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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O Dorminhoco

O Dorminhoco (Sleeper) - 1973. Escrito e dirigido por Woody Allen. Baseado na obra de David Reuben. Direção de Fotografia de David M. Walsh. Música Original de Woody Allen. Produzido por Jack Grossberg. Rollins-joffe Productions. / USA.

 

Lembro de já ter explicado aqui no Sublime Irrealidade, que após comprar o box com 20 dos filmes mais importantes da carreira de Woody Allen, eu decidi começar a assisti-los pelo começo, seguindo a ordem cronológica de lançamento, o que de fato seria o mais natural. Demorou dois filmes para que eu me desanimasse da mesopotâmica missão de vê-los (revê-los, na maioria dos casos) e resenhar cada um dos 20. Explico: a primeira fase da carreira de Allen, onde predomina um misto de comédia maluca e pastelão, definitivamente não é a que me mais me agrada em sua filmografia. Tenho que reconhecer, que Bananas (1971) e Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo Mas Tinha Medo de Perguntar (1972), ambos já resenhados aqui, são bons filmes e que podem proporcionar um ótimo entretenimento, mas acredito que eles ficam bem aquém de outros trabalhos mais “maduros” do cineasta.

O Dorminhoco (1973) funciona ao meu ver como uma ponte entre fases distintas da carreira de Allen. No filme estão presentes as gags e o humor físico caraterísticos dos primeiros longas, mas o que se sobressai nele e a sofisticação e a intelectualização, que se tornariam ainda maiores nos próximos trabalhos do diretor. No filme Woody aponta sua metralhadora de críticas para todos os lados, satirizando e desconstruindo as convenções impostas pela mídia, pela religião, pelos movimentos culturais e pela política. Em uma determinada cena uma personagem, que pode ser associada à pequena burguesia, questiona: “O mundo está cheio de coisas maravilhosas. Por que as pessoas enlouquecem e começam a odiar tudo? Por que existe uma resistência? Temos o orb [um droga que satiriza os efeitos do LSD], a teletela [televisão futurista], o orgasmatron [simulador de sexo]... o que mais eles querem?” Outro personagem retruca: “Somos artistas, reagimos apenas à beleza...

 

A trama de O Dorminhoco lembra bastante a de Bananas, deslocando-se apenas no espaço e no tempo. No filme, o personagem interpretado pelo próprio Allen, remonta novamente o seu tipo mais clássico: o judeu desajustado e paranoico. Miles Monroe, o personagem, é um homem de 1973, ele é sócio de um restaurante natural em Nova Iorque e nas horas vagas toca clarinete. Depois de ser submetido a um rotineiro exame de úlcera, no qual houve complicações, Miles foi congelado, sendo “acordado” 200 anos depois, no ano 2173. Ele chega completamente desorientado ao futuro e demora a reconhecer que o mundo não é mais o mesmo em que vivia. Os Estados Unidos fora destruído em uma guerra nuclear e a nova civilização era governada por um regime ditatorial que oprimia e perseguia seus opositores. Miles é visto então como um trunfo dos rebeldes que planejam um golpe de estado, pois ele é o único cuja a identidade não foi catalogada pelo sistema, podendo assim se infiltrar com mais facilidade no centro do poder para descobrir um segredo e articular um contra-ataque.

 

Toda a sociedade futurística idealizada por Woody Allen é uma sátira dos costumes e do contexto cultural e político dos anos 70. O partido no poder e os rebeldes, por exemplo, são facilmente associáveis respectivamente ao modelo capitalista e ao socialista, que se embatiam na bipolaridade da guerra fria. Luna (Diane Keaton), a poeta burguesa que Miles conhece em suas desventuras, personifica a hipocrisia de movimentos culturais elitistas, que apesar de moldados e manipulados pelo poder, se consideravam a vanguarda intelectual da sociedade. Como de praxe, em se tratando de Allen, o roteiro é um dos pontos mais fortes do filme, com destaque para as tiradas geniais de Miles e dos outros personagens secundários. Uma discussão entre Luna e Miles chega a lembrar aquelas, protagonizadas pelos mesmo atores, que se tornariam clássicas quatro anos mais tarde, em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977). Acredito que O Dorminhoco talvez seja o melhor filme da fase cômica de Woody, indispensável para quem gosta de saber como nascem os gênios... Recomendo!


Assista ao trailer de O Dorminhoco no You Tube, clique AQUI !


Confiram também, aqui no Sublime Irrealidade, outras resenhas de filmes de Woody Allen:

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terça-feira, 30 de agosto de 2011

Damages

Originalidade e ousadia que correm o risco de acabar
por falta de audiência!



Uma garota sai de um prédio como se estivesse fugindo da cena de um crime, ao ganhar a rua ela corre desesperadamente e aparentemente sem rumo, ela parece esconder algo sob o blazer que está usando, a tentativa de disfarçar a situação no entanto é inútil, ela está em pânico e suas roupas estão ensanguentadas. Ela parece fugir de algo ou estar buscando alguém que a possa ajudar. Há um corte e a próxima cena a mostra já detida em uma delegacia de polícia. O estado de choque, em que se encontra, a impede de dizer ou explicar qualquer coisa. 

A história volta seis meses no tempo, e assim ficamos conhecendo melhor Ellen Parsons (Rose Byrne), a moça da primeira sequência, ela é uma jovem idealista que acabou de concluir com mérito a faculdade de direito e está à procura de uma oportunidade de emprego em algum dos renomados escritório de advocacia de Nova Iorque. Ela recusa uma grande oportunidade apenas pela chance de ter uma entrevista na firma Hewes & Associates. Trabalhar sob a batuta da conceituada advogada Patty Hewes (Glenn Close) parece ser ser o sonho de quase todos os advogados da cidade e Ellen tem esta oportunidade em suas mãos. O mistério acerca da trama começa quando o advogado, do qual Ellen recusou a proposta de emprego, lhe alerta sobre as consequências de trabalhar com Patty.

