A Professora de Piano (La Pianiste) - 2001. Escrito e dirigido por Michael Haneke, baseado na obra de Elfriede Jelinek. Direção de Fotografia de Christian Berger. Produzido por Veit Heiduschka. Produtoras: Les Films Alain Sarde, MK2 Productions, Wega Film, Arte France Cinéma e Österreichischer Rundfunk (ORF) / França | Alemanha.
O maior risco que se corre diante de um filme complexo como A Professora de Piano (2001) de Michael Haneke é o de avaliá-lo de forma reducionista, tomando como critério apenas os seus aspectos mais aparentes. É em parte devido a isso que, nos anos que seguiram seu lançamento, o filme se tornou vítima da repulsa de muitos críticos e cinéfilos que o consideraram uma obra agressiva demais. Todavia, a pressuposta agressividade de algumas sequências se torna um detalhe pequeno diante da profundidade dos temas que ele aborda, mas, se tal profundidade não for percebida ou for negligenciada sobra apenas aquilo que está na superfície. A percepção limitada dos significados realmente pode tornar a experiência de assisti-lo ainda mais incômoda - neste ponto, vale lembrar que a compreensão dos temas abordados, no entanto, não torna esta experiência menos angustiante, principalmente se chegarmos à conclusão de que aquilo que nos é mostrado, apesar de ser uma situação extrema, é o resultado de questões existenciais e de aspectos presentes nos relacionamentos que não nos são totalmente estranhos.
Classifico A Professora de Piano como um filme sobre relações de dominação e os conflitos que elas provocam nos relacionamentos interpessoais e no psicológico de cada indivíduo. Para que eu possa tentar explicar tal interpretação, é necessário primeiro comentar quem é a personagem central, e relembrar alguns de seus relacionamentos e o meio social no qual ela está inserida. Erika Kohut (Isabelle Huppert), a professora à qual o título do filme no Brasil se refere, é uma mulher de meia idade que vive com a mãe (Annie Girardot) em um pequeno apartamento. Especialista nas obras de Schubert e Schumann, ela é respeitada por todos no conservatório em que trabalha. Sua rigidez no trato com os alunos evidencia o seu perfeccionismo e sua dedicação extrema aquilo que faz. Com certa maestria, ela consegue intercalar sua vida social em um meio repleto de pompa e circunstância e suas incursões por um submundo de depravação, no qual ela mergulha em busca por prazeres doentios.
A chegada de um novo aluno, Walter Klemmer (Benoît Magimel), faz com que Erika vislumbre a possibilidade de finalmente vivenciar algumas de suas fantasias. O jovem rapaz não consegue esconder a paixão que sente por ela e a aparente submissão no qual este ardente sentimento o coloca o torna um alvo em potencial para os jogos que ela anseia por em prática. À princípio, Erika se nega a ceder às vontades de Walter, mas logo em seguida ela o coloca de volta no controle (ainda que de forma relativa), ao entregar para ele uma lista daquilo que ela espera que ele faça com ela. Similar a um manual de masoquismo, esta lista contém o passo-a-passo de jogos sexuais repletos de violência. Ao entregar a a lista, a professora pede que durante a realização dos jogos a sua vontade seja completamente ignorada e que seu atos contrários ao roteiro combinado sejam impedidos e/ou silenciados, ainda que de forma violenta, se necessário.
A análise da relação de Erika com sua mãe é o ponto de partida para que se possa compreender alguns de seus atos; não é por acaso que filme tenta deixar evidente, já em sua primeira sequência, os conflitos presentes neste relacionamento. Aqui se constrói a primeira relação de domínio presente na trama: apesar de já ser adulta Erika continua sendo tratada pela mãe como uma adolescente que precisa ter seus atos vigiados e sua vontade silenciada. Totalmente submissa, a pianista se vê diante de uma situação com a qual não sabe lidar. Apesar de tudo, nota-se que ela ainda sente um amor um tanto distorcido pela mãe e é este amor que a torna tão vulnerável e suscetível à culpa que lhe corrói em diversos momentos. É a ânsia de se libertar deste julgo que a leva a tentar construir outras relações de domínio, nas quais possa ocupar posições diferentes. Curiosamente, a primeira destas relações se dá com a música (o ato de tocar pode ser analisado aqui como o exercício do domínio sobre o próprio corpo e sobre os próprios sentimentos).
