas minimalistas que ganham significados maiores durante os seus desenvolvimentos e a supremacia do viés autoral em relação ao comercial; da segunda escola foi herdado o fatalismo social, a opção por filmar nas ruas e em locação reais e não em estúdios e a preferência por retratar a dura realidade dos oprimidos e dos menos favorecidos - Sem mais delonga, vamos aos filmes. Desta vez, optei por comentá-los não na ordem em que foram vistos, mas separando-os por autores, pois assim fica mais fácil correlacioná-los.
Assisti a quatro filmes de Abbas Kiarostami, um dos maiores nomes do cinema iraniano, cuja obra é marcada por reflexões morais e existencialistas. A morte, o sentido da vida, a felicidade e o sofrimento que há no mundo são temas recorrentes em seus filmes, que ganham ares filosóficos ao abordar tais questões. Três dos longas assistidos compõem aquela que ficaria conhecida como a trilogia de Koker. O primeiro deles, Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), tem como protagonista o menino Ahmad (Babek Ahmed Poor), que sai de Koker, o vilarejo onde mora, para procurar a casa de um colega de escola para devolver-lhe um caderno de tarefas que seria avaliado pelo professor no dia seguinte. Em sua busca, o menino acaba se encontrando com diversas outras pessoas com quem acaba interagindo, os diálogos deixam evidente que o plot da trama é apenas um ponto de partida e que ela está na verdade discutindo questões muito mais complexas. Vale destacar a ótima atuação de Babek e a capacidade do cineasta de usar como elementos de linguagem as locações, os enquadramentos e a escolha entre o que mostrar e o que não mostrar - muitas vezes o que não é mostrado diz muito mais do que aquilo que vemos.
O segundo filme da trilogia de Koker, Vida e Nada Mais... (1992), retrata a busca de um cineasta (Farhad Kheradmand), alter-ego de Abbas, e de seu filho (Buba Bayour) por notícias de Babek Ahmed Poor, o ator que interpretou Ahmad no filme anterior. A história se passa no ano de 1990, dias após um terremoto que devastou toda uma região do Irã. O cineasta teme que o menino que participara de seu filme esteja morto, assim como tantas outras pessoas da cidade de Keker... O formato do longa é semelhante o de seu antecessor, porém agora os protagonistas, que também procuram desesperadamente por algo, estão em um carro e interagem com pessoas que encontram à beira da estrada. Dos diálogos surgem reflexões sobre a morte e sobre o sofrimento. O fatalismo se faz presente nos depoimentos de pessoas que atribuem tão somente à vontade de um deus a responsabilidade pelo sofrimento que se abatera sobre as suas vidas. O cenário de destruição remete diretamente ao neorrealismo italiano e a relação entre pai e filho mostrada no filme me fez lembrar de um dos maiores clássicos desta escola, Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio De Sica.
No último filme da trilogia, Através das Oliveiras (1994), a metalinguagem adquire uma proporção ainda maior. Na história, que se passa no set de filmagens de Vida e Nada Mais..., o diretor (Mohamad Ali Keshavarz), novamente um alter-ego de Abbas, se vê na difícil situação de dirigir um casal de jovens atores, o rapaz (Hossein Rezai) está apaixonado pela moça (Tahereh Ladanian), porém a família dela não aceita o casamento porque ele é analfabeto e não tem uma casa para morar. Ciente de que se trata de um amor impossível ela se recusa a conversar com ele e sequer dá algum tipo de atenção para as inúmeras perguntas e declarações que ele faz. Eles interagem um com o outro apenas nos momentos da gravação, quando estão ambos nas peles de seus respectivos personagens... Neste filme a reflexão proposta sai do campo existencialista e vai, na maior parte dos diálogos, para o social. Sutilmente o diretor chama a atenção para o distanciamento entre as classes e para costumes separatistas que continuam sendo propagados de geração para geração.
Em O Vento Nos Levará (1999), Kiarostami coloca a morte novamente no foco das reflexões filosóficas ensaiadas pela trama. Na história, um homem (Behzad Dorani) conhecido apenas como o 'engenheiro' chega com sua equipe a uma cidade do interior do Irã com a desculpa de que fará um serviço de engenharia. Mas, o real interesse do grupo é na verdade documentar um tipo de cerimônia religiosa, realizada em sepultamentos, que só acontece naquela região do país. O 'engenheiro' e sua equipe esperam ansiosos pela morte de uma anciã que, acometida por uma doença grave, se encontra impossibilitada de andar e não consegue mais comer. Porém, os dias vão passando e a moribunda começa apresentar sinais de melhoras, o 'engenheiro' se vê então diante de um dilema ético e moral e deste dilema surgem as reflexões sobre a finitude da vida, sobre a sua desvalorização diante da espetaculização da morte e sobre a nossa própria fragilidade e efemeridade.