 

A Hewes & Associates está conduzindo um caso que tomara grandes proporções, o milionário Arthur Frobisher (Ted Danson) é acusado de ter dado um golpe em seus investidores e em seus funcionários, estes tinham seus fundos de pensão aplicados em papéis da empresa na qual trabalhavam e perderam tudo quando estes papéis se desvalorizaram. Há a suspeita de que Arthur teria planejado o colapso que seus investimentos sofreram, pois ele mesmo dias antes da queda sacara um grande aporte do fundo. O caso Frobisher já havia tramitado pela justiça federal e Arthur tinha saído ileso das acusações de lesão ao sistema financeiro americano. Mesmo não tenho nenhuma prova concreta, Patty Hewes abraça a causa dos milhares de funcionários e afirma que não irá descansar enquanto não colocar Arthur diante do juri. 

Vou parar por aqui, porquê ao revelar qualquer outra coisa, eu estaria acabando com o prazer de assistir a série. Damages proporciona um verdadeiro mergulho no psicológico dos personagens ao analisar a competitividade no mercado de trabalho, a dificuldade de estabelecer prioridades, a irreversibilidade de decisões e a dificuldade de depositar confiança no próximo em um contexto onde não se sabe aonde está pisando.

 

Damages tem sua trama conduzida por um emaranhado de situações que vão se interligando pouco a pouco no tempo e no espaço. A série tem um dos melhores roteiros já produzidos para a televisão, as reviravoltas que a trama sofre até o final desta primeira temporada é de deixar qualquer um com o queixo caído e diante dela a grande maioria dos seriados policiais e investigativos parecem simplórios episódios do Scooby Doo. O excelente roteiro de Damages é reforçado pela ótima montagem, pela trilha sonora e pelas atuações brilhantes. Nenhum dos atores deixam a desejar, nem mesmo os coadjuvantes, que conseguem se impor e se destacarem, mesmo tendo dois verdadeiros monstros em cena. Glenn Close e Zeljko Ivanek, que interpreta Ray Fiske, o advogado de Arthur Frobisher, parecem duas entidades, é assustadora a forma com que eles entram e seus respectivos personagens e vivenciam cada uma das situações e sentimentos que eles estão experimentando. As sequências em que eles contracenam são de arrepiar, sem nenhum exagero.

 

E não foram só arrepios que a série me provocou, há muito tempo eu não me sentia tão incomodado e ansioso diante de um programa de televisão e isso simplesmente não tem como explicar ou descrever. Acredito que manter esta tensão dramática em 13 episódios (por enquanto só assisti a primeira temporada) seja muito mais difícil que sustentar a mesmo suspense em um filme, pois pela duração, a série corre muito mais o risco de se perder no decorrer dos capítulos ou deixar no roteiro vácuos e situações inexplicadas e isso definitivamente não é o que acontece com Damages. Mas como na televisão o que é realmente bom é pouco valorizado, a série passou por maus momentos nos últimos anos, não em seu conteúdo, mas em sua produção. Apesar de ser um sucesso estrondoso de crítica, a série não convenceu o grande público, aquele que não se dispõe a pensar diante da televisão e isso foi um banho de água fria em seus financiadores.

 

Damages estreou nos Estados Unidos em 24 de Julho de 2007, sendo exibida pelo canal FX subsidiário da FOX, porém após o final da terceira temporada, o canal decidiu cancelar a série pela baixa audiência. Em julho de 2010, depois de uma sequência de negociações entre emissoras e produtoras, a DirecTV anunciou que financiaria mais duas temporadas da série, cada uma destas com dez episódios. Com mais esta chance, Damages estreou este ano no canal The 101 Network, que detém agora a exclusividade na exibição dos episódios nos Estados Unidos. Torço para que a série não perca o padrão de qualidade que a crítica especializada e o público mais exigente observou em suas primeiras temporadas e que dure apenas enquanto deva durar, pois às vezes é melhor ser finalizada antes que se transforme em uma cópia de si mesma, como frequentemente acontece.

 

Em sua primeira temporada, Damages chega a ser perturbadora, principalmente quando percebemos que temos um pouco de Ellen e de Patty e que suas suas atitudes são completamente humanas, apesar de condenáveis em diversos momentos. Ambas representam tipos que são encontrados em quase toadas as organizações, de um lado aquele que que está disposto a fazer de tudo e colocar tudo em risco pela carreira e de outro lado aquele cuja carreira virou sua vida e todo o resto é secundário por girar em torna dela, temática mais atual impossível! Ultra recomendado, mas apenas para quem tem bom gosto!


Em 2008 Damages ganhou o Globo de Ouro de Melhor Atriz em uma Série - Drama (Glenn Close), tendo sido indicada também nas categorias de Melhor Série - DramaMelhor Ator (Ted Danson) e Melhor Atriz (Rose Byrne) Coadjuvantes em Série, Minissérie ou Filme para Televisão. Em 2010 a série foi indicada ao mesmo prêmio nas categorias de Melhor Atriz em uma Série - Drama (Glenn Close), Melhor Ator (William Hurt) e Melhor Atriz (Rose Byrne) Coadjuvantes em Série, Minissérie ou Filme para Televisão.

Assistam ao trailer da série Damages no You Tube,
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domingo, 28 de agosto de 2011

Sinédoque, Nova York

Sinédoque, Nova York (Synecdoche, New York) - 2008. Escrito e dirigido por Charlie Kaufman. Direção de Fotografia de Frederick Elmes. Música Original de Jon Brion. Produzido por Anthony Bregman, Spike Jonze, Charlie Kaufman e Sidney Kimmel. Likely Story, Projective Testing Service, Russia e Sidney Kimmel Entertainment. / USA.

