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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Amarcord

Amarcord - 1973. Dirigido por Federico Fellini  Escrito por Federico Fellini e Tonino Guerra. Direção de Fotografia de Giuseppe Rotunno. Música Original de Nino Rota. Produzido por Franco Cristaldi. F.C. Produzioni e PECF / Itália | França.


8 ½ (1963), considerado por muitos críticos e cinéfilos a obra mais importante de Federico Fellini, retrata um período de inquietação e antítese pelo qual o cineasta passou, seus dotes autobiográficos são notáveis e seu personagem central é obviamente um alter ego do diretor. “8 ½” teria nascido dos conflitos que Fellini estava tendo consigo mesmo, com seu próprio passado e com o cinema como indústria. Se neste filme tais conflitos são a tônica da narrativa, em Amarcord (1793), o objeto desta resenha, eles já foram aparentemente amenizados, denotando assim a paz que o realizador já teria feito com suas memórias. O viés onírico presente no filme de 63 é mantido neste, porém, se no primeiro a realidade diegética nos remetia a pesadelos sombrios, neste, ela nos conduz é às lembranças da meninice, à simplicidade da vida de outrora e à infância perdida. Penso que estes dois filmes, obras-primas do cinema italiano, sejam complementares e, sendo desta forma, compreender o primeiro é fundamental para que possamos apreciar o segundo.

Amarcord funciona como uma carícia em nossas almas - diferente de 8 ½ que é denso e sombrio em diversas passagens - e este não é um fenômeno fácil de ser explicado, eu arriscaria atribuí-lo à identificação que nós expectadores temos em relação ao que vemos na tela, ainda que a realidade mostrada no filme seja em diversos pontos diferente da nossa, a forma com que ela é lembrada abre caminhos para as lembranças de nossa própria infância, que vêm à tona já no início do filme. Através de belíssimas imagens, compostas por uma mise-en-scène muito bem trabalhada, Amarcord nos aproxima do cotidiano, ora bucólico, ora agitado de Rimini, a cidade onde ele se passa. Apesar da quantidade enorme de personagens que sua trama acompanha, o foco narrativo permanece em uma família nuclear, composta pelos pais, dois filhos (dentre eles Titta, o alter ego do cineasta neste filme) e um tio. Em torno desta família e de seus relacionamentos se desenvolvem uma série de acontecimentos episódicos, que funcionam como um recorte poético e romantizado da população de uma região em uma determinada época.


Tal como uma criança, Fellini não faz juízo de valor daquilo que nos mostra, sua posição em relação a determinados temas permanece na maioria das vezes implícita. Mesmo ao retratar a ascensão do fascismo e a perseguição dos comunistas pelo regime de Mussolini ele se abstém de adotar uma postura abertamente política. Nas manifestações de estima da população em relação ao governo, que o filme retrata de forma tão bela, percebemos mais inocência do que cumplicidade, no entanto tal inocência não está no ato da população em si, mas no olhar que a observa. É esta perspectiva, que parte do olhar de menino do cineasta, que fez deste filme um clássico, não importa se ele não tem uma trama linear ou se seus personagens não vivem dramas dignos de uma epopeia  o que importa é a vida que emana de cada fotograma, de cada rosto e da simplicidade de cada diálogo. Na visão onírica cunhada por Fellini coisas simples, como celebrar a chegada da primavera ou o casamento de uma habitante local, se tornam feitos dotados de uma grandiosidade e significação tamanha, que ninguém é capaz de alegar o contrário.


Em Amarcord não há vilões nem heróis e o mais perto de um clímax que ele nos apresenta é a passagem de um transatlântico pela costa da cidadezinha onde ele se passa; evento que mobiliza toda a população e a leva para o mar em barcos ou botes para contemplar a beleza e imponência da embarcação – passagem que é sem dúvidas uma das mais belas de toda a história do cinema. No filme, o decorrer do tempo tem um papel importantíssimo, Fellini faz questão de salientar que, assim como nos sonhos, a percepção temporal pode ser mais introspectiva do que imaginamos, sendo assim, o que importa não é quantos meses se passaram de um evento retratado a outro, mas de que forma a população e consequentemente sua memória afetiva foi afetada por esta passagem de tempo. Por isso o diretor faz questão de demarcar o que a chegada de cada estação representa para cada um dos personagens e para a população como um todo, seja através das festividades locais ou da mudança na rotina devido ao clima.


O desfile de figuras grotescas (como a jovem promíscua, o padre relapso, o tio enlouquecido, o músico cego, o homem da motocicleta, a mulher peituda da tabacaria, os professores da escola, os soldados e oficiais fascistas, a moça depressiva, o velho tarado e a mulher objeto de desejo dos adolescentes) constitui uma ebulição eufórica de sentimentos e sensações, uma verdadeira ode à vida e á valorização da gente simples e de seus costumes e tradições. A singeleza e paixão que conduzem as recordações de Felline sobre sua própria infância, que são a base do roteiro do filme, compõem o contraponto com “8 ½”, que comentei no primeiro parágrafo, elas evidenciam que naquele momento o cineasta tinha vencido algumas de suas antíteses e que a síntese de sua própria vida estava impressa nesta que é uma de suas obras mais autorais.


