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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Incêndios

Incêndios (Incendies) - 2010. Escrito e dirigido por Denis Villeneuve, baseado no texto original de Wajdi Mouawad, com a consultoria de Valérie Beaugrand-Champagne. Direção de Fotografia de André Turpin. Trilha Sonora Original de Grégoire Hetzel. Produzido por Luc Déry e Kim McCraw. Produtora: micro_scope / França | Canadá.


O pano de fundo de Incêndios (2010), filme dirigido pelo canadense Denis Villeneuve, é o conflito que há décadas assola o Oriente Médio. Por meio de uma história visceral, que vai de 1970 à 2009, o filme retrata a corrente de ódio que torna aparentemente interminável um conflito que é ao mesmo tempo étnico, religioso e, principalmente, político. Com uma abordagem seca e sem atenuantes, o filme expõe, tal como uma enorme ferida aberta, os diversos tipos de atrocidades cometidos por ambos os lados. Sem maniqueísmos e livre do excesso de dramatização característico do cinema mainstrean, a narrativa abre espaço para um realismo incômodo e extremamente angustiante. 

O desenrolar da trama se incia quando os gêmeos Jeanne (Mélissa Désormeaux-Poulin) e Simon Marwan (Maxim Gaudette) são comunicados sobre as últimas vontades da mãe, Nawal Marwan (Lubna Azabal), manifestas por meio de um testamento que ela deixara aos cuidados de seu ex-patrão, um oficial de um cartório de notas. Ela pede aos filhos que procurem o pai biológico e um irmão, que eles nem sabiam que tinham. De acordo com as instruções deixadas, eles deverão encontrar estes familiares e entregar a eles cartas deixadas por ela. À princípio apenas Jeanne se dispõe a atender estes últimos pedidos, o que a leva, sozinha, ao oriente médio (a um país não revelado na trama) em busca de informações sobre o passado da mãe e o paradeiro do restante da família. 


Através de sucessivas idas e vindas no tempo, o roteiro mergulha na surpreendente história de Nawa, que vai adquirindo ares de tragédia grega no decorrer de seu desenvolvimento. Quando jovem, a mãe de Jeanne e Nawal se envolvera na guerra entre radicais muçulmanos e cristãos, conflito que assolou a região em que ela vivia, destruindo a vida de um incontável número de pessoas, que morreram, foram presas ou expatriadas durante quase quatro décadas de confronto. As marcas deixadas por este envolvimento foram carregadas por ela até o fim de sua vida e, após sua morte, acabaram sendo legadas aos filhos, que se viram então obrigados a lidar com segredos dolorosos, verdades que nunca tinham sequer imaginado.



A narrativa se distancia ideologicamente do conflito e se aproxima dos personagens e das situações retratadas e isso acaba sendo o seu grande diferencial. Pode soar controverso, dada a frieza observada na condução da história, mas vejo Incêndios como um filme extremamente humanista e é justamente neste humanismo, presente em toda a sua trama, que se baseia a catarse que ele nos proporciona em seu último ato. Porém, diferente do anestésico social que representava na tragédia grega, a catarse funciona aqui mais como um convite à reflexão e à indagação dos porquês da perpetuação de uma realidade tão cruel e, aparentemente, destituída de qualquer senso humanitário...


Todo o elenco entrega atuações carregadas de verdade, condizentes com a visceralidade da trama e com a proposta do filme. Destaco o desempenho de Mélissa Désormeaux-Poulin que torna crível, através de sutilezas como expressões e olhares (principalmente olhares), o drama enfrentado por Jeanne, e o de Lubna Azabal, que se entrega de corpo e alma na composição de uma personagem que é extremamente complexa. O aparato técnico do filme também é soberbo, o que potencializa o impacto que a trama, por si só, já seria capaz de provocar. A composição da mise-en-scène trabalha de uma maneira muito interessante o contraponto entre ambientes claustrofóbicos (como uma cela, o interior de um ônibus e até mesmo escritórios) e outros abertos, mas igualmente aflitivos, que reforçam, através do destaque que se dá às marcas da destruição e à aridez da região, a sensação de que se trata de um meio totalmente inóspito.