 

Final dos anos 50, um grupo de críticos de cinema franceses, que escreviam para a revista Cahiers du Cinéma, lançaram um manifesto que defendia um cinema mais autoral, onde a figura do diretor substituísse a do produtor como responsável pelas obras. Esta nova concepção revolucionava drasticamente toda a teoria acerca do cinema, elevando-o ao status de obra de arte, na qual estaria impressa a expressão dos sentimentos e da ideologia de seus diretores e não mais apenas a ganância por grandes bilheterias almejadas pelas grandes produtoras. Direta ou indiretamente esta concepção, que daria origem à Nouvelle Vague francesa, influenciaria também toda a nova geração de cineastas hollywoodianos que despontaria em meados dos anos 70, que seria composta por nomes como Coppola, Brian de Palma, Martin Scorsese e George Lucas. Ainda hoje existe muita polêmica acerca de quem deve ser considerado de fato o autor de um filme, o Oscar de Melhor Filme por exemplo é sempre entregue aos produtores, o que eu pessoalmente acho uma injustiça, não querendo com isso desmerecer ou negar a importância da produção.

Recentemente a noção de autoria foi mais uma vez colocada em cheque e o responsável não era um diretor ou um produtor, mas sim um roteirista. Fato curioso, uma vez que os escritores continuam sendo os profissionais mais subestimados da indústria cinematográfica e não é a toa que é a única categoria ligada ao meio que vira e mexe está fazendo greve e lutando para conquistar respeito e para garantir direitos essenciais. Charlie Kalfman é o nome em questão, ele surpreendeu já em sua estréia, com o ótimo Quero ser John Malkovich (1999), dirigido por Spike Jonze, o filme recebeu 3 indicações ao Oscar, dentre elas a de Melhor Roteiro Original. Não era apenas sorte de principiante, seu estilo ousado e nada convencional se manteve nítido e pungente nos próximos filmes, cujo roteiro escreveu, dentre eles o genial Adaptação (2002) e o ótimo Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004). O estilo de Kaufman é marcado pelas figuras de linguagem que usa com maestria, pelo existencialismo melancólico e pelo absurdo Kafkiano que permeia suas tramas. Ele próprio reconhece o cunho autoral de suas obras, uma vez que sua própria personalidade é sempre determinante na concepção de cada um de seus personagens, principalmente os protagonistas, que podem ser vistos como uma espécie de alter ego dele.

 

Na ocasião da estréia de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças no Brasil, Charlie Kalfman deu uma entrevista ao jornalista Bruno Ghetti, colaborador da Folha de São Paulo, na qual falou de suas inspirações e influências e dos planos para o futuro. Ao ser questionado pelo repórter se pretendia se tornar um diretor, como sonhara na época da faculdade, Kaufman disse que sim, apesar de não ser uma “vontade tão urgente”. De fato, demoraram quatro anos até que ele estreasse na função, com o complexo Sinédoque, Nova Iorque (2008). A primeira impressão que se tem assistindo a este filme é a de que Kaufman foi longe demais em suas viagens, o que poderia ser motivado pela falta de um diretor, que pudesse lhe impor limites. Mas eis a questão: O que há de mal nisso? Eu pessoalmente acredito que o cinema, como qualquer outra arte, seja campo para experimentações e ousadia, que possam nos conduzir para além do mais do mesmo e do lugar comum, oferecidos pelas obras mais convencionais. Partindo deste pressuposto, tenho que reconhecer que, apesar de estar aquém de outros filmes que escreveu, Sinédoque, Nova Iorque é uma obra singular e de uma grandiosidade estética e filosófica que nos remete até mesmo à 8 ½ (1963) de Fellini.

 

Gramaticalmente, a sinédoque é uma figura de linguagem, que ocorre quando há em uma frase a substituição de um termo por outro, havendo ampliação ou redução do sentido usual da palavra numa relação quantitativa. Por exemplo: Quando dizemos que os filmes de Kalfman são complexos, estamos querendo dizer que os filmes cujo o roteiro foram escritos por Kaufman são complexos. O termo ganha na oração um significado maior do que aquele que teria usualmente. Para que possamos fazer uma correlação entre o título e a história contada no filme, precisamos fazer uma sinopse que nos possibilite entendê-lo, mas fazer uma sinopse ou resume de um filme de Kalfman é uma tarefa árdua, mas vamos à ela. Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman) é um diretor de teatro, que está passando por uma boa fase criativa, sua última peça foi um sucesso de crítica, no entanto em casa as coisas não andam nada bem. Sua esposa, Adele (Catherine Keener), é uma pintora de miniaturas que já não suporta mais a negligência e a excentricidade do marido, que é paranoico e sofre de hipocondria.

 

Adele decide dar um tempo na relação e leva a filha Olive (Sadie Goldstein) de quatro anos para uma viagem à Paris, sem previsão de volta. Caden parece nem se dar conta do que esta acontecendo em sua volta, por estar preocupado apenas com as doenças que tem, ou que imagina ter. Sua vida muda completamente depois que ele recebe um carta, informando sobre uma doação milionária que ele recebera para investir em sua nova peça. A liberdade criativa que lhe é conferida o leva a mergulhar em uma empreitada ousada e tão excêntrica quanto sua personalidade. Ele pretende encenar sua própria vida e a concepção desta mesma peça, complicado não é, mas é só o começo (e qualquer semelhança com Adaptação, não é mera coincidência). Caden, em sua megalomania, constrói uma Nova Iorque dentro de um estúdio e transfere para lá toda sua existência (eis aí a sinédoque, a substituição do todo pela parte). O mergulho na obra é tão profundo que em vários momentos ele se confunde com seu próprio personagem e a realidade se mistura com a peça encenada. Desde o início do filme percebemos que o tempo é apenas uma mera ilusão. Em uma das primeira sequências do filme, meses se passam sem corte aparente, a cena em questão mostra um rotineiro café da manhã, o decorrer do tempo é percebido pelos mais atentos apenas pela data do jornal nas mãos de Caden.

 

Outro aspecto que aproxima bastante Sinédoque, Nova Iorque de 8 ½ de Fellini são os relacionamentos entre o personagem principal e as mulheres que o cercam, relações estas que são totalmente destrutivas para ele, que não compreende seus próprios sentimentos. Simbolicamente, ele não consegue conter as lágrimas que escorrem pelo seu rosto e a melancolia que o toma durante as transas. Após a partida de Adele, Caden se envolve com Claire (Michelle Williams), a protagonista da peça que está montando e com Hazel (Samantha Morton), a bilheteira do teatro, que mora em uma casa que está constantemente em chamas, fato que também está carregado de simbolismo. Em dado momento do desenrolar da trama, há algo que muda completamente o entendimento sobre o filme e que pode ser o definidor da opinião que ao final formaremos sobre ele. Só que este fato, apesar de ser evidente, não está tão aparente, podendo passar despercebido para os mais desatentos.