Amarcord ganhou o Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e recebeu indicações também nas categorias de Melhor Roteiro Original e Melhor Diretor, conquistas mais do que merecidas.

Assista ao trailer de Amarcord no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.


Confiram também, aqui no Sublime Irrealidade, a resenha de 8 ½ (1963), outro clássico dirigido pelo Federico Fellini.


Texto escrito no período em que atuei como colaborador 
do blog E o Oscar foi Para..., publicado originalmente em 16/10/2012.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Shampoo

Shampoo - 1975. Dirigido por Hal Ashby. Escrito por Warren Beatty e Robert Towne. Direção de Fotografia de László Kovács. Música Original de Paul Simon. Produzido por Warren Beatty. Persky-Bright / Vista / USA.

Warren Beatty tivera uma experiência frustrante em meados dos anos 60, ele resolvera colocar em prática o projeto de rodar uma comédia sobre um conquistador compulsivo e convidou ninguém menos que Woody Allen para ser o redator das piadas a serem usadas no filme, nesta época Woody ainda era apenas um comediante de stand-up que se apresentava em clubes de Nova York. O futuro cineasta aceitou participar do projeto com a condição de que ele próprio interpretasse um dos principais personagens. O resultado da parceria foi O que É que Há Gatinha (1965), a primeira incursão de Allen no cinema, o filme foi muito bem recebido, no entanto nem Woody nem Warren ficaram insatisfeitos com o resultado final. 

Beatty, que acabou relegado a um segundo plano durante a produção do filme, não desistiu do projeto, ele voltaria à premissa que sustentava o roteiro alguns anos mais tarde, quando o escritor Robert Towne, que colaborara com ele em Bonnie e Clyde (1967), disse que pretendia escrever algo baseado em uma comédia inglesa chamada The Country Wife. O texto era sobre um homem que se passava por impotente para se aproximar de mulheres casadas sem despertar suspeitas. Beatty sugeriu uma alteração, ao invés de impotente, o conquistador da história deveria ser um cabeleireiro, que se passava por gay para faturar suas clientes sem a desconfiança dos maridos delas. Esta ideia serviria de base para o roteiro de Shampoo (1975), filme dirigido por Hal Ashby e coescrito por Warren e Towne.


O personagem central de Shampoo é George Roundy (vivido pelo próprio Beatty), um renomado cabeleireiro que usa de seu charme e do preconceito que os homens à sua volta têm de sua profissão para se aproximar de suas belas clientes. Ele mantém diversos casos ao mesmo tempo e se desdobra para evitar conflitos entre suas amantes fazendo juras de amor e de fidelidade a cada uma delas. Ele, que pretende abrir seu próprio salão, passa a ver no marido de uma de suas clientes um financiador em potencial para o seu empreendimento, ele, que tinha tido um empréstimo negado por um banco, usa a amante para convencer o empresário a apostar em seu novo negócio. Dispensável dizer que a história toda acabará em confusão.


Como não podia deixar de ser, a trama de Shampoo reflete algumas das transformações pelas quais o mundo passara na década anterior à de sua produção e também as mudanças que estavam acontecendo no cerne da indústria hollywoodiana. Ficam evidentes na história a influência da libertação sexual, do surgimento da pílula anticoncepcional e de um novo posicionamento da mulher frente à sociedade. A trama é machista, disso não tenho dúvidas, mas ainda assim ela retrata a mulher de uma forma diferente daquela na qual ela era frequentemente retratada no cinema, no filme as mulheres traem por uma questão de escolha e o fato de elas o fazerem sem grande preocupação moral denota que a relação de dependência delas em relação aos homens  estava progressivamente sendo quebrada...


Apesar de soar um tanto datado o filme continua funcionando bem, graças ao carisma de Warren Beatty e do personagem que ele interpreta e ao bom desempenho do restante do elenco. A leveza do filme, reforçada pelo caráter quase inocente do personagem central, é outro fator de destaque, aliado ao roteiro, que chama a atenção pelos ótimos diálogos. Ao assisti-lo preste atenção na sequência que mostra uma perseguição, perto do final do filme, uma passagem muito bem realizada. Shampoo pode até não agradar aos fãs das comédias atuais, que são menos sofisticadas e mais escrachadas, mas ainda assim ele é um filme delicioso de se assistir. Recomendo! 

Shampoo foi indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Atriz Coadjuvante (Lee Grant), Ator Coadjuvante (Jack Warden), Roteiro Original e Direção de Arte. 

O filme Shampoo está disponível no You Tube
legendado e dividido em 8 partes, confiram AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

Filme assistido no mês de setembro, período em que atuei como colaborador do blog E O Oscar Foi Para...

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

2001 - Uma Odisseia no Espaço

2001 - Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey) - 1968. Dirigido e Produzido por Stanley Kubrick. Escrito por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, baseado no livro de Arthur C. Clarke.  Direção de Fotografia de Geoffrey Unsworth. Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) e Stanley Kubrick Productions / USA | UK.


