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domingo, 30 de junho de 2024

Parte daquilo que somos… (entulhos)


Há mais de um ano eu tenho me divido entre duas cidades, Belo Horizonte e São Pedro dos Ferros, ao menos uma vez por semana estou na estrada, arrastando malas, tentando não perder o ônibus, perdido, como um objeto sem rumo, sendo arrastado de um ponto ao outro do mapa. Não sei quando estou indo, não sei quando estou voltando, a referência deveria o lar, não sei em qual dos dois extremos há um lar, já nem sei se existe um.


Lar é o lugar que nos cabe, não apenas o corpo, mas todo o amontoado daquilo que somos, seja este amontoado físico ou não. Há mais de um ano, meus CDs e discos estão em caixas, os DVDs apenas postos na estante sem qualquer tipo de organização, a vitrola acumula poeira e se deteriora, os livros estão divididos, tal como eu, entre duas cidades. Às vezes procuro um e não encontro, nem lá, nem aqui. Como disse, nem sei mais diferenciar o lá do aqui. Às vezes o livro reaparece fora do lugar, às vezes não reaparece.


Para olhares que não o meu, os livros, os discos, as revistas, os CDs são apenas entulhos, um estorvo em uma casa que ja carece da falta de espaço. Imagino a felicidade que sentiriam se um dia vissem todo este acúmulo ser posto na rua para ser recolhido pelo caminhão de lixo. Mas este entulho, este excesso de coisas, este estorvo, é parte daquilo que sou, é a parte que impede que eu caiba.


Na última mudança, alguma boa alma achou que seria interessante guardar alguns de meus DVDs (incluindo dois boxs dó Almodóvar, um do Fellini e um outro com a trilogia clássica do Indiana Jones) em uma sacola preta junto com uma toalha molhada, o saco foi jogado em uma pilha de entulho e eu só o encontrei há poucos dias, quase um ano depois. Ninguém é responsável, ninguém disse ao menos um “sinto muito, poderíamos ter sido mais cuidadosos”, o culpado sou eu que nem estava presente no dia da mudança. 


O recado é claro, aquilo que é importante pra nós não necessariamente o será para outras pessoas. Eu tenho tentado lidar com isso, mas enquanto tento, sinto atenuada a sensação de estar sem lugar; sem lugar físico e sem lugar afetivo. Terei achado um lugar quando eu finalmente encontrar um lugar que me caiba, a mim, meus livros, discos, revistas, que são parte daquilo que eu sou

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Monotonia e solidão em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo”


Transitando entre a ficção e o documentário, entre o melodrama e o experimento e entre o realismo e o subjetivismo, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009) é um filme único, seja pela forma, pela ousadia estética ou pela intensidade com que desconstrói e reconstrói um subgênero tão tradicional como o road movie.

José Lucas, o personagem principal é interpretado por Irandhir Santos, que não aparece em nenhuma cena do filme, sua presença se faz apenas pela narração em off, recurso usado em não poucas vezes de uma forma desnecessária no cinema nacional, mas aqui ele funciona muito bem, tanto como subversão do gênero documental como estrada para os interiores áridos do psicológico do personagem.

Geólogo, 35 anos, José Lucas viaja a trabalho, sua tarefa é fazer um relatório avaliativo/descritivo da região que será atravessada pelo canal de transposição do rio São Francisco, ele cruza os interiores do nordeste brasileiro em uma jornada que espera concluir em 30 dias. Neste caminho há vidas em abandono, desolação, muita solidão (geográfica e afetiva), sonhos e projetos desfeitos e uma monotonia dolorida, que está presente nas beiras de estradas e horizontes que parecem se repetir indefinidamente.




Desejo de fuga e de retorno se entrelaçam, mas na realidade nenhum dos dois se mostra viável, a vida é o que é, e parece que é isso que ela está dizendo para o personagem o tempo todo e é isso também que a narrativa está dizendo para nós espectadores. 

O filme oscila entre o documental e subjetivo e há ao menos duas transições bem nítidas, a primeira acontece quando um fato importante da narrativa é revelado, o que faz aprofundar o subjetivismo;  na segunda, é a vida real que insurge contra o subjetivismo,  e nesta passagem o predomínio da perspectiva do personagem central é rompida pela fala de uma jovem garota de programa, que parece não ignorar a presença da câmera que a constrange, nesta fala é como se a dureza do exterior trouxesse o próprio personagem de suas divagações de volta para o agora.




Felizmente o que se vê em Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo não é o tipo de experimentalismo que tem predominado em muitos festivais de cinema, que sobrepõe a forma à narrativa supondo que isso é exercício de linguagem. Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, que dirigiram e assinaram o roteiro, se distanciam do mais do mesmo ao atingir um nível de coerência entre os diversos elementos de linguagem, eles sabem que forma é narrativa e é isso que torna o filme grandioso.