 

Além do roteiro, que é excelente, o principal destaque do filme, que também não é novidade, é a atuação de Philip Seymour Hoffman, esse cara é sem dúvidas um dos melhores atores em atividade, sua atuação neste longa só perde na minha opinião, para sua performance em Dúvida (2009). Boogie Nights (1997), Magnolia (1999) e Capote (2005) também são prova de sua competência em transitar com habilidade e destreza pelos mais diferentes tipos. Ao final do filme fica apenas uma sensação um tanto ruim de que ficou faltando algo, que o transformasse em uma obra imperdível e indispensável. Em alguns momentos o desenrolar da trama, que já é lento, parece perder o ritmo, mas não sei dizer bem ao certo se isso foi intencional ou não, pois em se tratando de Kaufman, o sentimento de vazio que sobra no final da exibição tem tudo para ser proposital. Se sua carreira como diretor vai ser tão brilhante quanto a de roteirista, só o tempo pode dizer, a certeza que tenho até então é a de que toda a obra em que ele colocar as suas mãos, vale a pena ser ao menos conferida. Recomendo!


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sábado, 27 de agosto de 2011

Tudo Sobre Minha Mãe

Tudo Sobre Minha Mãe (Todo sobre mi madre) - 1999. Escrito e dirigido por Pedro Almodóvar. Direção de Fotografia de Affonso Beato. Música Original de Alberto Iglesias. Produzido por Agustín Almodóvar e Michel Ruben. El Deseo, Renn, France 2 e Via Digital. / Espanha | França.

 

Esta semana parecia que não ia ser tão diferente das outras, ela seguia o ritmo louco que a minha vida tem tomado nos últimos anos. Sem tempo para tantas reflexões e com uma já escassa esperança de que o dia seguinte pudesse ser melhor, eu apenas via o tempo passando, o trabalho, os conflitos, os sentimentos, sem tentar nenhum tipo de reação. Na última quarta-feira no entanto esta rotina foi quebrada, mas da pior maneira possível. Minha mãe passou mal e mais uma vez precisou ser internada, não era nada de tão grave, mas sustos como estes nos conduzem a uma espécia de reflexão forçada, acerca do quanto uma pessoa pode ser importante em nossas vidas. Ver minha mãe momentaneamente fragilizada sempre foi para mim um motivo de uma angústia sem tamanho, isto porque eu me acostumei à vê-la como uma mulher forte, que sempre se levantou com garra contra as situações mais adversas, sem nunca se deixar cair.

Não sei se por ironia do destino, mas dias antes eu tinha colocado o DVD de Tudo Sobre Minha Mãe (1999), de Almodóvar em cima da escrivaninha, pretendia reassisti-lo assim que tivesse tempo. Naquela noite achei que vê-lo mais uma vez depois de quase 4 anos pudesse ser uma uma forma de espantar as preocupações que me tomavam, minha mãe ainda estava no hospital e eu estava sozinho em casa, ainda imerso naquela reflexão forçada. Senti algo estranho logo na primeira cena do filme, que começa em um ambiente hospitalar. A personagem principal, Manuela (Cecilia Roth), é uma enfermeira que trabalha no setor cirúrgico de um grande hospital. A primeira sequência do longa mostra a correria para encontrar um receptor para órgãos de um homem, que acabara de falecer na mesa de operações. Manuela liga para o setor responsável por encontrar alguém compatível e a sequência termina. Na próxima cena as cores predominantemente frias do hospital são substituídas pelas “cores de Almodóvar”, estamos na casa de Manoela, ela conversa com o filho Esteban (Eloy Azorín), enquanto assistem o clássico A Malvada (1950), de Joseph L. Manklewicz.

 

Esteban questiona o porque do nome “a malvada” uma vez que “tudo sobre Eve”, a tradução do nome original tem muito a ver mais com a trama. Neste momento percebemos que o jovem escolhe o título para algo que estava escrevendo, sua mãe pergunta do que se trata mas ele não responde, só mais tarde ele explica que é um conto sobre ela, que ele está escrevendo para participar de um concurso. Ao falarem sobre atuações, Manoela conta que já foi atriz na juventude e mostra ao filho uma foto da época, o rapaz não deixa de perceber que a foto fora rasgada ao meio e que possivelmente seu pai, de quem sua mãe nunca lhe falou nada, era quem estava na outra parte da foto dilacerada. No dia seguinte Manoela o leva para ver sua apresentação em uma palestra no hospital, onde ela participa de uma dramatização sobre a doação de órgãos.

 

À noite eles vão juntos a uma encenação da peça Um Bonde Chamado Desejo do dramaturgo americano Tennessee Williams. A mulher é tocada profundamente pela peça e na saída o filho a convence a esperar, na chuva, pela saída de Huma Rojo (Marisa Paredes), uma das atrizes principais. Ao sair ela entra em um taxi, Esteban tenta bater na janela do veículo, mas ela não a abre, ele tenta correr atrás do taxi e acaba sendo atropelado por um outro carro. Em uma das cenas mais dolorosas do filme, Manoela recebe a notícia da morte de Esteban e, tal como na atuação que protagonizara naquele mesmo dia, ela se vê obrigada a decidir, naquele momento tão difícil, acerca da doação dos órgãos do filho. Desgostosa, ela decide voltar para Madrid e procurar pelo pai do rapaz, um ex-ator que também se chamava Esteban (Toni Cantó). Há dezoito anos atrás, Manoela tinha fugido de Madrid para Barcelona, ela estava grávida de Esteban na ocasião, ele, que tinha se transformado em um travesti, nunca soube da existência do filho.