Um fenômeno interessante acontece com obras que não entregam uma interpretação de sua trama já pronta para os espectadores, alguns poucos valorizam o convite à reflexão e ao diálogo, enquanto outros (a maioria) passam a atacá-lo por não tê-lo compreendido. Tenho abordado este assunto em outras resenhas e em todas as ocasiões apontei como culpados a superficialização e o efemeridade que têm marcado a produção artística contemporânea. Por estarmos acostumados com obras que não nos incitam a reflexão, tendemos a repudiar aquelas que o fazem, como se estas fossem pretensiosas e estivessem tentado adotar para si um cunho intelectual que não têm. Todavia, penso que o único fator capaz de mensurar o nível intelectual de uma produção é o diálogo que cada um estabelece com ela, de tal diálogo podem surgir impressões e interpretações que vão além daquelas pretendidas pelos realizadores da obra em questão e é nesta ampliação de significados que se encontra a grandiosidade da apreciação artística. 

Quando um espectador ataca um filme por ele este complexo demais (geralmente o apontando como lento, chato, pretensioso ou pseudo-intelectual), o que na verdade ele quer é esconder sua própria incapacidade de dialogar com aquilo que viu. É realmente frustrante quando não conseguimos acompanhar o raciocínio de uma trama, ou quando não somos capazes de compreender a reflexão proposta ela (isso já aconteceu comigo várias vezes), mas a decepção que nos acomete não justifica qualquer tipo de ataque deferido contra a obra ou contra os seus realizadores. Chegamos então aonde eu queria; ao ponto em que começo a falar de minha experiência pessoal com 2001 - Uma Odisseia no Espaço (1968), clássico dirigido por Stanley Kubrick. Mas, antes de começar minhas considerações sobre ele, preciso deixar claro que, mesmo depois de assisti-lo três vezes, eu ainda não consegui compreendê-lo por completo, reconheço que a interpretação que ensaiei ainda é um tanto frágil e até inconsistente em alguns pontos, eu no entanto não vejo nenhum problema em reconhecer isso...


A narrativa de 2001 começa na pré-história e em sua primeira sequência vemos um grupo de ancestrais do ser humano dispersos em uma região, eles parecem tentar se comunicar, mas a agitação que eles demonstram com seus gestos indicam que esta ainda é uma tarefa difícil. Na segunda sequência, um animal selvagem ataca um dos hominídeos, e nenhum dos outros o ajudam. Uma terceira passagem mostra um embate físico entre dois grupos de primatas, nesta cena já fica claro que eles estão começando ter o domínio do uso de armas rústicas como ossos e pedras. Em um quarto momento, os hominídeos estão diante de um objeto (que será recorrente na trama) que lhes é totalmente estranho, estupefatos eles o contemplam e suas expressões são de dúvida e medo, neste momento eles se vêm compelidos a questionarem suas próprias realidades pela primeira vez e surge daí o primeiro lampejo de racionalidade. Após mostrar um outro conflito entre primatas (o que nos induz a crer que eles não se tornaram civilizados da noite para o dia) o filme faz um dos maiores saltos no tempo da história do cinema.


Após o corte somos levado ao ano de 2001 (visto sob a ótica de meados dos anos 60, ocasião que o filme foi escrito e filmado), período em que as viagens estelares e a exploração dos pontos mais longínquos do universo já tinham se tornado uma realidade. A partir deste ato o filme começa um processo narrativo que mostra o oposto daquilo que fora mostrado nas primeiras sequencias, o que vemos então é um lento processo de desumanização, que culmina com a sucumbência do homem frente à máquina. Se num primeiro momento a racionalidade era instigada nos primatas pela ameaça às quais estavam expostos e pelo contato com o desconhecido, no ano de 2001 a situação já é bem diferente, o homem não tem tantos perigos aos quais temer e a sua curiosidade já não é mais despertada tão facilmente. Interessante perceber que aquilo que é capaz de deixar a nós expectadores boquiabertos é encarado com naturalidade pelos personagens, que parecem agir como máquinas, como se estivessem programados para atuarem de tal modo. 


Da situação exposta acima surge uma das contradições mais interessantes da trama, nela o personagem mais humano é um robô, o HAL 9000, ele é egocêntrico, ambicioso e vingativo. Sua disposição em desobedecer e quebrar as regras para conseguir aquilo que ambiciona lhe confere uma profundidade dramática que não pode ser observada em nenhum dos outros personagens. Esta contradição é interessante porque é ela quem estabelece o principal parâmetro de comparação entre as duas épocas retratadas no longa. Se na alvorada da humanidade o homem ainda é um ser em formação, incompleto, que precisa descobrir o mundo para descobrir a si mesmo, já em sua alvorada ele, ainda incompleto, parece ter se auto imposto um limite. Através do advento da inteligência artificial ele confere a outrem o direito de pensar e tomar as decisões por ele, decretando assim o seu próprio fim como indivíduo... Neste processo para reencontrar a si mesma a humanidade precisará redescobrir a sua gênese e só então voltar a se perguntar sobre a estranheza do mundo à sua volta. 


