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quarta-feira, 8 de março de 2023

Culpa e compulsão em “A Baleia” de Darren Aronofsky


Um artista, ao criar uma obra de arte, ainda que adaptada a partir de outra, empresta a ela seu próprio horizonte de sentido, na obra ficam impressos sua visão de mundo, seus sentimentos e suas questões mais profundas. Evidente que isso nem sempre acontece e, normalmente, a falta de uma marca autoral é o que distingue uma obra de arte de um mero produto de entretenimento. Quando mais o autor se sujeita a fórmulas preconcebidas, menor será a sua marca autoral. Se em uma adaptação, por exemplo, o autor se sujeita por completo ao texto original, a marca autoral que prevalecerá será a do autor original.

Darren Aronofsky é um exemplo de cineasta com uma marca autoral fortíssima, que perpassa todos os seus filmes, sem excessão. No caso dele, a marca está em aspectos técnicos, mas principalmente nos questionamentos levantados pelas narrativas. Há dois temas que podem, a partir de um olhar mais atento, ser identificados em todos os filmes, são eles culpa e compulsão. E a relação entre eles é de uma causa e efeito que se retroalimenta, a culpa produz compulsão, a compulsão que nunca se satisfaz produz mais culpa, que atenua mais ainda a compulsão e assim por diante.

Ao lidar com a culpa, os personagens de Aronofsky esboçam dois tipos de comportamentos, que, apesar de parecem opostos, a linha que os separa é extremamente tênue. Há os que desejam entregar desempenhos transcendentais para aplacar a culpa, e há os que se destroem em razão dela. É na autodestruição como parte do processo no qual o personagem se transcendentaliza que estes comportamentos opostos acabem se tocando. 


“Cisne Negro”, “Pi”, “Noé”, “Fonte da Vida” e “O Lutador” são exemplos do primeiro caso, “Réquiem para um Sonho” e “Mãe” e “A Baleia” do segundo. Seja como uma opção abnegada ou como uma consequência de ir além dos próprios limitas na busca pela transcendentalidade, o fim acaba sendo comum: o sacrifício como forma de expiação da culpa. Culpa e compulsão dialogam com outros dois temas recorrentes: pecado e expiação. Não por acaso, o elemento religioso está presente em boa parte das obras.

Sem entender isso, que seria o básico para analisar uma obra de Aronofsky, “A Baleia”, seu filme mais recente, certamente se torna um desastre. Mas, do contrário, a compreensão das questões levantadas dão uma outra dimensão para o roteiro. Definitivamente, não se trata de um filme de atuação, assim chamado aqueles em que o desempenho de um ator ou de um grupo de atores se sobrepõe aos demais aspectos. Brandan Fraser entrega um desempenho assustador, mas, é preciso ressaltar que não é um aspecto descolado dos demais. 

É um erro, neste e em qualquer outro filme, separar aspectos técnicos da narrativa. Aspectos técnicos servem à narrativa, por isso não há possibilidade de avaliá-los sem considerar o básico: a forma com que eles se relacionam com os demais elementos da linguagem cinematográfica. Dito isso, é preciso ressaltar o quanto a direção de arte, a montagem, a edição de som, e fotografia com toda sua textura, ajudam em conjunto a compor um ambiente opressivo, sempre à meia luz, o que ajuda a reforçar a ideia de reclusão do personagem. 


A falta de luz nos ambientes pode ser interpretada como uma metáfora para a ausência de Deus, e a grande questão posta é a seguinte: ou Ele não existe, ou abandonou o personagem principal (percebam que esta é apenas mais uma das relações paternas, que envolvem abandono, abordadas pelo filme). 

Se o escuro representa a ausência de Deus, a luz, obviamente irá representar sua presença. A casa está tomada pelas sombras, mas lá fora há luz (fisicamente falando e metaforicamente também, basta que lembremos do pássaro que vem à janela para comer). Outro ponto que reforça tal interpretação é o de que em pelo menos três momentos da narrativa, personagens são impedidos de sair da casa pela chuva que cai lá fora. Estaria Deus dando uma chance de reconciliação para os personagens? Uma passagem que envolve dois deles aponta para uma resposta para esta pergunta.

Referências claras à obra “Moby-Dick” de Herman Melville estão espalhadas por todo o filme, a começar pelo nome. Na história contada pelo livro o caçador passa a vida inteira perseguindo a baleia, quando ele finalmente a alcança, todo o esforço da busca perde o sentido. A baleia não era o importante, era apenas uma compulsão. A compulsão afasta do que é real de fato. 



Percebo ainda outra referência, esta não tão clara, que é à obra “A Metamorfose” de Franz Kafka, que tem como tema, adivinhem… a culpa. Tal como Gregor Sansa do livro de Kafka, Charlie o personagem de “A Baleia” se enxerga como uma figura monstruosa capaz de causar repulsa em quem quer que seja. A aparência é, em ambos os casos, uma metáfora para a culpa que corrói internamente. 

E Deus diante da culpa? Se agradaria do autoflagelo de quem se reconhece como pecador. Esta é outra questão que vem à toda em alguns momentos. No fim das contas, o mal maior talvez seja a hipocrisia, o que faz com que cada um tenha receio de se expor como realmente é, e a “salvação” talvez esteja na aceitação do real, em outras palavras, em se mostrar como se é, ou em ser autêntico.