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terça-feira, 12 de outubro de 2021

"Persépolis" de Marjane Satrapi - Livro

 

Marjane Satrapi ainda era criança quando em 1979 rebeldes xiitas insurgiram contra Xá, autoridade máxima no Irã na época, e o depuseram, instalando em seguida um regime ditatorial e extremamente sanguinário. 

Ela cresceu em meio à imposição de regras de comportamento e de vestimenta  que cerceavam toda e qualquer expressão de liberdade individual. 

A situação de seu país piora com o início da guerra entre Irã e Iraque, conflito que foi financiado por países do ocidente. O número de mortos e desaparecidos só aumenta e diante da ameaça iminente os pais de Marjane decidem mandá-la para a Suíça. 

Já na Europa Marjane tem seu primeiro contato de fato com o movimento punk e a filosofia anarquista, até então seu contato mais próximo com o movimento era através de fitas K7 que circulavam clandestinamente entre seus amigos. 

Marjane passa então a ter contato com uma liberdade quase absoluta, e, acaba não sabendo lidar com ela, indo ao fundo do poço após o término de um relacionamento, ela chega a morar na rua antes de voltar para o Irã. De volta pra casa dos pais, ela passa a ter contanto com um viés de seu país tão cruel quanto a própria guerra: a discriminação. 

 


Resiliente, Marjane consegue vencer seus próprios fantasmas interiores e bater de frente com costumes, tabus e princípios. Ciente de que nunca mais caberá naquele mundo, ela parte de vez para a França, onde começa a escrever uma nova história... 

Em Persépolis, Marjane desnuda de forma crua e muitas  vezes angustiante a realidade que vivenciou em seu país e fora dele. O preconceito por não seguir a doutrina islâmica, por ser questionadora, por ser iraniana, por ter morado na Suíça, por não ser a esposa ideal, todos estes são na verdade males menores diante de um mal muito maior: o fato de ela ter nascido mulher em uma sociedade extremamente machista e autoritária...

Persépolis é uma obra prima em quadrinhos, um livro obrigatório, que nos fará entender e respeitar o outro étnico e valorizar a liberdade que ainda temos...

 

Escrito em 12 de outubro de 2015 e publicado originalmente no Facebook. 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

O Cortiço de Aluísio de Azevedo - João Romão e os recalques de uma classe média ascendente



Terminei minha pequena maratona por clássicos de nossa literatura com a leitura de “O Cortiço” do Aluísio de Azevedo. O livro rende inúmeras análises que vão do racismos estrutural presente em sua narrativa à sua abordagem de dois problemas que estão presentes até hoje na maior parte das cidades brasileiras, a não universalidade da moradia digna e a precarização do trabalho.

Mas, optei, nesta breve análise, por falar não sobre estes assuntos, mas sobre a forma com que um personagem da obra em especial ilustra um fenômeno também observado em nossos dias. O personagem é João Romão e o fenômeno é a ascencao econômica de pessoas pertencentes a classes menos favorecidas, que resulta na formação de uma nova classe média. 

João Romão é um Português que vem tentar a vida no Brasil, ele acaba assumindo o pequena venda onde trabalhava depois que o dono, também português, decide voltar para o país de origem e lhe entrega o controle do comércio como forma de quitação de salários atrasados. Pouco tempo depois, ao vislumbrar uma oportunidade de alavancar o seu negócio, João inicia um relacionamento e uma sociedade comercial com Bertoleza, mulher negra, ainda escrava, que fazia quentinhas para vender. 

Com a ajuda de Bertoleza, que trabalha incansavelmente sete dias por semana, João prospera. Com o dinheiro do comércio e da venda de quentinhas, ele compra parte de uma pedreira e constrói moradias precárias para aluguel. Contudo, quando Miranda, vizinho da venda e do cortiço, conquista um título de nobreza, o de barão,  João vê despertada em si uma grande insatisfação com tudo o que construiu. Ele é tão rico quanto Miranda, mas não tem a mesma “classe” que ele. 

Diante da notícia de que Miranda dará uma grande festa para comemorar a conquista do título, João se angustia. Ao ser convidado para a festa ele reconhece que não seria capaz de se infiltrar no meio ao qual Miranda pertence. Ele não se imagina vestindo sapatos, luvas ou conversando sobre arte e política com outros homens da alta sociedade. Ele não foi educado para as regras de etiqueta, tão pouco tem conhecimento da realidade do país ou sensibilidade artística para conversar sobre o que conversam. 

João ganhou muito dinheiro às custas da exploração do trabalho alheio e da aplicação de pequenos golpes, isso, no entanto não lhe torna menos parecido com as pessoas que moram em seu cortiço. O drama que ele vive vem da necessidade de se elevar, de se diferenciar dos seus, para assim ser aceito pela elite de seu tempo. 

Em sua busca por um atalho para alcançar seu objetivos, João pesará a mão sobre os seus inquilinos, na esperança de que o poder exercido sobre eles lhe alce a uma posição superior. Bertoleza se apresenta, em seus devaneios, como um grande obstáculo para a realização destes intentos. Como ser aceito pela elite racista estando ainda amasiado com uma negra? 

João Romão, em sua mesquinhez, avareza e ambição desmedida, em sua parca formação cultural, em sua limitação de visão para os fatos relevantes de seu tempo e em seu completo desprezo pelos que lhe servem de trampolim, se assemelha muito à significava parte da classe média atual, que se considera elite, sem o ser de fato, e insurge como antagonista dos desprivilegiados. Romão é um espelho da classe média que apoiou o golpe de 2016 e que elegeu um presidente fascista em 2018. 

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. Jaraguá do Sul: Editora Avenida, 2009.