O roteiro escrito por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke é um dos aspectos mais primorosos do filme e sua genialidade está em abrir margem para as mais distintas interpretações e para uma quantidade de reflexões sem precedentes na história do cinema. Clarke, que já tinha publicado uma vasta bibliografia de ficção, trouxe, tanto para o filme, quanto para o livro, que foi escrito quase que simultaneamente, todo o seu conhecimento adquirido em anos de pesquisa sobre a corrida espacial e a origem do universo. Kubrick por sua vez trouxe a ousadia de filmar esta que ficaria conhecida como uma das produções mais complexas, impactantes e belas já filmadas, seu perfeccionismo pode ser percebido em cada aspecto do filme, da fotografia à direção de arte (que são sublimes), passando pela trilha sonora (que faz um excelente uso da música Also Sprach Zarathustra de Richard Strauss) e pelos efeitos visuais. 


Como eu disse, a minha interpretação de 2001 - Uma Odisseia no Espaço ainda é relativamente pobre, ainda têm vários elementos na trama que me parecem ganhar significados diferentes a cada vez que eu o revejo, fui tomado por reflexões distintas em cada vez que eu assisti e isto é simplesmente maravilhoso, pois ainda que me falte uma plena compreensão de sua trama, o diálogo que tive com ela já a torna para mim uma obra de grande valor artístico e intelectual. Na verdade a frustração que experimentei diante da estranheza de seu desfecho não diz tão somente sobre minha limitada capacidade de decodificá-lo, mas também sobre a aquilo que apontei como sendo a sua principal temática: O contato com aquilo que ainda nos é estranho impulsionando a busca por algo que nos caracterize como humanos e racionais... Nas três vezes que assisti o filme me senti tal como os primatas quando estes se viram diante do objeto desconhecido e assim como aconteceu com eles, o estranhamento me levou racionalização, o que me fez lembrar de que eu ainda era humano...


2001 - Uma Odisseia no Espaço talvez seja a mais importante obra de ficção científica desde Viagem à Lua (1902de Georges Méliès, direta ou indiretamente ele influenciou quase tudo que foi produzido pela sétima arte depois de seu lançamento e tal influência se deu principalmente pela quebra de paradigmas que ele representou no tocante à narrativa, pela sua grandiosidade artística e estética e pela excelência de seu aparato técnico; aspectos estes que possibilitaram que aquilo que fora antes imaginado pelo cineasta e pelo escritor ganhasse forma através de imagens detentoras de uma formidável exuberância. 2001 é uma obra de arte, um filme obrigatório para qualquer um se interesse por cinema ou que esteja disposto a ensaiar uma série de reflexões sobre a condição humana e aquilo que a caracteriza como tal. 


2001 - Uma Odisseia no Espaço ganhou o Oscar de Melhores Efeitos Visuais/Especiais, tendo recebido indicações também para os prêmios de Melhor Diretor, Roteiro e Direção de Arte. 

Assista ao trailer de 2001 - Uma Odisseia no Espaço no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

Confiram também, aqui no Sublime Irrealidade, as resenhas de Lolita (1962) também dirigido pelo Kubrick e de Stanley Kubrick – Imagens de Uma Vida (2001), documentário sobre a vida e a obra do cineasta. 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Na Estrada

Na Estrada (On the Road) - 2012. Dirigido por Walter Salles. Escrito por Jose Rivera, baseado no livro de Jack Kerouac. Direção de Fotografia de Eric Gautier. Música Original de Gustavo Santaolalla. Produzido por Charles Gillibert, Nathanaël Karmitz e Rebecca Yeldham. MK2 Productions e American Zoetrope /  França | USA | UK | Brasil.


Na Estrada (2012) é no mínimo um filme ousado, Walter Salles conseguiu levar adiante a ideia de adaptar um livro que já tinha sido considerado por diversas vezes uma obra inadaptável e o resultado final, por mais irregular que possa ser, merece ao menos ser conferido. Foi com esta certeza que comecei a assistir ao filme, que vem causando polêmica e dividindo opiniões desde a sua estreia na edição do Festival de Cannes deste ano. O longa possui uma belíssima fotografia, uma boa trilha sonora, nenhuma das atuações deixam a desejar e seu roteiro é fiel à obra que o deu origem, contudo, a impressão que eu tive ao assisti-lo foi a de que algo estava faltando, algo que fosse capaz de torná-lo tão impactante quanto os escritos de  Jack Kerouac. Demorei para perceber, mas ao seu final eu cheguei à conclusão de que o que lhe faltava era uma alma. Nele, onde abunda qualidade técnica falta sentimento.

Sempre defendi que toda adaptação deve buscar ser independente da obra que a originou, por isso não tenho o costume de cobrar fidelidade ou qualquer outra postura em relação ao original, no entanto para explicar a impressão que tive ao assistir o filme do Walter Salles, precisarei recorrer à obra de Kerouac. No livro, tal como no filme, o que predominam são as andanças dos personagens pelo território americano, o consumo de drogas lícitas e ilícitas e a prática amor livre, no entanto nele há algo a mais, há as motivações de cada um deles, há o contexto histórico e o vazio quase palpável de suas vidas, que eles transformam em desapego através de um processo que é também filosófico e reflexivo. No filme, as motivações, o contexto histórico e o vazio existencial praticamente desaparecem, dando lugar a algo que pode ser facilmente interpretado como mera rebelião e inconsequência juvenil. 