No entanto, a música é apenas uma válvula de escape incapaz de libertar Erika da influência exercida pela progenitora e é então que a subversão surge como um caminho possível. Mas, as incursões pelo submundo apenas alimentam e potencializam aquilo que ela sente e lhe indicam a urgência de quebrar o julgo imposto pela mãe. É então que Walter entra na história e tem início a mais complexa de todas as relações. É interessante observar que a princípio o rapaz acredita ter controle sobre o relacionamento que se inicia entre os dois, mas, logo a professora reivindica este controle para si, para em seguida devolvê-lo ao rapaz. Ela acredita poder se livrar da influência materna se subjugando a alguém capaz de exercer sobre ela uma força maior, ainda mais opressiva, alguém criado e controlado (aqui está o ponto mais interessante) por ela mesma.
Walter chama a atenção de Erika não apenas por sua virilidade, mas principalmente por causa da liberdade irrestrita que seus atos representam, ele quebra regras, não se coloca sob o domínio de ninguém e tem plena confiança em si mesmo (o que pode ser notado na avaliação que ele faz para entrar no conservatório), tudo isso, aliado ao seu ponto fraco - que é representado pela paixão que ele sente - o torna a pessoa ideal para viver os jogos sexuais propostos por ela, ele é a pessoa perfeita para desempenhar o papel esperado por ela na relação de domínio que ela pretende criar. Ela imagina poder transferir para ele domínio exercido pela mãe e acredita exercer controle o suficiente para romper esta relação quando os jogos chegarem ao fim. Mas, algo dá errado, toda a virilidade do rapaz parece cair por terra no momento em que ele lê a carta com o roteiro proposto por ela, por medo ele recua alguns passos e este é o primeiro indicativo de que algo pode dar errado e o resultado pode ser não ser o esperado por ela.
Michael Haneke constrói e correlaciona tudo, do roteiro adaptado aos elementos técnicos, de uma forma magistral. Nenhum elemento ou personagem é descartável na trama, tanto que a questão da dominação, que vejo como o mote principal da história contada, pode ser observada até mesmo nas relações entre personagens secundários. É curioso observar que apenas em uma passagem o ato sexual é mostrado de forma explicita no filme e isso acontece em uma cena que mostra a protagonista assistindo vídeos pornográficos em uma cabine; entendo isso como uma maneira sutil do cineasta de dizer que naquele filme que a personagem assiste o foco é o ato sexual em si, enquanto no dele o foco está sobre questões bem mais complexas, questões estas que o ato por si só é incapaz de retratar (apesar de ser através dele que a protagonista ensaia sua libertação na trama).
Isabelle Huppert está monstruosa na pela da protagonista, sua composição é visceral, o que confere um alto grau de realismo e consequentemente de credibilidade aquilo que sua personagem sente e vive. Annie Girardot e Benoît Magimel também entregam composições muito bem trabalhadas, que também chamam a atenção pelo realismo, o que chega a ser assustador dada a força que possui algumas das sequência nas quais eles contracenam com Huppert. A trilha sonora também merece destaque, fugindo dos caminhos óbvios como lhe é característico, Haneke opta também neste filme apenas pelo uso da trilha sonora diegética e este é um outro elemento que reforça o realismo da trama e seu intento de apelar mais para o racional do que para o sensorial.
Não ouso recomendar A Professora de Piano para todos, justamente por saber que muitos negligenciarão a profundidade de sua trama e se aterão à superficialidade daquilo que é mostrado na tela, mas não tenho dúvidas de que estou diante do tipo raro de filme que mantém vivo o meu tesão de escrever sobre cinema: o tipo que transcende os limites da linguagem cinematográfica e explora todo o potencial filosófico e reflexivo que a sétima arte ainda possui...
A Professora de Piano ganhou em Cannes os prêmios de Melhor Ator (Benoît Magimel), Melhor Atriz (Isabelle Huppert) e o Grande Prêmio do Juri.
Confiram também aqui no Sublime Irrealidade as críticas de Amour (2012), A Fita Branca (2009) e Caché (2005), também dirigidos pelo Michael Haneke.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.