A excelente montagem dá fluidez à trama, atenua a tenção e ajuda a localizar no espaço e no tempo a enorme quantidade de personagens e situações retratadas em pouco mais de duas horas de filme. Apesar de cobrir um longo espaço de tempo e da complexidade dos eventos retratados, o filme não aparenta ser demasiadamente superficial ou de difícil compreensão em nenhum momento, há um notável equilíbrio, mérito que atribuo à montagem e à decisão, muito bem sucedida, de focar as relações entre os personagens e não o apego a datas e fatos históricos. Destaco por fim o uso de duas músicas do Radiohead, 'Like Spinning Plates' e 'You and Whose Army?', que retratam perfeitamente a falta de sentido e a brutalidade das situações retratadas nos momentos em que são usadas... Não é nenhum exagero afirmar que Incêndios é uma obra-prima, um dos melhores filmes dos últimos anos.


Incêndios foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. 


Confiram também aqui no Sublime Irrealidade a crítica de Os Suspeitos (2013), também dirigido pelo Denis Villeneuve



A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

sábado, 22 de novembro de 2014

Boyhood: Da Infância à Juventude

Boyhood: Da Infância à Juventude (Boyhood) - 2014. Escrito e dirigido por Richard Linklater. Direção de Fotografia de Lee Daniel e Shane F. Kelly . Produzido por Richard Linklater, Jonathan Sehring, John Sloss e Cathleen Sutherland. Produtoras: IFC Productions e Detour Filmproduction / USA.


Boyhood de Richard Linklater é um fruto de uma proposta ousada, ele foi filmado durante 12 anos, o mesmo período que a sua trama transcorre. A ideia era reforçar o realismo da história contada, conferindo a ela uma maior credibilidade e maior aproximação em relação ao público, que tenderia a aceitar com maior facilidade a verossimilhança da narrativa, uma vez que não haveria nela o risco de tropeçar naquilo que boa parte dos filmes que percorrem um longo espaço temporal normalmente tropeçam, que é a habilidade de conseguir, através dos elementos de linguagem, convencer de que há de fato um deslocamento no tempo. Em Boyhood não há maquiagens ou efeitos especiais, nem tão pouco troca de atores para imprimir nos personagens as marcas da passagem dos anos, nada disso se faz necessário porque os atores envelhecem e se transformam junto com os seus personagens. E não é só os atores que se transformam, o mundo muda no decorrer do período de produção e o reflexo disso está presente no filme, da maneira mais natural possível.

Alguns críticos chegaram a afirmar que o convencionalismo do roteiro, escrito pelo próprio Linklater, não fez jus à ousadia conferida pelo formato inusitado, não discordo totalmente desta afirmação, porém, penso que é justamente aí que reside a sacada e o maior trunfo do filme. Na história não há nenhum grande drama, nenhum grande objetivo a ser alcançado e, pode-se dizer que nas quase três horas de duração do filme também não há nenhuma grande reviravolta, o que Boyhood retrata (de uma maneira soberba) é a própria vida e a forma com que ela avança, muitas vezes sem sentido e sem oferecer qualquer tipo de explicação para as mudanças com as quais nos vemos obrigados a lidar. Pode-se dizer que ele é um filme sobre os ritos de passagem (no plural mesmo) pelos quais todos nós passamos em diferentes fases de nossa vida... É antes de tudo um filme sobre o tempo e ele é um de seus principais personagens.


Já no primeiro ato do filme vemos os membros da família, em torno da qual a história gira, lidando com uma primeira peripécia, é apenas uma mudança para uma casa nova, mas esta pequena transformação já é o suficiente para que esbocem comportamentos que serão recorrentes durante quase todo o filme. Mason (Ellar Coltrane), o protagonista, sua mãe (Patricia Arquette) e sua irmã, Samantha (Lorelei Linklater), não sabem lidar com as mudanças que a vida lhes impõe e, por temerem as transformações, eles resistem a elas o máximo que podem. Em uma análise um pouco mais profunda, eu diria que o que os assusta é na verdade o simples decorrer do tempo, que insurge como o grande antagonista da história, um vilão capaz de separar pessoas queridas, destruir relacionamentos e dar à vida rumos diferentes daqueles que tinham sido planejados. 


