Na medida em que a trama se desenrola, fatos novos surgem, indícios vão aparecendo, e o roteiro, que é muito bem escrito, permite que ora acreditemos na inocência da personagem, ora duvidemos de que não tenha sido ela a responsável. De uma forma muito interessante o filme mostra que o fato original não pode ser recriado, as intenções dos envolvidos não podem ser acessadas e o que se tem é apenas um quebra-cabeças que pouco a pouco aparenta estar sendo montado a partir dos horizontes apresentados pela mulher, pelo filho e pelos indícios encontrados.
É a partir destes horizontes entrecortados que já no tribunal uma trama dentro da trama começa a ser desembolada. Passamos a nos questionar: o que nos faz crer que a personagem é inocente ou culpada são indícios concretos ou nós, expectadores sem visão privilegiada dos fatos, estamos tão sujeitos, assim como o tribunal, a aquilo que se apresenta como mera narrativa e que não necessariamente corresponde à verdade? É curioso perceber que os flashbacks presentes nesta parte do filme não servem para nos conduzir aos fatos originais, mas tão somente à uma reconstrução criada à partir da versão de algum dos personagens. E mesmo as versões apresentadas por peritos e especialista não são objetivas, são igualmente baseadas na interpretação, onde na maior parte das vezes os preconceitos dos intérpretes falam mais que as coisas analisadas em si.
Aqui já é possível ensaiar algumas reflexões sobre a diferença entre a verdade factual e a verdade processual. A verdade processual sempre resultará de atos de interpretação, é a partir da linguagem que uma recriação da situação original é possível, o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer nos lembra que “o ser que pode ser conhecido é linguagem”, o que quer dizer que acessamos as coisas sempre tendo a linguagem como condição, e no processo a verdade se forma como uma narrativa que resulta da apresentação de um horizonte por um dos lados, pela contraposição deste horizonte ao horizonte apresentado pelo outro lado da lide e pela ampliação destes horizontes pela produção/dilação probatória.
Há, no entanto, situações em que os horizontes apresentados, mesmo após contrapostos e ampliados, se mostram insuficientes para que a verdade insurja, é o que na linguagem jurídica é chamado de dúvida substancial. Uma situação deste tipo traz o questionamento proposto pelo filme: há justiça no ato de entregar a alguém, que decidirá conforma sua consciência em uma situação de incerteza, o poder de destruir a vida de outrem? Este é um dos dilemas fundamentais da justiça, é o problema com o qual a deusa Palas Atena se depara no último ato da peça As Eumênides, escrita na Grécia no ano de 458 a.C por Ésquilo. É o mesmo dilema que os jurados enfrentam no clássico Onze Homens e uma Sentença (1957), de Sidney Lumet.
Em Anatomia de uma Queda a justiça é representada por um dos personagens (e tem um elemento óbvio que comprova esta minha tese), é este personagem que faz questionamentos pertinentes em uma dada passagem da trama e é a ele que cabe, ainda que indiretamente, a mesma decisão que no clássico grego coube à deusa Atena.
Anatomia de uma Queda é um filme que merece ser visto e muito debatido, é um excelente material para uma aula de Teoria do Direito ou de Processo Penal, principalmente em um tempo em que estamos, como sociedade, tão entregues à sanha punitivista que nos faz confundir justiçamentos com justiça.