Majid Majidi, um dos meus favoritos dentre os iranianos, consegue estabelecer um meio termo muito interessante entre o realismo proposto por Bahman Ghobadi - cujos filmes comentarei mais adiante - e a poética das obras de Kiarostami. Com um olhar sempre singelo, ele retrata através de suas obras a luta de indivíduos para se adaptarem e sobreviverem em meios que lhes são de alguma forma estranhos e hostis. Assuntos como desemprego, pobreza, má qualidade de serviços públicos ganham evidência em suas obras, porém de uma forma que consegue ser contestadora sem perder a ternura e a sensibilidade. Em Filhos do Paraíso (1997), Majidi parte de uma situação simples para construir uma história capaz de nos emocionar e nos fazer questionar uma série de paradigmas. Ali (Amir Farrokh Hashemian) mora com os pais e a irmã, Zahra (Bahare Seddiqi) em um subúrbio de Teerã, capital do Irã, sua mãe está doente e o pai provê o sustento da casa fazendo pequenos bicos. No início da história Ali perde um par de sapatos da irmã e, com medo da represália da mãe, ele não conta sobre o ocorrido. À partir de então ele e a irmã passam a dividir um surrado par de tênis para irem à escola, o que acaba os envolvendo em uma série de confusões.
A Cor do Paraíso (1999), tem como personagem principal, o menino Mohammad (Mohsen Ramezani), ele, que estuda em uma escola para cegos em Teerã, é levado pelo pai nas férias para reencontrar o restante da família, de quem ele ficou distante por um ano. Apesar de ser cego, o garoto consegue perceber e decodificar o mundo que o cerca melhor do que todos os outros que estão à sua volta. Seu maior desafio, no entanto, é convencer o pai de que pode se virar sozinho e de que tem talento o suficiente para ir muito além de onde ele próprio conseguiu chegar... Tanto em Filhos do Paraíso, quanto em A Cor do Paraíso, as crianças são quem representam uma oportunidade de superação do contexto relativamente opressivo no qual todos estão inseridos. O curioso é que os adultos, presos aos seus dogmas, costumes e legalismos, não conseguem compreender isso e acabam colocando em risco aquilo que pode ser um último fio de esperança de que aconteça uma real mudança nas vidas de todos. Este viés também está presente em A Canção dos Pardais (2008), filme de Majid Majidi já resenhado aqui no Sublime.
Bahman Ghobadi trilha um caminho bem diferente dos seguidos por Abbas Kiarostami e Majid Majidi, o realismo de seus filmes é mais seco e muito mais brutal. Suas obras retratam os absurdos dos conflitos armados e do terrorismo de uma forma direta, sem tantos atenuantes. Se outros cineastas citados conduzem à reflexão por meio de metáforas e de sutilezas, Ghobadi o faz pelo choque. Isso no entanto não tira de seus filmes a beleza estética e um certo lirismo que eles trazem consigo. Me perguntei várias vezes, enquanto assistia às suas obras, de onde vinha este lirismo; cheguei à conclusão de que ele vem do destaque que se dá à inocência e à esperança que ainda resistem em meio ao caos, aspecto presente nas duas obras assistidas. Tempo de Cavalos Bêbados (2000) retrata a realidade de atravessadores que cruzam as montanhas geladas da fronteira do Irã com o Iraque com produtos e/ou emigrantes ilegais. Ayoub (Ayoub Ahmadi) e Ameneh (Amaneh Ekhtiar-dini), os protagonistas, são apenas crianças, mas já trabalham em uma feira e dividem com o pai viúvo a responsabilidade pela criação dos outros três irmãos, dentre eles Madi (Madi Ekhtiar-dini), o caçula, que tem uma grave doença. Com a morte do pai eles se vêm obrigados a assumir todas as responsabilidades sozinhos e a necessidade os levam a se envolver com os grupos de atravessadores.
Tartarugas Podem Voar (2004) também mantém o foco de sua narrativa sobre as crianças. Na história, Satellite (Soran Ebrahim) é um menino que lidera um grupo de crianças órfãs que desenterram minas para revendê-las. A trama, que se passa na fronteira entre o Irã e a Turquia, se desenvolve nos dias que antecedem a invasão americana ao Iraque. No vilarejo todos querem receber notícias sobre a guerra que se aproxima, Satellite propõe então que façam o mesmo que foi feito em outros vilarejos vizinhos, uma 'vaquinha' para comprar uma antena parabólica para sintonizar canais estrangeiros. Com a colaboração de quase todos e com a ajuda do tino que o garoto tem para os negócios, eles acabam conseguindo comprar uma antena por um bom preço (parte do pagamento é feito com minas desenterradas pelo grupo de garotos). As poucas notícias que chegam vão aumentando gradativamente a tenção, mas Satellite parece sentir um prazer estranho diante de tudo o que está acontecendo, ele nutre um certo fascínio pela cultura americana. Fascínio este que demora para ser desconstruído.