O grande problema é que o roteiro sem os elementos que citei acima perde aquilo que é a sua essência e se torna apenas mais uma história sobre jovens drogados vivendo de forma irresponsável. Walter Salles foi, como eu disse, ousado ao aceitar a árdua tarefa de dirigir a adaptação, no entanto ele cometeu o erro que outros cineastas evitaram cometer quando a recusaram. Ele aparentemente optou pelo caminho mais fácil, executou o roteiro medíocre escrito por Jose Rivera, filmou (muito bem filmado) o que era filmável, mas deixou de lado tudo o que não era tão simples de ser dito pela linguagem cinematográfica. Contudo, tenho que reconhecer que, mesmo sendo demasiadamente superficial, aquilo que vemos na tela não é de todo ruim, apesar de decepcionante. Diversos aspectos, em sua maioria técnicos, salvam o filme de ser um desastre completo e fazem dele uma obra digna de ser vista e apreciada. 


Em seu roteiro o longa adota os nomes fictícios atribuídos aos personagens na primeira edição do livro a ser publicada, o que é compreensível uma vez que esta é de longe a versão mais conhecida da obra, todavia, penso que o uso dos nomes reais poderia ter colaborado de forma positiva com a adaptação, que teve o Manuscrito Original como a base de seu roteiro, mas este é apenas um pequeno detalhe ao qual não pretendo me ater, vamos então à trama:

Sal Paradise (Sam Riley) é um aspirante a escritor que tenta superar a morte recente do pai, sua vida se transforma por completo depois que ele conhece Dean Moriarty (Garrett Hedlund), um delinquente juvenil que pregava o desapego e vivia uma vida desregrada. É Dean quem convence Sal a colocar o pé na estrada pela primeira vez. Na primeira viagem Paradise parte sozinho para se encontrar com o jovem poeta Carlo Marx (Tom Sturridge), com Moriarty e com a namorada deste, Marylou (Kristen Stewart), em Denver, no estado do Colorado.


Depois desta primeira viagem, a vida na estrada se torna uma compulsão para Sal e Dean, como se a liberdade proporcionada pela aventura tivesse se tornado para eles uma droga ainda mais forte e viciante que a benzedrina, estimulante derivado da anfetamina, que eles consumiam desenfreadamente. Os conflitos que permeiam a trama surge da amizade autodestrutiva de Sal e Dean e dos relacionamentos deste com Marylou e Camille (Kirsten Dunst), sua segunda esposa. Diversos outros personagens surgem e desaprecem durante a duração do filme, sem serem devidamente apresentados e sem terem tempo de mostrar a que vieram. O roteiro, numa evidente tentativa de ser fiel ao livro de Kerouac, acaba resultado em uma narrativa desconexa e episódica, onde tudo acontece muito rápido, sem deixar tempo para um melhor desenvolvimento de cada um dos conflitos.


A pressa da narrativa não permite que o filme trabalhe as motivações dos personagens centrais, há relativamente pouco tempo para os diálogos mais profundos e para os momentos de reflexão, que constituem uma parte essencial na obra literária. Uma das passagens de maior importância para a trama, que é aquela na qual ficamos conhecendo melhor o caráter e os fantasmas interiores de Dean Moriarty, foi simplesmente subtraída e isto afeta diretamente na percepção que se tem do personagem ao ver o filme, ele que era originalmente complexo, repulsivo e ao mesmo tempo cativante, é transformado em um babaca qualquer, incapaz de justificar a paixão com que o Sal Paradise, como narrador, comenta sobre ele e as experiências que viveram juntos. Ao prejudicar este que é o personagem mais importante na trama, o roteiro acaba comprometendo o filme como um todo e isso explica a relativa dificuldade que temos de nos identificarmos com o drama e com o desejo de liberdade experimentado pelos protagonistas. 


A direção de Walter Salles até que é eficiente, apesar de ele ter sua plena potencialidade de criação castrada ao se submeter ao roteiro, que se atém apenas aos fatos 'filmáveis'. Apesar da irregularidade do filme, resultante dos aspectos que comentei acima, o cineasta ainda merece o reconhecimento por ter tocado o projeto adiante e por ter conseguido reunir um time de atores de primeira, alguns deles para aparecem apenas em pontas, como é o caso de Steve Buscemi, Viggo Mortensen, Elisabeth Moss, Alice Braga e Terrence Howard. A verdade é que as atuações constituem o aspecto artístico de maior destaque no filme. Sam Riley e Kirsten Dunst estão muito bem, mas são Tom Sturridge e Kristen Stewart quem roubam a cena; ele expressa de forma excelente toda a insanidade e impulsividade de Dean, já ela nos passa a impressão de simplesmente desaparecer para dar lugar à sua personagem, o que fica evidente na formidável cena em que ela e Sturridge dançam um bebop frenético. 


Ao final de sua duração, Na Estrada deixa uma em nós espectadores uma leve sensação de vazio, não aquele vazio existencial semelhante ao experimentado pelos personagens no livro, mas sim uma sensação de ausência de conteúdo, de superficialidade, o que atribuo à ausência de sentimentos que predomina durante o desenvolvimento de sua trama. Quando os créditos finais surgem na tela é que temos a noção de quanta coisa nos foi omitida. Ele não nos revela, por exemplo, o caminho percorrido pelos jovens em suas andanças, nem quanto tempo durou cada uma de suas três viagens (os mais desatentos sequer perceberão que foram três, afinal fica fácil se perder diante de tantas idas e vindas, que parecem nunca sair nem chegar de lugar nenhum). No fim das contas, o que sobra do filme, além de sua qualidade técnica e das boas atuações, é apenas uma efêmera ebulição de sensações, que se perde poucos minutos depois do fim dos créditos... Mas, apesar dos pesares, ainda o recomendo! 