 

Ao chegar em Madrid, Manoela se encontra com a velha amiga Agrado (Antonia San Juan, que carrega praticamente sozinha a veia cômica do filme), um travesti que está cansado da realidade violenta das ruas. Através de Agrado, Manoela conhece também a doce Irmã Rosa (Penelope Cruz), que presta serviços de assistência social às prostitutas e travestis. Em uma outra bela referência à A Malvada, Manoela vai novamente ao teatro assistir a Um Bonde Chamado Desejo em Madrid e acaba ganhado a confiança de Huma nos bastidores, ambas saem na noite pelo submundo da cidade em busca de Nina (Candela Peña), outra atriz da peça, que está viciada em heroína. Em alguns momentos o filme sugere que há uma relação homossexual entre Huma e Nina, mas no fim das contas o que aflora entre elas é uma relação quase maternal. Em meio a tantas almas femininas, Almodóvar constrói uma trama forte e corajosa, que toca em diversos temas que são recorrentes em sua filmografia, como perversão sexual, hipocrisia religiosa e relacionamentos improváveis.

 

A fotografia e a direção de arte, como de praxe nos filmes de Almodóvar, são impecáveis. O colorido forte e extravagante de seus filmes me remete à belíssima obra de Frida Kahlo, cujos quadros revelam um sofrimento doloroso e latente, mas que são retratados com uma lirismo quase onírico e com uma beleza estética inebriante, que de alguma forma torna o sofrimento suportável e a vida menos atormentadora. Fica evidente no filme, a homenagem e a reverência do cineasta à alma feminina, que ele parece conhecer tão bem, apenas não concordo que a sensibilidade, que transborda de seus filmes seja em si uma característica afeminada, pensar isso seria até machismo. De alguma forma isso me incomodava em suas obras, pois durante muito tempo, me pareceu que Almodóvar só conseguisse encontrar emoções verdadeiras e pungentes neste universo povoado por mulheres e gays. Fale com Ela (2002) provou que eu estava estava equivocado e quebrou esta má impressão que eu tinha, mas esta é uma outra história. Almodóvar é um gênio e uma citação de Tudo Sobre Minha Mãe serve muito bem para resumir sua obra: “Nós ficamos mais autênticos, quanto mais nos parecemos o que sonhamos que somos”.

 

Tudo Sobre Minha Mãe me ajudou a ver a situação pela qual minha mãe tem passado de outra forma, o filme me ajudou a compreender que sensibilidade nem sempre é sinônimo de fraqueza e que mesmo em um choro desesperado ou em lágrimas que rolam discretas existe uma força tremenda que simplesmente não consigo descrever, acho que se tivesse em outro estado de espírito eu jamais teria percebido isso... Quem se dispuser a assistir ao filme despido de qualquer tipo de preconceito irá se deparar com uma das mais belas representações da figura materna, aquela que acolhe e conforta sem fazer julgamentos e em cujo o coração sempre cabe mais um. O filme termina com uma das mais belas dedicatórias do cinema: “a todas as atrizes que viveram atrizes. A todas as mulheres que representam. Aos homens que representam e se tornaram mulheres. A todas as pessoas que querem ser mães. À minha mãe”... Ultra recomendado!


Tudo Sobre Minha Mãe ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Em Cannes Pedro Almodóvar ganhou os Prêmios de Melhor Diretor e o do Juri Ecumênico e o filme ainda foi indicado à Palma de Ouro, prêmio máximo do festival.

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Confiram também aqui no Sublime Irrealidade
a resenha crítica de outros filmes de Almodóvar: 

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domingo, 21 de agosto de 2011

Homens e Deuses

Homens e Deuses (Des Hommes et des Dieux) - 2010. Dirigido por Xavier Beauvois. Escrito por Xavier Beauvois e Etienne Comar. Direção de Fotografia de Caroline Champetier. Música Original de Lambert Wilson. Produzido por Pascal Caucheteux e Etienne Comar. Why Not Productions, Armada Films e France 3 Cinéma. / França.

 

Poucos dias após a suposta morte de Osama Bim Ladem, assisti na TV um debate acerca da cobertura midiática do acontecimento. Mesmo depois de quatro anos esquentando uma cadeira da faculdade de jornalismo eu ainda não tinha parado para fazer uma reflexão acerca das matérias veículadas que emvolvem tais acontecimentos de relevância global. Foi através dos depoimentos e argumentação dos participantes do programa que compreendi o quanto nossa produção e cobertura de jornalismo internacional ainda é primitiva. No entanto o mais assustador desta constatação é que isso não é uma exclusividade de nosso país, mesmo as grandes potências do mundo contemporâneo ainda são reféns do que divulgam as agências de notícias, sendo que estas geralmente estão comprometidas com interesses particulares de governos e outras organizações. 

Tal fenômeno também ocorre na cobertura nacional, porém não com a mesma intensidade de efeitos. Vejamos um exemplo: sempre que há uma greve de bancários, a grande mídia não noticia nada, por estar atrelada aos interesse das grandes instituições financeiras, que são suas anunciantes, no entanto nós espectadores temos uma noção do que está acontecendo, porque aquilo afeta diretamente nossa realidade, ou porque conhecemos alguém diretamente ligado aquela situação ou ainda por termos contato com veículos alternativos, que se pautam por outros compromisso e convicções, que não os mesmo dos veículos “dominantes”. Já no caso da cobertura internacional, a distância geográfica nos impede de ter contato com uma segunda visão que sirva de contraponto à apresentada pelas agências. A falta de conhecimento e a manipulação midiática fomenta em nós preconceitos, como o de que todo muçulmano seria de fato um potencial terrorista.


O belíssimo filme Homens e Deuses (2010) chegou a ser citado e indicado durante o debate, por ser uma obra que mostra um outro lado dos conflitos motivados por questões religiosas que acontecem no oriente médio. A história contada, baseada em fatos reais, se passa na Argélia em 1996, durante o período da guerra civil que começara no país em 1991, rebeldes adeptos da Jihad (guerra santa) se insurgiram contra o governo após o cancelamento de uma eleição que ameaçava tirar a Frente de Libertação Nacional (FLN) do poder. A Frente Islâmica de Salvação (FIS), o partido da oposição cresce e ganha apoio de parte da população, dando início a uma guerrilha contra os partidários do governo. Não demora e os rebeldes se voltam também contra civis pertencentes a outras minorias e imigrantes, no início do filme é mostrado um atentado, onde os insurgentes atacam e degolam operários croatas que trabalhavam no país.

