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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Monotonia e solidão em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo”


Transitando entre a ficção e o documentário, entre o melodrama e o experimento e entre o realismo e o subjetivismo, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009) é um filme único, seja pela forma, pela ousadia estética ou pela intensidade com que desconstrói e reconstrói um subgênero tão tradicional como o road movie.

José Lucas, o personagem principal é interpretado por Irandhir Santos, que não aparece em nenhuma cena do filme, sua presença se faz apenas pela narração em off, recurso usado em não poucas vezes de uma forma desnecessária no cinema nacional, mas aqui ele funciona muito bem, tanto como subversão do gênero documental como estrada para os interiores áridos do psicológico do personagem.

Geólogo, 35 anos, José Lucas viaja a trabalho, sua tarefa é fazer um relatório avaliativo/descritivo da região que será atravessada pelo canal de transposição do rio São Francisco, ele cruza os interiores do nordeste brasileiro em uma jornada que espera concluir em 30 dias. Neste caminho há vidas em abandono, desolação, muita solidão (geográfica e afetiva), sonhos e projetos desfeitos e uma monotonia dolorida, que está presente nas beiras de estradas e horizontes que parecem se repetir indefinidamente.




Desejo de fuga e de retorno se entrelaçam, mas na realidade nenhum dos dois se mostra viável, a vida é o que é, e parece que é isso que ela está dizendo para o personagem o tempo todo e é isso também que a narrativa está dizendo para nós espectadores. 

O filme oscila entre o documental e subjetivo e há ao menos duas transições bem nítidas, a primeira acontece quando um fato importante da narrativa é revelado, o que faz aprofundar o subjetivismo;  na segunda, é a vida real que insurge contra o subjetivismo,  e nesta passagem o predomínio da perspectiva do personagem central é rompida pela fala de uma jovem garota de programa, que parece não ignorar a presença da câmera que a constrange, nesta fala é como se a dureza do exterior trouxesse o próprio personagem de suas divagações de volta para o agora.




Felizmente o que se vê em Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo não é o tipo de experimentalismo que tem predominado em muitos festivais de cinema, que sobrepõe a forma à narrativa supondo que isso é exercício de linguagem. Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, que dirigiram e assinaram o roteiro, se distanciam do mais do mesmo ao atingir um nível de coerência entre os diversos elementos de linguagem, eles sabem que forma é narrativa e é isso que torna o filme grandioso.

Para olhares deformados pelo cinema comercial, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo pode parecer excessivamente lento e com poucos estímulos sensoriais, mas o que pode ser visto como defeito por alguns, são  na verdade alguns dos aspectos mais importantes. A lentidão da narrativa permite que se compreenda a solidão do personagem e sua forma de lidar com tanto com o passado, para onde ele almeja voltar, quanto com o futuro; e a falta de estímulos sensoriais ajuda reforçar a percepção da monotonia angustiante de seus dias.



É possível estabelecer ainda mais um paralelo entre realidade e subjetividade, que pode ser percebido na própria ideia da transposição que avançaria por sobre casas e por cidades inteiras, destruindo vivências e o acúmulo de significados de vidas inteiras. Aqui é como se o filme lembrasse, e isso é dito expressamente, que nada é eterno, tudo é transitório. Para a realidade que se apresenta como fator de transformações, o atropelo das subjetividades pouco importa e a vida de José Lucas é apenas mais uma evidência disso.