Para olhares deformados pelo cinema comercial, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo pode parecer excessivamente lento e com poucos estímulos sensoriais, mas o que pode ser visto como defeito por alguns, são  na verdade alguns dos aspectos mais importantes. A lentidão da narrativa permite que se compreenda a solidão do personagem e sua forma de lidar com tanto com o passado, para onde ele almeja voltar, quanto com o futuro; e a falta de estímulos sensoriais ajuda reforçar a percepção da monotonia angustiante de seus dias.



É possível estabelecer ainda mais um paralelo entre realidade e subjetividade, que pode ser percebido na própria ideia da transposição que avançaria por sobre casas e por cidades inteiras, destruindo vivências e o acúmulo de significados de vidas inteiras. Aqui é como se o filme lembrasse, e isso é dito expressamente, que nada é eterno, tudo é transitório. Para a realidade que se apresenta como fator de transformações, o atropelo das subjetividades pouco importa e a vida de José Lucas é apenas mais uma evidência disso.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Anatomia de uma Queda - Reflexões sobre Direito, justiça e verdade a partir de um dos melhores filmes da temporada!



Anatomia de uma Queda, filme francês dirigido por Justine Triet e vencedor da Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, possui uma trama aparentemente simples: A escritora Sandra (Sandra Hüller) mora em um chalé na montanha com o marido, Samuel (Samuel Theis), que é um ex-professor e aspirante a escritor, e o filho, Vincent (Swann Arlaud), um menino com deficiência visual. Samuel é encontrado morto por Vincent, e aquilo que a princípio parecia ser apenas um acidente passa a ser visto pelas autoridades responsáveis pela investigação como um possível assassinato e Sandra passa a ser a principal suspeita. 

Na medida em que a trama se desenrola, fatos novos surgem, indícios vão aparecendo, e o roteiro, que é muito bem escrito, permite que ora acreditemos na inocência da personagem, ora duvidemos de que não tenha sido ela a responsável. De uma forma muito interessante o filme mostra que o fato original não pode ser recriado, as intenções dos envolvidos não podem ser acessadas e o que se tem é apenas um quebra-cabeças que pouco a pouco aparenta estar sendo montado a partir dos horizontes apresentados pela mulher, pelo filho e pelos indícios encontrados.

É a partir destes horizontes entrecortados que já no tribunal uma trama dentro da trama começa a ser desembolada. Passamos a nos questionar: o que nos faz crer que a personagem é inocente ou culpada são indícios concretos ou nós, expectadores sem visão privilegiada dos fatos, estamos tão sujeitos, assim como o tribunal, a aquilo que se apresenta como mera narrativa e que não necessariamente corresponde à verdade? É curioso perceber que os flashbacks presentes nesta parte do filme não servem para nos conduzir aos fatos originais, mas tão somente à uma reconstrução criada à partir da versão de algum dos personagens. E mesmo as versões apresentadas por peritos e especialista não são objetivas, são igualmente baseadas na interpretação, onde na maior parte das vezes os preconceitos dos intérpretes falam mais que as coisas analisadas em si.


Em um dado momento, um dos personagens afirma que no processo a verdade dos fatos não é o que importa, mas as impressões criadas e alimentadas; outra personagem, mais adiante, afirma que é necessário decidir mesmo diante de uma dúvida substancial e que o decidido tem validade, tem valor de verdade, como se a decisão consistisse em uma última análise em uma substituição da verdade factual pela verdade solipsista daquele em quem está investido o poder de julgar.

Aqui já é possível ensaiar algumas reflexões sobre a diferença entre a verdade factual e a verdade processual. A verdade processual sempre resultará de atos de interpretação, é a partir da linguagem que uma recriação da situação original é possível, o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer nos lembra que “o ser que pode ser conhecido é linguagem”, o que quer dizer que acessamos as coisas sempre tendo a linguagem como condição, e no processo a verdade se forma como uma narrativa que resulta da apresentação de um horizonte por um dos lados, pela contraposição deste horizonte ao horizonte apresentado pelo outro lado da lide e pela ampliação destes horizontes pela produção/dilação probatória.

Há, no entanto, situações em que os horizontes apresentados, mesmo após contrapostos e ampliados, se mostram insuficientes para que a verdade insurja, é o que na linguagem jurídica é chamado de dúvida substancial. Uma situação deste tipo traz o questionamento proposto pelo filme: há justiça no ato de entregar a alguém, que decidirá conforma sua consciência em uma situação de incerteza, o poder de destruir a vida de outrem? Este é um dos dilemas fundamentais da justiça, é o problema com o qual a deusa Palas Atena se depara no último ato da peça As Eumênides, escrita na Grécia no ano de 458 a.C por Ésquilo. É o mesmo dilema que os jurados enfrentam no clássico Onze Homens e uma Sentença (1957), de Sidney Lumet.