 

Toda a trama é mostrada sob a visão de monges católicos cistercienses, que vivem no mosteiro de Atlas, eles percebem que é uma questão de tempo até que o mosteiro seja atacado por algum dos lados envolvidos no conflito armado, ainda assim eles se recusam a aceitar uma vigilância armada oferecida pelo exército. Em uma das sequências preliminares o monastério é invadido por rebeldes na noite de natal, mas ao contrário do que os monges temiam, os invasores não os atacam, eles estavam apenas em busca de ajuda para militantes feridos. É de uma força tremenda a cena em que o líder rebelde pede desculpas ao monge Christian (Lambert Wilson), por ter invadido o templo em um dia sagrado para os cristãos, mostrando assim respeito e tolerância para com a crença alheia. O desenrolar da trama é guiado pelo conflito que atormenta cada um dos monges, gerado pela dúvida entre voltarem para a França ou permanecerem no local e se sucumbirem como mártires. Através dos diálogos, muito bem escritos, nós espectadores vamos tendo contato com o mais profundo da alma daqueles homens que, apesar de viverem uma vida espiritualizada, são tão humanos e temerosos como qualquer um de nós.

 

O aspecto mais importante do filme, ao meu modo de ver, é a forma com que ele aborda a relação entre os monges e as pessoas que moram no vilarejo ao redor do mosteiro, o que resulta na desconstrução de muitos conceitos pré-concebidos. Os religiosos levam uma vida simples e praticam a filantropia, dando apoio e assistência àquelas pessoas tão castigadas por doenças, pela fome e pela carência das necessidades mais básicas. Em contraposição ao ódio e à intolerância praticados, tanto pelo governo, quanto pelos guerrilheiros, eles usam como arma o amor, o perdão e a compreensão das fraquezas alheias e isto realmente os aproximam da gente simples que os cercam. Ao contrário do que nos dizem nossos preconceitos, essas pessoas também demonstram valorizar estas mesmas virtudes e ansiar por uma vida de paz e tranquilidade. Porém a religiosidade que motiva sentimentos tão nobres é a mesma que justifica conflitos, guerras e tanto sofrimento. Em uma passagem um dos personagens lembra um pensamento de Pascal, o filósofo francês dizia que: ‎"Os homens nunca fazem o mal tão completamente e alegremente, tal como quando o fazem por convicção religiosa...". Uma triste constatação.

 

Os monges decidem finalmente que o mais certo a fazer seria permanecerem no mosteiro, conforme Christian pondera: “As flores não se movem para encontrar os raios do sol. Deus as torna férteis onde quer que as colocou”. Naquela que considero a cena mais bela do filme, os monges se reúnem para a que poderia ser a última ceia e a última comunhão entre eles. A sequência é acompanhada pela canção. "O Lago dos Cisnes" de Tchaikovsky, que roda em um toca fitas, a música toma todo o ambiente e tal como a personagem central do balé clássico, os religiosos decidem entregar as próprias vidas por amor. O que vemos na expressão facial de cada um deles não é angústia ou sofrimento, o que percebemos é um misto de serenidade e redenção, como se finalmente tivessem realmente encontrado a expressão do divino que têm dentro de si, contrariando poeticamente o epílogo do filme que reproduz um versículo do Salmo 82: "Vós sois deuses. Sois filhos do Altíssimo, todavia, como homens, morrereis e, como qualquer dos príncipes haveis de sucumbir". Homens e Deuses tem um ótimo roteiro, uma bela fotografia e grandes atuações, que compõem o todo que tornam esta obra imperdível não só pelas reflexões que nos proporciona. Recomendo!


Homens e Deuses ganhou o Grande Prêmio do Juri no Festival de Cannes.

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sábado, 20 de agosto de 2011

Fitzcarraldo

Fitzcarraldo - 1982. Escrito e Dirigido por Werner Herzog. Direção de Fotografia de Thomas Mauch. Música Original de Popol Vuh. Produzido por Werner Herzog, e Lucki Stipetic. Autoren, Project, Werber Herzog, Wildlife, ZDF. / Alemanha Ocidental | Peru.

 

Já cansamos de ouvir a máxima que diz que um indivíduo é determinado pelo tamanho de seus sonhos, talvez este aforismo seja de fato uma verdade... uma cruel verdade, vez que “não são bons tempos para os sonhadores”. Cultivamos sonhos até que, como diria Chico, a roda viva vem e os levam de nós, deixando apenas a frustração. Diante de sonhos despedaçados, ser perseverante nem sempre é fácil. Reconhecer as derrotas e recomeçar do zero com a mesma determinação é uma virtude que poucos aparentam ter. O imigrante irlandês Brian Sweeney Fitzgerald, o personagem central do clássico Fitzcarraldo (1982) de Werner Herzog, é um destes tipos raros, ele tem a vida pautada pelos seus sonhos excêntricos, aos quais quase ninguém mais dá crédito. A história do filme se desenvolve durante o ciclo da borracha no início do século passado e se passa no interior da floresta amazônica, em algum lugar do Peru. Era sem dúvidas o lugar e o contexto errado para se acreditar em sonhos e em parte é isto o que torna este filme tão fantástico. 

Fitzcarraldo, como os nativos do local chamam Brian, já tinha dedicado boa parte de sua vida ao sonho de construir uma ferrovia trans-andina, que ligasse o interior da floresta ao oceano pacífico. O insucesso desta empreitada no entanto não o desanimou, mesmo estando falido ela já alimentava um novo ideal: Construir uma suntuosa casa de ópera no meio da mata, na cidade de Iquitos, para apresentar para os nativos a beleza das óperas europeias. Ele é um grande fã do compositor italiano Enrico Caruso, este conforme seus planos deveria fazer a apresentação inaugural do teatro. Fitzcarraldo enxerga na musica o canal de comunicação perfeito entre povos de culturas tão distintas. Mo entanto nem a música escapa de ser uma forma de dominação, em uma das sequências mais belas do filme há o que pode ser entendido como um duelo entre batuques indígenas e a música clássica, que a princípio parecem se harmonizar, mas esta última acaba prevalecendo, alegorizando o domínio da cultura européia que estava prestes a ser estabelecido naquela região.