Assista ao trailer de Na Estrada no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.


Confiram também, aqui no Sublime Irrealidade, a resenha crítica do livro On the Road de Jack Kerouac, clique AQUI !

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Para Roma, com Amor

Para Roma, com Amor (To Rome with Love) - 2012. Escrito e Dirigido por Woody Allen. Direção de Fotografia de Darius Khondji. Produzido por Faruk Alatan, Letty Aronson, Giampaolo Letta e Stephen Tenenbaum.  Medusa Film, Gravier Productions e Perdido Productions / USA | Itália | Espanha.


Fui assistir Para Roma com Amor (2012) com uma expectativa baixíssima, as diversas críticas negativas que li sobre ele me deixaram com um pé atrás, mas para minha surpresa o filme não era um desastre tão grande quanto haviam anunciado. Por estar ciente de que seria um erro estabelecer comparações ou esperar que ele repetisse o bom resultado de outros trabalhos recentes do Woody Allen, eu não tentei encontrar nele a profundidade dramática de Match Point (2005), ou a sensualidade de Vicky Cristina Barcelona (2008) e justamente por isso ele funcionou muito bem como uma leve e deliciosa comédia de costumes. Não posso negar que ele peque pela falta de unidade entre suas quatro histórias, mas isto por si só não é capaz de tirar dele o que ele tem de melhor, que é a sátira social e o humor inteligente e sofisticado, que já é característico de seu realizador.

Levemente inspirada nas histórias do Decamerão (conjunto de cem novelas escritas por Giovanni Boccaccio no século XIV), a trama de Para Roma com Amor se desenvolve em quatro núcleos distintos e independentes, sendo que cada um deles adota uma angulação diferente, enfocando ora a crítica social, característica da comédia de costumes, ora uma abordagem menos pretensiosa, baseada na relação dos personagens com seus próprios princípios e certezas. Do conjunto de textos clássicos de Baccaccio, que  é tido como uns dos marcos iniciais do realismo na literatura, Allen resgatou a idiossincrasia da construção dos personagens e a capacidade que estes têm de representar conflitos e sentimentos que não nos são tão estranhos.


Na primeira história, Hayley (Alison Pill), uma jovem americana que está de férias em Roma, conhece Michelangelo (Flavio Parenti), um advogado italiano cheio de idealismos, eles se apaixonam e decidem se casar. Pouco tempo depois, Jerry (Woody Allen) e Phyllis (Judy Davis), os pais de Hayley, viajam à Itália para conhecer a família do noivo e é aí que começa a confusão. Jerry é um produtor cultural aposentado que não consegue digerir seu próprio fracasso, ele é reacionário e ainda acredita que não foi reconhecido por estar à frente de seu tempo. Ele é contra o casamento da filha por acreditar que Michelangelo é um radical de esquerda e os atritos entre ele e a família do noivo começam logo no primeiro encontro entre eles. As indiretas e comentários irônicos de Jerry duram até ele descobrir que Giancarlo (Fabio Armiliato), o pai do rapaz, tem um talento nato para a ópera.


Jerry enxerga no dom de Giancarlo uma oportunidade de reingressar ao mundo do show business e assim conquistar o reconhecimento que sempre almejou. A ideia de fazer de Giancarlo um astro contraria o idealismo de Michelangelo, que não quer ver o pai sendo usado como um mero produto. Como se já não bastasse tudo isso, há ainda um outro problema, com o qual nenhum deles contavam, Giancarlo só consegue cantar bem debaixo do chuveiro... Neste núcleo da trama o filme tece uma crítica à indústria cultural e à forma com que ela remonta obras clássicas com uma roupagem diferente, para desta forma apresentá-las como inéditas e inusitadas - De certo modo, o próprio filme é um exemplo disso, afinal o que vemos nele é só uma reformulação daquilo que já tinha sido trabalhado no Decamerão, mas não se enganem, Woody Allen não tenta esconder isso, tanto que chega a fazer piada sobre a situação em dado momento da trama.


Na segunda história conhecemos Leopoldo (Roberto Benigni), um trabalhador da classe média que vira celebridade, sem qualquer motivo, da noite para o dia. Ele se torna o alvo de paparazzis que o seguem durante todo o tempo em busca de declarações sobre trivialidades. Neste núcleo, assim como no primeiro, o que se sobressai é o viés crítico, de uma forma muito bem humorada, Woody Allen ataca a fabricação de celebridades instantâneas e a importância que a mídia dá para elas. Não por acaso, ele inclui no filme sequências que se passam em eventos relacionados ao cinema, cerimônias nas quais artistas, profissionais da indústria e as ditas celebridades instantâneas se misturam, como se fossem no fim das contas igualmente importantes e superiores à própria arte, à qual têm seus nomes relacionados - Notem o sarcasmo da cena em que a repórter comenta o vestido que a esposa de Leopoldo está usando ao passar pelo tapete vermelho. 