Em Anatomia de uma Queda a justiça é representada por um dos personagens (e tem um elemento óbvio que comprova esta minha tese), é este personagem que faz questionamentos pertinentes em uma dada passagem da trama e é a ele que cabe, ainda que indiretamente, a mesma decisão que no clássico grego coube à deusa Atena.

Anatomia de uma Queda é um filme que merece ser visto e muito debatido, é um excelente material para uma aula de Teoria do Direito ou de Processo Penal, principalmente em um tempo em que estamos, como sociedade, tão entregues à sanha punitivista que nos faz confundir justiçamentos com justiça. 


Anatomia de uma Queda, que estreou no Brasil na última quinta-feira, está indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Filme, Melhor Direção (Justine Triet), Melhor Atriz (Sandra Hüller), Melhor Roteiro Original e Melhor Edição. Deveria estar indicado também na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira, mas a França apostou em La Passion de Dodin Bouffant, que não recebeu nenhuma indicação. A cerimônia do Oscar acontecerá no dia 10 de março.


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Quem é o "monstro"? Kore-Eda nos dá espelhos em seu novo filme!


Se você tiver alguma oportunidade, assista ao filme Monster, obra mais recente do cineasta japonês Hirokazu Kore-Eda. É, eu creio que será melhor eu refazer este comando imperativo retirando a condicionante: Simplesmente, assista “Monster”! Não só porque é um dos melhores filmes do ano passado; não só porque o Kore-Eda é um diretor que precisa ser acompanhando de muito perto; não só porque o roteiro foi premiado na última edição do festival de Cannes… eu já falei que é o melhor filme de 2023?

É necessário falar muito sobre Monster, mas o problema é que não dá pra falar muito sobre ele sem estragar a experiência de quem ainda não assistiu. Tentarei fazê-lo, SEM SPOILERS, sob pena de que daqui pra frente o texto fique ainda mais confuso. Se me serve de justificativa, digo que a culpa pela má escrita é do próprio filme, que assisti aqui em BH no Cine Una Belas Artes, ainda estou inebriado, sob o efeito poderoso desta sessão. E, antes que me ataquem, o que se desenrola nestas linhas tortas talvez seja mais um relato de experiência que uma crítica.

Feitas as ressalvas, vamos lá! A trama é simples: percebendo o comportamento estranho do filho e que ele chegou machucado da escola, a mãe o questiona e ele acaba contando que foi agredido por um de seus professores. Ela vai ao colégio e tudo o que consegue é um educado, pomposo e ineficaz pedido de desculpas. Quanto mais ela tenta cobrar uma ação efetiva da diretora e dos demais professores, mais perceptível se torna o muro (ou os muros) que a separa de seu intento. É isso. É só isso? Não, é tudo isso!


Parece bobo, parece banal, mas é precisamente o oposto. O filme faz gato e sapato de nossa percepção, usando termos gadamerianos, eu diria que o filme alimenta nossas precompreenssões para adiante demoli-las em uma ampliação de horizontes. A trama brinca com a angústia de nossa condição existencial, somos seres lançamos em um mundo que enxergamos sempre a partir do ponto em que nos encontramos. Somos condenados a não ter uma noção precisa do todo e sem dar conta disso, nos contentamos com os fragmentos.

No livro A verdade e as formas jurídicas, Michel Foucault fala de um meio de produção e validação da verdade existente na Grécia antiga, que está presente inclusive no inquérito no qual o herói trágico Édipo é submetido. Uma mesma pessoa nunca detém toda a verdade, que é uma espécie de quebra-cabeças, cujo sentido só é revelado quando as outras pessoas que detêm as outras partes se pronunciam. Na tragédia de Sófocles só se descobre a gravidade do infortúnio de Édipo, que sem saber casou com a própria mãe e matou o próprio pai, porque surgem pessoas que detém cada uma parte da história.

O roteiro de Monster se vale deste mesmo método de produção da verdade, com a diferença de que nele não há um inquérito, as partes se encaixam e as pontas soltas se juntam na medida em que as perspectivas de personagens distintos vão sendo sobrepostas, revelando um sentido que que não poderia ser encontrado a partir de um horizonte solipsista. E aqui vale dizer que o que o filme faz é uma contundente crítica ao solipsismo que caracteriza o nosso tempo, no qual julgamentos baseados em precompreenssões são poucas vezes pensados e questionados por quem os emite.


Depois de nos revirar de ponta cabeça e ao avesso e de nos sacudir, a reposta para pergunta que é feita em diversos da trama, “quem é o monstro”, se desvela. O monstro sou eu, o monstro é você, o monstro somos todos nós. Monster nos lembra que urge pôr abaixo os muros da incomunicabilidade e ampliar os horizontes, sem isso, na vida assim como no filme, estaremos pecando o tomar o recorte, como um todo capaz de produzir algum sentido.


Monster ganhou o prêmio de melhor roteiro na edição do Festival de Cannes de 2023.