Mason e Samantha atravessam no filme dois períodos de intensas mudanças, o primeiro deles é a passagem da infância para a adolescência e o segundo, que é retratado já perto do film do filme, é a passagem da adolescência para a vida adulta. Durante este tempo eles lidam com o distanciamento do pai divorciado (Ethan Hawke) e com as mudanças no seio familiar, descobrem os primeiros amores e o senso de responsabilidade e, complexos que são, se transformam como grupo e como indivíduosE não é só em Mason que podem ser observados os efeitos desta implacável ação do tempo, eles estão presentes em toda a família. Em maior ou menor grau, positiva ou negativamente, todos acabam afetados pelas transformações que vivenciam em casa, na escola, no grupo de amigos, no trabalho, ou nos relacionamentos. 


A mãe é afetada de uma maneira diferente, ela aparenta estar o tempo todo correndo contra o grande vilão da história, o tempo, para manter os filhos seguros e a família unida. Numa das passagens mais representativas do filme, ela se depara com o que acredita ser o fim de sua vida, a perda da corrida contra o tempo, que é representada pela independência dos filhos já crescidos e pela falta de um projeto pessoal para abraçar a partir de então, o seu drama é o de não mais conseguir se adequar ao tempo que está vivendo; na passagem em questão, o filho compreende isso e a repreende. Em outro momento emblemático do longa, o pai sentencia em tom reflexivo: "o tempo nos torna mais resistentes"; ele próprio é a prova disso na trama, no entanto esta sentença não pesa apenas sobre ele, é ela que impede cada um dos outros personagens de vergarem, em diversos momentos, diante da já citada ação do próprio tempo.


Boyhood tem a seu favor um atributos que mais admiro no cinema, que é o poder de retratar o trivial, o cotidiano e algo aparentemente não dotado de grande significação com um olhar diferenciado, capaz de evocar inúmeras reflexões e questionamentos sobre a nossa própria vida. O misto de nostalgia e de encantamento diante de uma realidade que nos é apresentada - que não é tão diferente da nossa própria - funciona como uma espécie de convite para revisitar as nossas próprias memórias e para uma reflexão sobre a forma com que nós mesmos estamos lidando com a passagem do tempo e com uma quase inevitável angústia existencial, advinda da noção de que tudo pode passar ou se desfazer em um piscar de olhos... 


Um aspecto que, obviamente, eu não poderia deixar de comentar é a trilha sonora, os nomes presentes dispensam qualquer comentário adicional sobre ela, no entanto, creio que seja necessário destacar que cada canção foi muito bem utilizada na trilha, constituindo um elemento da própria linguagem e não apenas um mero acompanhamento, no mais, resta dizer que estão nela nomes como Arcade Fire, Coldplay, The HivesGeorge HarrisonPaul McCartney, Daft PunkFoo FightersThe Flaming LipsGary GlitterVampire WeekendPhoenixKings of LeonBob DylanFoster the PeopleYo La Tengo e os brasileiros Moreno VelosoLuísa Maita



A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Wish I Was Here

Wish I Was Here - 2014. Dirigido por Zach Braff. Escrito por Zach Braff e Adam J. Braff. Direção de Fotografia de Lawrence Sher. Produzido por Zach Braff, Adam J. Braff, Michael Shamberg e Stacey Sher. Produtoras: Worldview Entertainment, Double Feature Films e Wild Bunch / USA.