Na terceira história, John (Alec Baldwin), um renomado arquiteto, se encontra com Jack (Jesse Eisenberg), um jovem estudante de arquitetura que leva uma vida parecida com a que ele levava quando morou em Roma. Jack namora com Sally (Greta Gerwig), mas acaba se apaixonando pela melhor amiga dela, a bela  e provocante Monica (Ellen Page). Ele não sabe se vale ou não a pena abrir mão de um relacionamento sério, para viver algo que provavelmente não passará de uma aventura. John, com toda sua experiência de vida, começa a dar conselhos para o rapaz, todavia suas orientações são por vezes conflitantes, como se ele próprio não soubesse o que fazer diante da situação. 

Neste núcleo, Woody Allen trabalha o conflito que o indivíduo experimenta quando suas certezas e princípios são postos em cheque; nele o personagem do Alec Baldwin representa o embate que há entre o intelecto e o gozo hedonista (que seriam o id e o superego respectivamente, numa análise à luz da teoria freudiana). Nesta história o cineasta volta a flertar com o realismo fantástico, que fora a tônica do excelente Meia Noite em Paris (2011), seu filme anterior.


Na quarta história nos encontramos com os recém-casados Antonio (Alessandro Tiberi) e Milly (Alessandra Mastronardi), eles, que são do interior da Itália, viajam à Roma para resolverem assuntos pendentes, lá eles pretendem se encontrar com parentes de Antonio, que ainda não conhecem Milly. Uma sequência de desencontros e mal entendidos colocam ambos em uma grande confusão. Milly deixa o hotel em busca de um salão de beleza e acaba se perdendo pelas ruas da capital italiana e após perambular desorientada ela acaba indo parar no set de gravação de um filme, que usava uma praça pública como locação, lá ela conhece o ator Luca Salta (Antonio Albanese), um Dom Ruan (?) do cinema italiano, que a convida para um programa a dois. Enquanto isso, Antônio é confundido por Anna (Penélope Cruz), uma prostituta de luxo, com um de seus clientes e após um fragrante acidental, ele se vê obrigado a apresentá-la para seus familiares como sua esposa.


Antonio e Milly, por estarem longe um do olhar do outro, são tentados a se renderem à sedução de seus acompanhantes. Neste ponto, fica mais uma vez em destaque o conflito do indivíduo com seus próprios princípios e neste caso também com a moral vigente, o que seria a meu ver mais uma herança do Decamerão.

Partindo de uma análise mais ampla e ousada, eu creio que seria possível chegar á conclusão de que se existe de fato algum elemento narrativo que ligue as quatro histórias, além da cidade na qual elas acontecem, este seria a relação de cada um dos personagens com o olhar alheio ( em uma das histórias, com o próprio olhar, vindo de uma outra perspectiva). Mas, se esta era de fato a angulação que Woody Allen se propôs dar ao filme, ele não a deixou tão evidente e isto é o que torna as histórias aparentemente tão desconexas entre si. 


Contam a favor de Para Roma, com Amor a excelente química que há entre os atores, o ritmo ágil e o timing cômico da narrativa, a eficácia de seu aparato técnico e principalmente a beleza das locações, que são capturas através de um belíssima fotografia, que valoriza a arquitetura e a beleza das ruas de Roma,através de enquadramentos abertos e da predominância de um tom pastel, que evoca o classicismo que estará sempre associado à cidade. 

Para Roma, com Amor pode não ser uma obra prima, nem estar dentre os melhores filmes de Woody Allen, mas ele não é nem de longe um filme ruim. Ainda que ele tenha seus defeitos, o que se sobressai nele é a leveza com que cada uma das histórias são contadas e o divertimento inteligente que elas nos proporcionam. Evite uma elevação exacerbada das expectativas e simplesmente aproveito aquilo que ele é capaz de nos oferecer. Recomendo!


Assista ao trailer de Para Roma, com Amor no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

Confiram também, aqui no Sublime Irrealidade, outras resenhas de filmes de Woody Allen:


sábado, 3 de novembro de 2012

Lolita

Lolita - 1962. Dirigido por Stanley Kubrick. Escrito por Stanley Kubrick e Vladimir Nabokov,  baseado na obra literária de Nabokov.  Direção de Fotografia de Oswald Morris.  Música Original de Nelson Riddle. Produzido por James B. Harris. Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), A.A. Productions Ltd., Anya e Transworld Pictures / USA | UK.


O livro Lolita de Vladimir Nabokov foi considerado por editoras dos Estados Unidos e da Inglaterra como um atentado ao pudor e aos bons costumes, ele precisou ser lançado primeiro na França, como livro pornográfico, para depois ser reconhecido pela crítica como uma obra séria. De fato sua temática era demasiadamente pesada para a época, contudo, ele tinha mais a oferecer do que uma história erótica, da relação entre seus personagens emanava um humanismo pungente, que foi o que chamou a atenção do diretor Stanley Kubrick na época e fez com ele se dispusesse a recontar aqueles fatos pela ótica de sua câmera. O cineasta fez da adaptação uma obra de grande profundidade dramática, cada um dos personagens transcendem a condição de meros estereótipos, seus conflitos psicológicos os tornam complexos e suas atitudes isentas de qualquer maniqueísmo. Ao abordar a pedofilia, o longa se firma como um contundente tratado sobre a sexualidade e a degradação moral de um indivíduo.

