Amarcord - 1973. Dirigido por Federico Fellini Escrito por Federico Fellini e Tonino Guerra. Direção de Fotografia de Giuseppe Rotunno. Música Original de Nino Rota. Produzido por Franco Cristaldi. F.C. Produzioni e PECF / Itália | França.
8 ½ (1963), considerado por muitos críticos e cinéfilos a obra mais importante de Federico Fellini, retrata um período de inquietação e antítese pelo qual o cineasta passou, seus dotes autobiográficos são notáveis e seu personagem central é obviamente um alter ego do diretor. “8 ½” teria nascido dos conflitos que Fellini estava tendo consigo mesmo, com seu próprio passado e com o cinema como indústria. Se neste filme tais conflitos são a tônica da narrativa, em Amarcord (1793), o objeto desta resenha, eles já foram aparentemente amenizados, denotando assim a paz que o realizador já teria feito com suas memórias. O viés onírico presente no filme de 63 é mantido neste, porém, se no primeiro a realidade diegética nos remetia a pesadelos sombrios, neste, ela nos conduz é às lembranças da meninice, à simplicidade da vida de outrora e à infância perdida. Penso que estes dois filmes, obras-primas do cinema italiano, sejam complementares e, sendo desta forma, compreender o primeiro é fundamental para que possamos apreciar o segundo.
Amarcord funciona como uma carícia em nossas almas - diferente de 8 ½ que é denso e sombrio em diversas passagens - e este não é um fenômeno fácil de ser explicado, eu arriscaria atribuí-lo à identificação que nós expectadores temos em relação ao que vemos na tela, ainda que a realidade mostrada no filme seja em diversos pontos diferente da nossa, a forma com que ela é lembrada abre caminhos para as lembranças de nossa própria infância, que vêm à tona já no início do filme. Através de belíssimas imagens, compostas por uma mise-en-scène muito bem trabalhada, Amarcord nos aproxima do cotidiano, ora bucólico, ora agitado de Rimini, a cidade onde ele se passa. Apesar da quantidade enorme de personagens que sua trama acompanha, o foco narrativo permanece em uma família nuclear, composta pelos pais, dois filhos (dentre eles Titta, o alter ego do cineasta neste filme) e um tio. Em torno desta família e de seus relacionamentos se desenvolvem uma série de acontecimentos episódicos, que funcionam como um recorte poético e romantizado da população de uma região em uma determinada época.
Tal como uma criança, Fellini não faz juízo de valor daquilo que nos mostra, sua posição em relação a determinados temas permanece na maioria das vezes implícita. Mesmo ao retratar a ascensão do fascismo e a perseguição dos comunistas pelo regime de Mussolini ele se abstém de adotar uma postura abertamente política. Nas manifestações de estima da população em relação ao governo, que o filme retrata de forma tão bela, percebemos mais inocência do que cumplicidade, no entanto tal inocência não está no ato da população em si, mas no olhar que a observa. É esta perspectiva, que parte do olhar de menino do cineasta, que fez deste filme um clássico, não importa se ele não tem uma trama linear ou se seus personagens não vivem dramas dignos de uma epopeia o que importa é a vida que emana de cada fotograma, de cada rosto e da simplicidade de cada diálogo. Na visão onírica cunhada por Fellini coisas simples, como celebrar a chegada da primavera ou o casamento de uma habitante local, se tornam feitos dotados de uma grandiosidade e significação tamanha, que ninguém é capaz de alegar o contrário.
Em Amarcord não há vilões nem heróis e o mais perto de um clímax que ele nos apresenta é a passagem de um transatlântico pela costa da cidadezinha onde ele se passa; evento que mobiliza toda a população e a leva para o mar em barcos ou botes para contemplar a beleza e imponência da embarcação – passagem que é sem dúvidas uma das mais belas de toda a história do cinema. No filme, o decorrer do tempo tem um papel importantíssimo, Fellini faz questão de salientar que, assim como nos sonhos, a percepção temporal pode ser mais introspectiva do que imaginamos, sendo assim, o que importa não é quantos meses se passaram de um evento retratado a outro, mas de que forma a população e consequentemente sua memória afetiva foi afetada por esta passagem de tempo. Por isso o diretor faz questão de demarcar o que a chegada de cada estação representa para cada um dos personagens e para a população como um todo, seja através das festividades locais ou da mudança na rotina devido ao clima.
O desfile de figuras grotescas (como a jovem promíscua, o padre relapso, o tio enlouquecido, o músico cego, o homem da motocicleta, a mulher peituda da tabacaria, os professores da escola, os soldados e oficiais fascistas, a moça depressiva, o velho tarado e a mulher objeto de desejo dos adolescentes) constitui uma ebulição eufórica de sentimentos e sensações, uma verdadeira ode à vida e á valorização da gente simples e de seus costumes e tradições. A singeleza e paixão que conduzem as recordações de Felline sobre sua própria infância, que são a base do roteiro do filme, compõem o contraponto com “8 ½”, que comentei no primeiro parágrafo, elas evidenciam que naquele momento o cineasta tinha vencido algumas de suas antíteses e que a síntese de sua própria vida estava impressa nesta que é uma de suas obras mais autorais.
Amarcord ganhou o Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e recebeu indicações também nas categorias de Melhor Roteiro Original e Melhor Diretor, conquistas mais do que merecidas.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.
Confiram também, aqui no Sublime Irrealidade, a resenha de 8 ½ (1963), outro clássico dirigido pelo Federico Fellini.
Texto escrito no período em que atuei como colaborador
do blog E o Oscar foi Para..., publicado originalmente em 16/10/2012.