 

Fitzcarraldo tenta conseguir dinheiro para custear a obra através de um negócio tão absurdo quanto improvável, uma fábrica de gelo, que corrobora a ideia que todos têm dele, justificando a alcunha que recebeu de “Conquistador do Inútil”. Aconselhado por um homem de negócios local, Fitz abandona a produção de gelo e decide entrar no lucrativo negócio da borracha, ele consegue uma concessão do governo para trabalhar em uma área ainda não explorada. Com a ajuda de sua amante, Molly (Claudia Cardinale), que é dona de uma bordel, ele compra um barco a vapor e junta uma tripulação disposta a encarar a aventura de adentrar em territórios totalmente selvagens. No afã de encontrar uma nova rota para o transporte do material que for explorado, que não passe por quedas d'água e corredeiras, eles entram em território indígena e chegam ao absurdo de usar nativos para arrastar o gigantesco barco morro acima [numa das cenas mais clássicas do cinema]. Neste momento fica aparente a controvérsia que a figura do personagem principal representa, remetendo mais uma vez aos processos de colonização das Américas, ele explora a mão de obra e o recurso indígena, provocando mortes e muito sofrimento para alcançar aquilo que almeja.

 

Constantemente a crítica especializada tem feito um paralelo entre as personalidades do diretor Werner Herzog e do personagem central de seu filme. Herzog se recusou a usar qualquer tipo de efeito especial durante as filmagens, levou seu elenco para o interior da selva onde passaram meses, em uma época do ano de clima bem instável e “castigou” toda sua equipe com métodos de trabalho nada ortodoxos. Todos sofreram ainda com as fortes chuvas, com o lamaçal e com os mosquitos que tomavam conta do lugar. Reza a lenda ainda que membros da equipe foram mortos pelos nativos e que em dado momento, um indígena teria oferecido a Herzog para se livrar de Kinski, cuja personalidade difícil estaria atrapalhando o andamento das filmagens e prejudicando a convivência diária. Durante anos Kinski cultivou a má fama de ser um ator tenaz, egocêntrico e complicado, muitos críticos ainda se perguntam porque Herzog decidiu trabalhar com ele mais uma vez, mesmo depois de já tê-lo dirigido em filmes como Aguirre - A Cólera dos Deuses (1972) e Nosferatu – O Vampiro da Noite (1979), ocasião em que outros atritos entre eles aconteceram. A resposta talvez seja simples: pouquíssimos atores estariam dispostos a comprar a ideia do diretor e embarcar em um sonho tão excêntrico e improvável.

 

Comecei a assistir Fitzcarraldo imaginando que não iria gostar tanto de seu roteiro, uma vez que ele é lembrado mais pela ousadia de sua realização do que pela sua trama em si, eu estava completamente enganado, a história é fascinante e os personagens também. Este clássico do cinema europeu mostra do que realmente são feitos os sonhos e que o que mais vale não são as conquistas e sim o esforço despendido pra alcança-las. Se aquela seria mais uma aventura de Fitzcarraldo em busca do “inútil” não interessa, o que interessa na verdade é tudo aquilo que ele viveu e sentiu, o desfecho da trama mostra isso de forma extraordinária. Ao assistir ao filme, preste atenção na atuação magistral de Kinski e nas participações especiais de Milton Nascimento, como o porteiro de um teatro e de Grande Otelo, como o responsável por uma estação de trem abandonada. A fotografia do filme é belíssima e suas locações são realmente incríveis, um louvor à loucura e ousadia do cineasta e de sua equipe. Fitzcarraldo é uma verdadeira obra de arte, onde o contraste entre megalomania e sensibilidade não resulta em outra coisa a não ser poesia... Recomendo!



Fitzcarraldo ganhou o prêmio de Melhor Diretor em Cannes, tendo sido
indicado també
m à Palma de Ouro, prêmio máximo do festival.

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sábado, 13 de agosto de 2011

O Mágico de Oz

O Mágico de Oz (The Wizard of Oz) - 1939. Dirigido por Victor Fleming. Escrito por Noel Langley, Florence Ryerson e Edgar Allan Woolf, baseado na obra homônima de L. Frank Baum. Direção de Fotografia de Harold Rosson. Música Original de Harold Arlen, E. Y. Harburg, George Bassman, George E. Stoll. Produzido por Mervyn LeRoy e Arthur Fred. MGM / EUA.

 

O que pode fazer de filme um clássico atemporal, daqueles que ultrapassam diversas gerações mantendo um inexplicável encanto, que se multiplica e aumenta ainda mais a áurea que paira sobre sua história e seus personagens? Não existe uma resposta precisa para esta pergunta, mas no caso de O Mágico de Oz (1939), vários fatores podem ser apontados como os responsáveis por este efeito tão singular. Estaria mentindo se dissesse que esta fora uma produção despretensiosa, afinal até hoje esta é considerada um dos maiores investimentos do estúdio MGM. Mas acredito que seus realizadores jamais teriam imaginado que o filme atravessaria décadas sem perder sua incrível magia. O livro escrito por L. Frank Baum, que deu origem ao longa, já foi adaptado muitas outras vezes para cinema, mas nenhuma outra chegou nem perto deste, em termos de importância e beleza.

