No - 2012. Escrito e dirigido por Pablo Larraín, baseado na peça de Antonio Skármeta. Direção de Fotografia de Sergio Armstrong. Música Original de Carlos Cabezas. Produzido por Pablo Larraín, Juan de Dios Larraín e Daniel Marc Dreifuss. Fabula, Participant Media, Funny Balloons e Canana Films / Chile | USA | França | México.
Em 1970 Salvador Allende foi eleito presidente do Chile, ele, que era um marxista convicto, deu início a um processo de nacionalização da economia do país, estatizando empresas e fechando o cerco contra o imperialismo norte-americano. Três anos depois ele foi vítima de um golpe de estado planejado e financiado pelos Estados Unidos. Allende foi morto em 11 de setembro de 1973 (eu pessoalmente não acredito na hipótese de suicídio) na ofensiva comandada por Augusto Pinochet, o chefe das Forças Armadas em seu governo. Pinochet assumiu o poder e deu início à uma sangrenta ditadura, que perseguiu, torturou e matou militantes comunistas, críticos e dissidentes de seu regime. 15 anos depois, em 1988, sob forte pressão internacional, Pinochet (cujo governo fora legitimado em 1980 através da promulgação de uma nova constituinte) consentiu a realização de um plebiscito popular, que questionaria a população acerca de sua permanência no poder por mais oito anos.
O filme No (2012), escrito e dirigido por Pablo Larraín, busca retratar em sua trama o trabalho da equipe de profissionais, liderada pelo publicitário René Saavedra (vivido por Gael García Bernal), que foi responsável pela campanha dos partidos de oposição, que lutavam contra a manutenção da ditadura militar. Em sua trama, o filme retrata de uma forma brilhante o surgimento de uma tendência que se firmaria nos próximos anos e se tornaria recorrente na propaganda política. Esta tendencia consistia no esvaziamento do discurso ideológico, e direcionamento do foco das mensagens para questões subjetivas e conceitos abstratos, que já eram explorados com maestria pela publicidade desde o final dos anos 50. O interessante é que no período histórico no qual o filme se passa este formato acabou dando certo e o roteiro, baseado na peça de Antonio Skármeta, mostra muito bem o porquê disso ter acontecido.
Mesmo não tendo tanto envolvimento com a política, René Saavedra chegou a ser exilado, isso tão somente por ser filho de um conhecido militante comunista. O tempo que passou no exílio acabou tirando dele o patriotismo e o sentimento de pertencimento, nota-se na trama que o passado do Chile não tem para ele o mesmo peso emocional que tem para os outros personagens... Apesar de jovem, ele acabou se tornando um respeitado publicitário após regressar ao país, seu bom desempenho chamou a atenção de José Tomás Urrutia (Luis Gnecco), que o convidou para dirigir a campanha pelo 'não'. Mesmo relutante, René aceitou o trabalho, em parte por acreditar no que a campanha propunha, mas principalmente por enxergar nela um grande desafio profissional. Seus métodos, no entanto, acabaram se chocando com o pensamento dos militantes, que não queriam que o ideal democrático fosse vendido como um bem de consumo.
Uma significativa parcela dos membros dos partidos de oposição temiam que a campanha, que tinha a alegria como principal conceito, pudesse representar um desserviço à memória histórica do país, por colocar panos quentes sobre as atrocidades cometidas durante o período ditatorial. Saavedra, porém, acreditava que qualquer abordagem negativista pudesse tirar do material que estavam produzindo aquele que era o seu conceito chave: a felicidade, que viria com a mudança na estrutura do país após sua libertação, que se tornara um pouco mais próxima com a remota possibilidade de vitória do 'não'. O embate entre estes dois pontos de vistas e as concessões de ambos os lados que compunham a esquipe acabaram ditando a tônica das propagandas, que eram exibidas na TV aberta, durante os quinze minutos diários, tempo reservado a cada uma das partes.