Tal como aconteceu com o livro, o lançamento do longa foi marcado por polêmicas, sua estreia foi adiada por diversas vezes e quando aconteceu foi com uma versão remontada e sem algumas das sequências mais polêmicas. A edição, no entanto, não o livrou da perseguição. Quando já estava nos cinemas, ele foi condenado pela igreja católica, que emitiu avisos nas igrejas afirmando que era um pecado assisti lo. O propósito do roteiro, escrito por Nabokov com a colaboração de Kubrick (não creditado pela função), não era fazer juízo ou denunciar a atitude do personagem central, que se apaixona por uma adolescente na trama, mas sim, partir deste comportamento para propor uma reflexão sobre a subversão da moral e a fragilidade do comportamento humano diante dela. Tal propósito colocou o filme em sintonia com as transformações culturais que o mundo estava vivendo na época em que ele foi lançado, contudo, mesmo após a consolidação de algumas dessas mudanças, sua história continua sendo ousada e  polêmica. 


A narrativa de Lolita começa com uma passagem que mostra um reencontro entre dois personagens, esta sequência termina em um assassinato e então há uma volta no tempo para mostrar o início do desenrolar da trama. Tudo começa quando o  professor de inglês Humbert Humbert (James Mason) aluga um quarto na pensão de Charlotte Haze (Shelley Winters), conforme o filme deixa claro, ele não o faz pelos motivos expostos pela anfitriã, sua decisão é tomada no momento em que ele bate o olho na filha dela, a bela Lolita (Sue Lyon), que tem apenas quatorze anos. Charlotte vive sozinha com Lolita e a chegada do novo hospede é vista por ela como uma chance de conquistar um novo marido e por isso ela faz de tudo para tentar seduzir Humbert, mas ele só consegue pensar na menina. Passado o verão, ele não ver outra opção a não ser se render aos encantos da dona pensão, para assim poder continuar lá, ele então se casa com a mãe para continuar perto da filha. 
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Humbert faz de tudo para dissimular seu desejo e manter as aparências e o mais interessante é a postura de Lolita diante disso tudo, nos primeiros momentos do filme não fica tão claro se ela sabe ou não das intenções que ele tem e, por inocência ou por maldade, ela acaba alimentando o que ele sente. Uma das sequências mais emblemáticas do filme mostra o professor na cama com a nova esposa, ele finge dar atenção à ela, mas o seu estímulo vem é de uma fotografia de Lolita, posta na cabeceira. Nesta mesma sequência um comentário feito por Charlotte deixa claro para Humbert que ela é o maior obstáculo para a realização de suas fantasias sexuais, então ele, visivelmente atormentado, vira para o outro lado da cama e contempla uma arma, que está sobre este lado da cabeceira. O diálogo entre o casal continua normalmente, mas durante todo o tempo a arma permanece com relativo destaque na canto da tela. Esta passagem é genial, porque nela Kubrick trabalha de forma magistral o embate que o personagem trava consigo mesmo, sem precisar de extrair dele nenhuma declaração sobre este assunto.


Curiosamente, Lolita não foi injustiçado só pelos seus detratores na ocasião de seu lançamento, ainda hoje ele é tido por uma significante parcela da crítica como um dos 'filmes menores' de Kubrick, o que considero um absurdo (não concordo com este tipo de análise, que coloca obras de um mesmo autor, distintas entre si, em uma balança para ver qual tem o 'maior peso artístico'),  afinal, se trata de uma obra de incalculável valor estético e dramático, cuja complexidade é capaz de a sustentar independente do restante da filmografia de seu realizador. É possível perceber o peso da direção e do perfeccionismo de Kubrick em cada enquadramento, em cada movimento de câmera, na composição da  mise-en-scène e na sutileza com que o tema é abordado, sutileza esta que fica evidente já na cena que acompanha os créditos de abertura.


O veterano James Mason consegue expressar por meio de sua atuação a fragilidade emocional e cada um dos conflitos que seu personagem experimenta na trama, a jovem Sue Lyon, com toda sua sensualidade, também tem um desempenho digno de aplausos, o que comprova a eficácia do método de trabalho (questionado por muitos) que o cineasta desenvolvia com os atores de seus filmes. Todavia, no tocante às atuações os destaques são, sem dúvidas, Shelley Winters e Peter Sellers, este dá vida a um outro personagem do filme, por sinal um dos mais interessantes (preferi omitir comentários sobre ele para não revelar spoilers), Winters e Sellers roubam a atenção em cada uma das sequências em que aparecem. 

O impacto que Lolita é capaz de provocar permanece vivo, ainda que de forma não tão intensa quanto aquela testemunhada na época de seu lançamento, de fato é um filme que não envelheceu, um clássico absoluto de um dos cineastas mais importantes da história da sétima arte. Ultra recomendado! 


Lolita foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Roteiro Original.

Assistam ao trailer de Lolita no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.