Quem viveu a infância nos anos 90, como eu, deve se lembrar do desenho também inspirado no livro de Baum, que o SBT exibia nas manhãs de segunda a sexta, mas mesmo para quem não viu a série animada a história não é de todo estranha, até mesmo os trapalhões chegaram a fazer um filme que a parodiava, Os Trapalhões e o Mágico de Oroz (1984). Para quem ainda não a conhece, vamos então a um breve resumo da trama: Dorothy Gale (Judy Garland) é uma menina que mora com os tios em uma fazenda no Estado de Kansas, seu único amigo é seu cãozinho, chamado Totó. Uma vizinha da fazenda que fora mordida pelo cachorro ameaça se livrar dele, Dorothy tenta então conseguir a ajuda dos tios e dos trabalhadores da fazenda, mas estes estão muito ocupados para ouvi-la. A menina decide fugir de casa para proteger o Totó e quando está indo embora ela encontra um homem estranho, um vidente que tem visões assustadoras sobre a sua vida, ele a conta que a sua tia Em (Clara Blandick) estava muito doente e preocupada com ela. Tomada pela culpa ela decide voltar para a casa imediatamente.

 

Um tornado se aproxima e quando Dorothy chega à sede da fazenda, já não há mais ninguém lá, todos haviam se recolhido em um abrido. Os fortes ventos tragam a casa com a menina e o cachorro dentro e eles vão parar em mundo totalmente diferente, chamado de Oz. Quando a casa "aterriza", uma bela mulher aparece e se apresenta como a Bruxa Boa do Norte (Billie Burke), ela conta a Dorothy, que ao cair a casa dela havia esmagado a malvada Bruxa do Leste, o que seria um grande motivo de comemoração. Ao saber do acontecido, uma bando de criaturinhas estranhas, chamadas de Munchkins, surgem e começam uma verdadeira festa, que é interrompida pela Malvada Bruxa do Oeste (Margaret Hamilton), que veio para vingar a morte da irmã e se apossar dos sapatinhos prateados que pertenciam a ela. A bruxa Boa do Norte intervém e dá os sapatinhos, que possuem grande poder, a Dorothy.

 

A menina que ainda se sentia meio perdida naquele lugar estranho só queria voltar para casa, a Bruxa Boa lhe aconselha então a seguir pela estrada de tijolos amarelos e procurar pelo Mágico de Oz no palácio de esmeraldas, pois apenas ele seria poderoso o suficiente para conseguir leva-la de volta para o Kansas. A garota começa a longa caminhada e no caminho encontra com os três personagens icônicos, o Espantalho (Ray Bolger), que queria um cérebro, o Homem de Lata (Jack Haley) que queria um coração e o Leão (Bert Lahr) que queria ter coragem. Ela os convence a se juntar a ela na busca pelo Mágico, que poderia lhes conceder cada um de seus desejos. O final da história também já deve ser conhecido por quase todos, portanto acho que não seria nenhum grande erro comentá-lo aqui, pecado seria deixar de fazê-lo e com uma boa análise. Depois de tudo que fizeram, Dorothy e seus novos amigos descobrem que o Mágico é na verdade um grande farsante. Mas antes que a frustração fosse sentida, o Mágico, que na verdade era um humano como Dorothy,  consegue convencer ao Espantalho, ao Homem de Lata e ao Leão, de que sempre tiveram dentro de si aquilo que estavam buscando.

 

O Mágico de Oz é um filme pipoca, porém cheio de significados (que herdou da obra da qual foi adaptado). O final pode ser interpretado de diversas formas, podendo ser entendido até como uma alegoria da ilusão de posse, proporcionada por certificados e títulos que podem induzir nos indivíduos a crença de que se tem algo, que nem ao menos é palpável, tal referência fica clara na sequência em o Mágico presenteia o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão com objetos que podem convencê-los de que já possuiam aquilo que foram buscar, o Espantalho por exemplo, só acredita que tem um cérebro de verdade depois de ganhar um diploma. O outro viés interpretativo diz respeito à ilusão quanto a espera de milagres e intervenções divinas que possam conceder aquilo que se almeja, afinal o desenrolar da trama se guia pela ideia humanista de que cada indivíduo tem dentro de si as respostas para suas próprias questões e tudo aquilo que poderia realmente necessitar.

 

O Mágico de Oz é emblemático também por ser um dos filmes que melhor representou um dos maiores avanços tecnológicos que o cinema experimentos em mais de cem anos, a chegada da cor. Todas as sequências da história que se passam no mundo real são fotografadas, não em preto-e-branco, mas em tons sépia, o espetáculo no entanto começa é quando Dorothy chega a Oz, a tela é então tomada por uma explosão exuberante de cores (ótimo trabalho da Technicolor), que estão presentes em todo o cenário e nos figurinos. Nem consigo imaginar o impacto destas cenas nas plateias da época. Outro destaque inquetionável do filme são as canções, curiosamente eu não tinha mencionado até agora que este se trata de um musical, um dos mais belos de toda a história do cinema. Todas as canções são lindas e tocantes, mas uma se sobressaiu, Over the Raimbow se tornaria um hino e foi por diversas vezes premiada como a melhor música composta para o cinema no século XX.

 

Arrisco concluir que o não envelhecimento de O Mágico de Oz se deva ao fato de que este filme traz consigo algo que pouquíssimos outros conseguiram: a magia da infância em estado bruto e latente. Houvi a poucos dias de uma amiga que este filme causava um certo incômodo pra ela quando ela era criança, o que eu atribuo à teoria de que talvez nem seja mesmo um filme para crianças e sim para adultos que estejam em busca da meninice perdida. A atriz Judy Garland, que já tinha na ocasião 16 anos, conseguiu expressar com seu olhar curioso e inocente as mais belas reminiscências que temos da infância, uma pena ela ter se sucumbido tão jovem às pressões inerentes à fama, ela morreu de overdose em 1969. O Mágico de Oz é no fim das contas um grande elogio à família e à amizade, o que torna sua mensagem ainda mais urgente nos dias de hoje. Recomendado!

♫ "Someday I'll wish upon a star, and wake up where the clouds
are far behind me, where troubles melt like lemon drop..." 

O Mágico de Oz ganhou o Oscar nas categorias de Melhor Música (Herbert Stothart) e Canção (Harold Arlen e E. Y. Harburg), tendo sido indicado também nas categorias de Melhor Filme, Fotografia, Direção de Arte, Efeitos Especias e Efeitos Sonoros. O filme ainda recebeu uma indicação à Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes.

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