No filme, é interessante perceber que o próprio Pinochet não levava o plebiscito a sério, sua arrogância não lhe permitia enxergar a ameaça que ele representava para o seu governo, e isso, aliado à pressão internacional, explica o fato dele não ter tentado nenhum tipo de sabotagem ou repressão contra os representantes do lado oposto. O que o filme mostra são apenas tentativas de intimidação, que se mostram falhas frente à coragem e determinação demonstradas pelos partidários do 'não'. Acredito que se a campanha tivesse adotado um tom mais sério, com revelações e denúncias das atrocidades cometidas nos anos de chumbo, a postura de Pinochet teria sido outra. Com uma provável repressão do estado o resultado do plebiscito também poderia ter sido bem diferente... A forma com que o governo enxergava a angulação adotada nas esquetes e no material publicitário do 'não' fica evidente na passagem em que um ministro de Pinochet zomba da escolha do arco-íris como um símbolo dos partidos de oposição.
No mostra ainda a relação de Saavedra com sua ex-esposa, que também era uma militante de esquerda, ele possui a guarda do único filho que tiveram e se desdobra para conseguir cuidar do garoto, que frequentemente o acompanha nos sets de gravação. Este núcleo familiar, apesar de ser pouco relevante para a história em si, acaba sendo de extrema importância para que conheçamos quem de fato é o protagonista. Uma das abordagens analíticas possíveis a respeito de No (talvez a mais interessante delas) diz respeito ao deslocamento afetivo e ideológico experimentado pelo personagem. A vida de Saavedra é bem diferente da realidade que ele vende em suas criações, o ideal de felicidade presente em suas peças não é um espelho de sua própria vivência. Percebe-se na trama que ele não se encontra naquilo que produz, como se ele estivesse alienado de seu próprio trabalho e isso pode ser notado em uma das melhores sequencias do filme (que é também uma das mais emblemáticas), na qual ele finalmente se vê diante de uma manifestação real da alegria, até então abstrata, que fora associada à campanha.
É interessante ver em No o trabalho de filmagem das peças, com as discussões sobre aquilo que estava sendo produzido e depois a peça já pronta (em imagens reais da época) sendo exibidas na TV. Sergio Armstrong, o diretor de fotografia, faz verdadeiros milagres no filme, ele consegue extrair imagens belíssimas apesar dos recursos tão limitados. A opção por fotografar o filme com o mesmo aparato técnico com o qual eram produzidos os conteúdos para a TV na época em que ele se passa foi uma decisão muito bem sucedida, a estética resultante do processo de filmagem adotado faz com que imagens reais de arquivo e as do próprio longa se confundam e isso dá a ele uma maior verossimilhança e reforça o tom documental de sua trama. A trilha sonora, por sua vez, é engrandecida pela canções incluídas de foma diegética no filme, principalmente por aquelas presentes nas propagandas. Já a montagem confere ao filme um ritmo rápido, que faz com que a história flua com grande facilidade e leveza.
As atuações são ao meu ver um dos grandes destaques do filme, todo o elenco está muito bem e a composição de cada personagem dá a eles a veracidade e a credibilidade que a trama lhes exige. O Gael García Bernal está muito bem, o que não é nenhuma surpresa, considerando sua já vasta e multinacional trajetória. Alfredo Castro, Luis Gnecco, Néstor Cantillana, Antonia Zegers, Marcial Tagle, Pascal Montero e Jaime Vadell também entregam desempenhos elogiáveis. A direção de Pablo Larraín (que dirigiu outros dois filmes sobre a ditadura no Chile) é segura e eficiente e seu mérito está principalmente no fato de o filme não ter se tornado apenas mais um dentre tantos produzidos na América Latina sobre variações deste mesmo tema.
No é obviamente um filme político, mas é também sobre a postura do indivíduo frente à falência das ideologias em um mundo cada vez mais imediatista, onde tudo, até mesmo a alegria, se tornou nada mais que um mero emaranhado de imagens e conceitos reunidos para vender produtos...
No foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, e recebeu em Cannes o prêmio da Confederação Internacional de Cinemas de Arte na mostra paralela Quinzena dos Realizadores.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.