Os três últimos filmes pertencem a cineastas diferentes - O Balão Branco (1995) de Jafar Panahi é uma das obras-primas do cinema iraniano, com sua trama minimalista, que remete às obras de Abbas Kiarostami, de quem Panahi já foi auxiliar de direção, ele consegue emocionar e chamar a atenção para questões que ainda minam a convivência humana, como a falta de diálogo, o egoísmo, a falta de perdão e, principalmente a incapacidade da maioria de estender a mão para alguém que precisa. No filme, a pequena Razieh (Aida Mohammadkhani) consegue convencer a mãe a lhe dar dinheiro para comprar um peixinho dourado para as comemorações do ano novo iraniano (uma antiga tradição no Irã), porém ela acaba perdendo o dinheiro no caminho até a loja. Ele reencontra a nota perdida, porém logo em seguida a perde novamente. Ela então descobre que a cédula caíra em um vão que dá no sub-solo de uma outra loja... Este é apenas o começo da odisseia da menina, que conta com a ajuda do irmão Ali (Mohsen Kafili), pouco mais velho que ela, para tentar recuperar o dinheiro. Sutilmente a trama fala ainda de solidão e desamparo, sentimentos que aparentam serem comuns entre os iranianos.
Gabbeh (1996), de Mohsen Makhmalbaf, é puro lirismo, nele a fantasia se estende à cada uma das passagens, cada fotograma parece uma pintura. Com inúmeras referências à tradição, à religiosidade e aos costumes iranianos, o filme constitui um belíssimo tratado sobre prazer, a busca pelo amor idealizado, o envelhecimento, a dor da perda e principalmente sobre o decorrer de tempo, que corre inexorável e alheio às paixões e angústias. Eu diria que ele é também um filme de arte sobre a arte, sua trama fala justamente da forma com que a criação artística serve de expressão para as alegrias e as dores que vivenciamos. A história se inicia com um casal de idosos lavando um tapete persa em um rio. Uma linda moça, que aparenta sair do tapete, começa a contar para a casal a sua história; ela é apaixonada por um rapaz que frequentemente aparece em seu vilarejo à cavalo e apenas a observa de longe, um amor avassalador, porém impedido de se realizar pelas tradições seguidas pela família dela. No desenrolar da trama, as duas histórias se entrelaçam, a do casal de idosos (seria esta a realidade?) e a da jovem que anseia viver um amor desmedido (seria esta apenas uma abstração artística?). Gabbeh consegue ser ao mesmo tempo reflexivo e sensorial, é impossível não ser impactado de alguma forma por ele.
A Maçã (1999) é o filme de estreia da cineasta Samira Makhmalbaf, filha de Mohsen Makhmalbaf. Na trama, duas garotas de 12 anos, Massoumeh (Massoumeh Naderi) e Zahra (Zahra Naderi), gêmeas, são mantidas presas pelos pais dentro da própria casa desde que nasceram. A prisão retardou seus desenvolvimentos intelectuais, elas não conseguem falar e na maioria das vezes não conseguem lidar com situações simples do cotidiano. Um vizinha decide então fazer um abaixo assinado pedindo a intervenção do Departamento de Bem Estar Social; este, representado por uma assistente social, passa a acompanhar a família e pouco a pouco as meninas vão conquistando uma liberdade que nunca tiveram. A genialidade do filme está na forma com que ele, num tom que chega a ser a ser quase documental, remete à origem dos vários tipos de prisões. Uma das passagens mais emblemáticas intercala cenas das meninas presas na casa onde moram com cenas da vizinha, a mesma que fez o abaixo assinado, torcendo roupas na janela de sua casa, em ambas situações as mulheres são retratadas atrás de grades. É a forma sutil da diretora de dizer que a prisão também pode ser a limitação imposta pela vida conjugal em um opressivo sistema patriarcal.
Confiram também aqui no Sublime Irrealidade as resenhas de outros filmes iranianos:
A Canção dos Pardais (2008) de Majid Majidi
A Separação (2011) de Asghar Farhadi
Confiram também o post sobre a maratona de cinema argentino: