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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Principialismo x consequencialismo: o embate ético em “Conclave”


Na terça da semana passada (18/02), em BH, no caminho entre o Cine Belas Artes e o local onde estava hospedado, tentei colocar em ordem um turbilhão de reflexões sobre o filme que eu tinha acabado de assistir: "Conclave". Estava certo de que tinha acabado de assistir a um dos melhores filmes da temporada, daqueles que abrem caminho para diversos questionamentos. 

Uma dúvida em especial tomou o meu pensamento, fiquei me perguntando se a dimensão ética da conduta do personagem principal, o Cardeal Thomas Lawrence (Ralph Fiennes), poderia ser apenas um possível ângulo de análise da trama como um todo ou se seria ela, mais que isso, não apenas um horizonte de análise, mas a temática principal da obra. Me pareceu que a segunda possibilidade era a mais plausível.


O filme retrata o rito de sucessão ao trono da Santa Sé. Após a morte repentina do papa, Lawrence passa a ser um dos cotados para assumir o pontificado. Mas, apesar de sua evidente preocupação com os rumos da Igreja, ele não deseja assumir este fardo. Diferente de seus pares, ele aparenta não ambicionar tal posição. E, a despeito de sua própria vontade, ele se vê no centro de uma trama de intrigas e conspirações. Por ser o decano (o que há mais tempo foi ordenado cardeal), ele é o escolhido para presidir o conclave.



Na condição de responsável pelo rito, Lawrence se depara com um primeiro dilema moral: deve ele apenas cumprir as formalidades, crendo que a vontade divina é que determinará a escolha do papa, ou deve intervir nos rumos da votação em momentos em que isso lhe parecer necessário? É um conflito entre anular a si mesmo e o voluntarismo de se reconhecer como alguém em quem foi investido um poder de ser não apenas coadjuvante.


Um segundo dilema enfrentado por ele diz respeito à coerência entre aquilo que ele prega e aquilo que ele efetivamente faz. Ele não é um hipócrita, longe disso. As dúvidas substanciais que ele enfrenta são plausíveis, são, por extensão, as dúvidas que a própria Igreja, como instituição, parece condenada a enfrentar. E há aqui um embate entre duas concepções éticas: a ética dos valores, que pressupõe a existência de vetores axiológicos universais, e uma ética consequencialista.


Lawrence parece estar perdido entre essas duas concepções. A crença que ainda lhe resta e suas concepções fortes do que é certo parecem indicar um caminho, mas sua visão pragmática, no entanto, parece indicar outro. A importância dessa dúvida se sobressai em pelo menos três momentos: na homilia que ele faz na abertura do conclave (uma das cenas mais belas do filme), em um diálogo com outro cardial sobre motivações para o voto (outra sequência magistral) e na passagem em que algo inesperado acontece (seria a intervenção divina) e muda os rumos de tudo.



O terceiro dilema enfrentado por ele é aquele entre seguir de forma acrítica uma tradição ou permanecer aberto à insurgência do novo. E é aqui que parece estar a fonte da crise de fé que Lawrence experimenta. E essa crise que o leva à dúvida essencial: se ele deve seguir aquilo que acredita ser o certo ou se submeter, sem questionamento, aos mandamentos de caráter dogmático impostos pela tradição eclesiástica.


Este último dilema se conecta com os outros dois e, novamente, com o tema da homilia proferida pelo personagem. Há uma passagem bíblica que diz que "a fé é a firma certeza daquilo que se espera e a prova daquilo que não se pode ver" (Hebreus 11:1), e uma leitura descontextualizada dessa passagem pode levar a crer que a fé é uma certeza cega, absoluta. Mas, não é disso que se trata. Na teologia cristã, há duas certezas postas como condição da própria fé: a de que Deus (aquilo que não se pode ver) existe e que a salvação (aquilo que se espera) vem por um ato de graça. É a isso que a carta aos Hebreus faz referência, não a todo e qualquer aspecto da crença, e definitivamente não ao como se deve agir em razão desta mesma fé.



A fé não implica em certezas sobre a questão ética/moral mais fundamental: como devo agir. A tradição eclesiástica apresenta respostas prontas, o que pode ser notado na adoção de procedimentos e esquemas práticos predefinidos (o que o filme ressalta ao demonstrar o extremo cuidado com os ritos). Mas, a conduta ética não tem relação com respostas prontas. Não há ética onde há certezas absolutas; a ética pressupõe a existência da dúvida.


E aqui se revela a contraposição central da trama: de um lado, o pensamento religioso dogmático; do outro, o pensamento ético. Os dois não se misturam, e enquanto o primeiro pode ser usado para justificar atrocidades, é apenas na experimentação do outro que se pode caminhar para uma experiência substancial de justiça e de consideração da dignidade do outro. "Conclave" é sobre tudo isso, ele ele nos diz muito sobre o nosso próprio tempo e talvez seja, dada a sua complexidade e consistência, um dos filmes da temporada que melhor resistirão ao passar dos anos.

domingo, 26 de janeiro de 2025

Sobre o que é e o que não é Emilia Peréz - uma breve resposta aos detratores!


Emilia Pérez (2023), produção francesa dirigida por Jacques Audiard, tornou-se, ao mesmo tempo, um dos favoritos da temporada de premiações e um alvo de parte da crítica especializada e de uma grande parte do público (que inclui, como de costume, muita gente que nem viu o filme). Parte dos ataques que ele tem sofrido vem da forma infantilizada com que muitas pessoas ainda lidam com competições, uma herança macabra vinda do futebol; não conseguimos torcer sem almejar a destruição e a completa humilhação do opositor.

Emilia Pérez talvez seja o favorito em todas as três categorias do Oscar em que Ainda Estou Aqui (2023) está indicado. Além destas, ele está indicado a outros 10 prêmios, o que faz dele o grande favorito desta edição do prêmio. Contudo, este favoritismo pode não se confirmar. Historicamente, um grande número de indicações nem sempre se converte em um grande número de prêmios, e exemplos disso não faltam; O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) recebeu o mesmo número de indicações, 13, e venceu em apenas três categorias técnicas. O ótimo Ataque dos Cães (2021) recebeu 12 indicações e foi premiado em apenas uma delas.

Ainda não vou ousar fazer previsões, assisti pouquíssimos dos indicados até agora, mas creio que já posso defender que Ainda Estou Aqui merece mais que Emilia Pérez os prêmios de Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz. Isso quer dizer que este último é um filme ruim? Absolutamente que não; muito pelo contrário, é sem dúvidas um dos grandes filmes da temporada. Karla Sofía Gascón entrega uma excelente atuação e o elenco coadjuvante não fica atrás; Selena Gomez e Zoe Saldaña também estão muito bem, a Indicação de Zoe à categoria de atriz coadjuvante foi merecida.



O filme, no entanto, tem algumas características que dificultam seu diálogo com o grande público. Primeiramente, por ser um musical. Musicais normalmente têm uma recepção no mínimo desconfiada. E, pra dificultar ainda mais, ele é um musical seco, sem grandes momentos de exaltação, seus números musicais são estranhos e chegam a causar certo desconforto, e isso, apesar de não ser um demérito, se opõe a uma clara tradição do gênero, que nos últimos anos, na maior parte das vezes, foi marcado pelo escapismo ou pela remissão a uma suposta ingenuidade da Hollywood das décadas de 30 e 40.

Além disso, a produção se viu envolvida em outras duas grandes polêmicas: a primeira sobre o que seriam representações equivocadas (ou mesmo maldosas) de pessoas trans e da cultura mexicana; a segunda sobre o fato de ser supostamente uma produção francesa, contando uma história que se passa no México, com personagens mexicanos, mas com um elenco formado predominantemente por atores não mexicanos. Nos parágrafos que se seguem, vou tentar abordar e rebater pontos específicos dessas duas críticas.

Entendo que há um erro de interpretação na primeira crítica, por um motivo simples, a transgeneridade não é uma temática abordada pelo filme. O personagem principal não é uma pessoa trans, é um homem cis se passando por uma mulher para fugir de seu próprio passado. Este tipo de abordagem pode levar a noções equivocadas do que é a transgeneridade? Pode. A existência de tais equívocos seria culpa do filme? Entendo que não. O filme não pode ser responsabilizado por interpretações mal feitas, ou mesmo pelo desconhecimento de parte do público do que é a transgeneridade, que é uma condição e não mera performance. O risco de que existam interpretações erradas poderia justificar a interdição da obra? Penso que não.



Seria um erro buscar em Emilia Pérez possíveis representações para a comunidade trans, simplesmente porque este não é um tema presente na obra. Não é um filme sobre pessoas trans, da mesma forma que Quanto Mais Quente Melhor (1959), com todo o seu anacronismo, também não o foi. Neste ponto, vale lembrar algo que eu já disse inúmeras outras vezes: uma obra deve ser avaliada por aquilo que ela é, não por aquilo que esperamos ou desejamos que ela seja.

Outro ponto é a representação da cultura mexicana. Bem, aqui talvez o erro seja menos óbvio. Não me parece que o propósito do filme seja o de representar a cultura mexicana. A história se passa em sua maior parte no México, mas isso não quer dizer muita coisa; não há uma obrigação de que, em razão disso, o roteiro deva constituir alguma forma de representação do país ou de sua população como um todo. Definitivamente, não se trata de uma obra sobre a essência de ser mexicano, é só uma história de ficção com contornos que beiram o surrealismo.

Um melhor conhecimento sobre o musical como gênero cinematográfico poderia ajudar a desfazer este equívoco. O ambiente diegético do musical (que é aquele no qual a história se desenvolve) não é uma tentativa de reprodução da realidade; basta lembrar que no mundo real pessoas não começam a cantar do nada, de forma não combinada, em movimentos sincronizados. A coerência interna do musical está no aceite de que há ali um elemento onírico, uma fuga da realidade que, se em algumas produções funciona como puro escapismo, em outras pode servir para salientar um desejo dos personagens de fugir de suas próprias realidades, é o que acontece em Dançando no Escuro (2000) de Lars Von Trier e agora em Emilia Pérez.



O México que aparece no filme não é, portanto, uma representação do real, é uma projeção, uma fantasmagoria, que só existe na mente dos personagens. Assumir o ambiente diegético como projeção é uma condição de coerência do formato do musical clássico, este no qual personagens realizam performances que não fariam sentido no mundo real.

Antes de passar à última crítica, a que diz respeito à composição do elenco, creio que vale a pena abordar um elemento ainda relacionado à primeira, mas que pode servir como introdução à segunda. Este elemento está relacionado à própria ideia de representação. Trata-se de um tema importante, mas cuja lógica passível de ser aplicada ao cinema e a outras formas de arte não é necessariamente a mesma que se aplica, por exemplo, ao mercado de trabalho e a espaços de poder.

Minorias precisam estar presentes nos espaços citados acima e isso decorre de uma situação em que historicamente isso não ocorreu, situações em que a diversidade não era uma realidade. Quando se trata do cinema, a discussão pode ir por dois caminhos: o primeiro é o da presença de grupos minoritários nas produções; o outro é o da forma com que tais grupos são retratados nas tramas.



O primeiro aspecto é uma questão de mercado, de produção, não de natureza artística. Voltarei a ele adiante. O segundo aspecto está relacionado à construção de estereótipos. Estereótipos são sempre problemáticos, pois partem de generalizações; eles costumam resumir grupos sociais a determinadas características e isso é muito perigoso. Mas, os estereótipos se tornam menos problemáticos na medida em que o filme deixa de ter uma abordagem pretensamente realista, uma vez que nestes casos deixa de existir a pretensão de representação de um grupo ou categoria social.

Em produções com uma construção de personagens menos rasa, que assume as complexidades sociais, os estereótipos tendem a deixar de existir, pois há o reconhecimento de que categorias sociais não são estanques. Eu explico: negritude, transgeneridade, feminilidade ou qualquer outra categoria social não são dotadas de uma essência imutável que possa ser capturada e aplicada na construção dos personagens. É a ideia errada de que tais essências existem que produz os estereótipos.

Emilia Pérez escapa deste problema por não possuir uma abordagem pretensamente realista e por não assumir características de seus personagens como parte de categorias estanques. Em momento algum o filme induz a crer que todo mexicano seja um traficante, ou que todo traficante possa fazer procedimentos cirúrgicos para se passar por uma pessoa de outro gênero. Pressupor isso, como muitas pessoas fizeram, é incidir em erros de interpretação grosseiros.



Chegamos então à crítica da composição do elenco. Esta sim é pertinente, atores mexicanos poderiam ter sido contratados para interpretar os personagens principais. Mas trata-se, conforme já dito, de um problema que se situa no campo da produção e não necessariamente no campo artístico. Artisticamente falando, atores podem interpretar qualquer personagem; na verdade, interpretar personagens diferentes de si pode ser um indicativo de versatilidade. A pertinência da crítica não afeta, deste modo, a qualidade artística do filme, não deslegitima nenhuma de suas indicações ao Oscar ou a qualquer outro prêmio.

Concluindo, Emilia Pérez é um baita filme e um fortíssimo concorrente ao Oscar. Definitivamente não é um filme que tende a agradar a todos os públicos, o que também não é um problema. Mas, pra quem gosta das abordagens secas do Jacques Audiard, perceptíveis em obras como De tanto bater meu coração parou (2005) e Ferrugem e osso (2012), e do traço recorrente em sua filmografia (que é a de incluir personagens dotados de alguma sensibilidade em contextos em que a sensibilidade é em si um problema), o filme será uma grande pedida.