O Dorminhoco (Sleeper) - 1973. Escrito e dirigido por Woody Allen. Baseado na obra de David Reuben. Direção de Fotografia de David M. Walsh. Música Original de Woody Allen. Produzido por Jack Grossberg. Rollins-joffe Productions. / USA.
Lembro de já ter explicado aqui no Sublime Irrealidade, que após comprar o box com 20 dos filmes mais importantes da carreira de Woody Allen, eu decidi começar a assisti-los pelo começo, seguindo a ordem cronológica de lançamento, o que de fato seria o mais natural. Demorou dois filmes para que eu me desanimasse da mesopotâmica missão de vê-los (revê-los, na maioria dos casos) e resenhar cada um dos 20. Explico: a primeira fase da carreira de Allen, onde predomina um misto de comédia maluca e pastelão, definitivamente não é a que me mais me agrada em sua filmografia. Tenho que reconhecer, que Bananas (1971) e Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo Mas Tinha Medo de Perguntar (1972), ambos já resenhados aqui, são bons filmes e que podem proporcionar um ótimo entretenimento, mas acredito que eles ficam bem aquém de outros trabalhos mais “maduros” do cineasta.
O Dorminhoco (1973) funciona ao meu ver como uma ponte entre fases distintas da carreira de Allen. No filme estão presentes as gags e o humor físico caraterísticos dos primeiros longas, mas o que se sobressai nele e a sofisticação e a intelectualização, que se tornariam ainda maiores nos próximos trabalhos do diretor. No filme Woody aponta sua metralhadora de críticas para todos os lados, satirizando e desconstruindo as convenções impostas pela mídia, pela religião, pelos movimentos culturais e pela política. Em uma determinada cena uma personagem, que pode ser associada à pequena burguesia, questiona: “O mundo está cheio de coisas maravilhosas. Por que as pessoas enlouquecem e começam a odiar tudo? Por que existe uma resistência? Temos o orb [um droga que satiriza os efeitos do LSD], a teletela [televisão futurista], o orgasmatron [simulador de sexo]... o que mais eles querem?” Outro personagem retruca: “Somos artistas, reagimos apenas à beleza...”
A trama de O Dorminhoco lembra bastante a de Bananas, deslocando-se apenas no espaço e no tempo. No filme, o personagem interpretado pelo próprio Allen, remonta novamente o seu tipo mais clássico: o judeu desajustado e paranoico. Miles Monroe, o personagem, é um homem de 1973, ele é sócio de um restaurante natural em Nova Iorque e nas horas vagas toca clarinete. Depois de ser submetido a um rotineiro exame de úlcera, no qual houve complicações, Miles foi congelado, sendo “acordado” 200 anos depois, no ano 2173. Ele chega completamente desorientado ao futuro e demora a reconhecer que o mundo não é mais o mesmo em que vivia. Os Estados Unidos fora destruído em uma guerra nuclear e a nova civilização era governada por um regime ditatorial que oprimia e perseguia seus opositores. Miles é visto então como um trunfo dos rebeldes que planejam um golpe de estado, pois ele é o único cuja a identidade não foi catalogada pelo sistema, podendo assim se infiltrar com mais facilidade no centro do poder para descobrir um segredo e articular um contra-ataque.
Toda a sociedade futurística idealizada por Woody Allen é uma sátira dos costumes e do contexto cultural e político dos anos 70. O partido no poder e os rebeldes, por exemplo, são facilmente associáveis respectivamente ao modelo capitalista e ao socialista, que se embatiam na bipolaridade da guerra fria. Luna (Diane Keaton), a poeta burguesa que Miles conhece em suas desventuras, personifica a hipocrisia de movimentos culturais elitistas, que apesar de moldados e manipulados pelo poder, se consideravam a vanguarda intelectual da sociedade. Como de praxe, em se tratando de Allen, o roteiro é um dos pontos mais fortes do filme, com destaque para as tiradas geniais de Miles e dos outros personagens secundários. Uma discussão entre Luna e Miles chega a lembrar aquelas, protagonizadas pelos mesmo atores, que se tornariam clássicas quatro anos mais tarde, em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977). Acredito que O Dorminhoco talvez seja o melhor filme da fase cômica de Woody, indispensável para quem gosta de saber como nascem os gênios... Recomendo!
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