Como reagir em um daqueles momentos em que tudo aparenta estar fora de seu devido lugar e a vida nos surpreende com peripécias que parecem estar muito além daquilo que conseguimos suportar? Esta questão é o alicerce da trama de Wish I Was Here (ainda sem título nacional), o novo filme dirigido por Zach Braff. Diferente do que o seu mote sugere, não se trata tão somente de um drama, aqui, tal como em seu primeiro longa, Hora de Voltar (2004), Braff consegue a proeza de dosar na medida certa o trágico e o cômico e o resultado é uma obra que encanta e que emociona sem perder em momento algum a leveza, que se sobressai em situações inusitadas, diante das quais um riso, que chega a ser inocente, é quase inevitável. 

Seguindo o que considero ser uma tendência no cinema indie americano atual, Wish I Was Here retrata em sua trama uma América bem diferente daquela que Hollywood sempre mostrou; distante do padrão "terra das oportunidades", o que vemos aqui é um país de oportunidades minguadas, ainda assolado pelo fantasma do desemprego. É neste contexto que Aidan Bloom (vivido pelo próprio Zach Braff), o personagem central, está inserido. Ele é casado, pai de dois filhos e está desempregado. Aspirante a ator, ele ainda espera conseguir um papel de destaque e enquanto isso tenta sobreviver de pequenos trabalhos em comerciais. Sua esposa, Sarah (Kate Hudson), se torna a provedora da casa e, mesmo sendo frequentemente assediada por um colega de trabalho, ela se mantém no emprego para não tirar do marido a chance de viver um sonho cada vez mais distante, que ele continua a alimentar. 


A situação se complica ainda mais quando Gabe (Mandy Patinkin), o pai de Aidan, descobre que está com uma doença terminal, ele decide se submeter a um tratamento experimental que é bem caro e por isso deixa de ajudar no pagamento do colégio das netas. O protagonista se vê então diante de duras missões: conseguir um emprego rentável, reunir a família que está se desintegrando, não deixar que os filhos sejam obrigados a ir para a escola pública e ainda dar todo o suporte que o pai precisa. O problema é que ele não tem a mínima ideia de como fazer tudo isso e a sua falta de jeito no trato com estas situações torna cada tarefa ainda mais difícil. Durante o desenvolvimento do filme, é interessante notar o destaque que os enquadramentos dão para o rosto cansado e as rugas já salientes de Aidan; o fato dele já não ser tão jovem é apenas mais um complicativo, que atenua seu drama. 


Temas ásperos como a proximidade da morte, a desestruturação familiar e a crise econômica são retratados pelo filme com uma sutileza tamanha, que pode ser facilmente confundida com despretensão, ledo engano, afinal Braff demonstra ter plena ciência de onde quer chegar, sabiamente ele costura situações que, destituídas da sutileza, poderiam ser facilmente confundidas com um amontoado de clichês; aqui no entanto elas compõem um retrato tragicômico da atual situação dos Estados Unidos; situação esta que é marcada não só pela crise econômica, mas também pela crise de referenciais (tão bem exploda em uma das instituições retratadas no filme: o colégio judeu ortodoxo onde os filhos de Aidan estudam).   


Wish I Was Here provavelmente não figurará nas listas de melhores do ano, não será indicado a prêmios importantes para a indústria cinematográfica e tão pouco será apontado como uma obra-prima. Ele, no entanto, tem a seu favor a capacidade de cativar pela simplicidade e este pode ser o seu grande trunfo para envelhecer tão bem como Hora de Voltar... Destaco a ótima trilha sonora, composta  por nomes como Cat Power e ColdplayBob DylanThe Shins (como já era de se esperar) e os brasileiros do Bonde do Rolê; e o ritmo bem conduzido, que faz com que seu tempo de duração passe em um piscar de olhos. 

Curiosidade: A produção do filme, que custou dois milhões de dólares, foi realizada com o apoio do próprio público por meio de uma campanha de crowd funding (forma de financiamento coletivo). 


Assistam ao trailer de Wish I Was Here no You Tube, clique AQUI !


Confiram também aqui no Sublime Irrealidade a crítica de Hora de Voltar (2004), também dirigido pelo Zach Braff. 

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.