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quarta-feira, 24 de junho de 2020

Milagre na Cela 7

Milagre na Cela 7 (Yedinci Kogustaki Mucize) - 2019. Dirigido por Mehmet Ada Öztekin. Escrito por Özge Efendioglu e Kubilay Tat. Direção de Fotografia de Torben Forsberg. Trilha Sonora Original de Hasan Ozsut. Produzido por Saner Ayar, Sinan Turan e Cengiz Çagatay. Turquia.
 

Eu normalmente prefiro esperar o hipe passar para assistir a um filme ou série sobre o qual todo mundo esteja falando, mas hoje decidi fazer o oposto e assisti O Milagre da Cela 7. O filme tem dividido opiniões, o público o exalta, enquanto parte da crítica especializada o massacra. Em tempos de polarização, talvez as defesas e ataques extremos tenham sido o que chamou a minha atenção (e olha que eu tenho tentado ao máximo evitar as tretas).

A seguir tentarei tecer algumas considerações, analisando-o não como mero entretenimento, mas como cinema. Se ele funciona bem no primeiro universo (o que se vê pelo sucesso de público), ele tropeça em diversos aspectos no segundo. Antes que me questionem se o cinema não pode entreter ou se o entretenimento não pode ser considerado cinema, explico que para efeito de análise considerarei como cinema a obra dotada de valor artístico, considerando que o valor artístico está no diálogo que a obra é capaz de estabelecer com o espectador.

O mero entretenimento normalmente abre mão do diálogo por entregar pronto aquilo que caberia ao espectador decodificar. Quanto mais “acabada” é a obra, menor o seu potencial artístico. Todo o aparato de linguagem se volta nestes casos para despertar no espectador um tipo específico de reação, não havendo, por isso, tanto espaço para a reflexão, para a contemplação ou mesmo para o questionamento.


O Milagre da Cela 7, como afirmei acima, funciona como entretenimento e de fato esta é a sua proposta, seu objetivo não é o de levantar reflexões profundas que perseguirão o espectador por dias, semanas, ou quiçá pra vida toda, ele te emocionará, todavia, no dia seguinte, quando você lembrar das mesmas passagens, elas já não produzirão mais o mesmo efeito, afinal tudo é muito raso e efêmero, o que não deixa de ser uma característica predominante no cinema mainstrean.

O filme tem inegável qualidade técnica, bela fotografia, movimentos de câmera cuidadosos e belíssima direção de arte, todavia, todos estes aspectos são reduzidos ao propósito de fazer emocionar e isso, confesso, é algo que me incomoda bastante. É possível antever todas as cenas em que algo triste irá acontecer, tão somente pela progressão da trilha sonora. Pode-se, inclusive, afirmar que é a trilha que pontua quando o espectador deve rir ou se emocionar; e isso, meus caros, nada mais é que manipulação barata.

Talvez o filme funcionasse um pouco melhor como cinema se ele tivesse a trilha amputada de si, afinal de contas o argumento dele é bom. O roteiro poderia ter sido melhor desenvolvido, se não estivesse tão sujeito, como os outros aspectos, à pretensão de emocionar. Ele possui boas atuações, mas falha na medida, o que se percebe mas inúmeras reações de personagens que soam forçadas no contexto em que acontecem.


O Milagre da Sela 7 entra, como eu havia previsto, naquele já volumoso grupo que tem como expoentes filmes como A Vida é Bela (1997), Cavalo de Guerra (2011), O Menino do Pijama Listado (2008) e um incontável número de obras de menor expressão. Obras em que o melodrama sufoca todo o potencial e a importância do tema abordado.

No atual caso, a frustração, pra mim, veio do fato de eu cheguei a me alegrar por perceber que o público estava dando atenção a uma obra de fora do mercado hollywoodiano e, tal como aconteceu no caso do francês Intocáveis (2011), o que eu vi no filme foi mera cópia de um modelo explorado à exaustão no cinemão americano... e as coisas podem piorar se Hollywood decidir, daqui a alguns anos, fazer um remake.

Resumindo, O Milagre da Cela 7 será uma boa pedida se você apenas quiser se deixar levar. Para os saudosistas, ele lembrará os inofensivos filmes feitos para a TV que cansamos de assistir no Cinema em Casa e na Sessão da Tarde. Agora, se você quiser experimentar aquilo que boa parte do público tem experimentado, abra mão da reflexão durante a sessão, separe o lenço e laissez faire...




quarta-feira, 17 de junho de 2020

Felicidade ou Morte - Livro

Felicidade ou Morte de Clóvis de Barros Filho e Leandro Karnal. Lançado originalmente em 2016. Campinas. Papirus 7 Mares, 2016.



O sucesso conquistado por Leandro Karnal e Clóvis de Barros Filho é um fenômeno no mínimo interessante. Bestsellers, eles conseguiram transpor as paredes da torre de marfim e atingir um público além dos universitários das respectivas áreas que lecionam, história e filosofia.
O fenômeno é curioso porque em um país de poucos leitores e parco interesse pela dita alta cultura, eles se tornaram verdadeiros gurus, de quem se espera um posicionamento ou uma resposta para as inúmeras crises pelas quais o país passa.

Não é um disparate dizer que o sucesso dentre o público não universitário de humanas se deve ao trânsito fácil pela linguagem simples, ainda que não coloquial, que torna reflexões complexas acessíveis a todos os públicos, mas também ao notável domínio da retórica e da comunicação nas redes sociais.

Em "Felicidade ou Morte", livro constituído na forma de um diálogo entre os dois intelectuais sobre o tema proposto, ambos tecem reflexões acerca da ideia de felicidade, da resignação como forma de driblar a angústia existencial, da construção social e histórica do que se tem como padrões de vida bem sucedida e da inevitabilidade da dor, que torna a própria noção de felicidade efêmera.

Sem precisar recorrer a academicismos, os autores transitam pela história e pela filosofia em busca ora de respostas, ora de algum eco para aquilo que defendem. A escrita flui fácil e, em alguns pontos, o texto chega a parecer uma transcrição de um diálogo tal como ele se deu, sem cortes e sem qualquer outro tipo de edição.

Tal noção vem justamente do fato de que tanto o Barros Filho quanto o Karnal se fizeram conhecidos do grande público antes pelos vídeos e só depois pela escrita, o que ajuda explicar o fenômeno que citei no início desta rápida resenha.

A manutenção do mesmo tipo de linguagem presente nos vídeos, inclusive com passagens já contadas ou citadas em outras oportunidades, cria uma espécie de aproximação (por meio da autoreferência), que conta muito no processo de trazer os seguidores das redes para o consumo da obra escrita.

Em um tempo em que ainda há certo repúdio pelo conhecimento e pela complexidade da leitura de um mundo pautado pela velocidade e pelo imediatismo, vejo com bons olhos o hipe e popularização do pensamento e do ato filosófico.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Da Arte Poética - Livro

Da Arte Poética de Aristóteles. Escrito provavelmente no século IX a.C.. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo. Martin Claret, 2015.



"Da Arte Poética" seria, de acordo com estudiosos da obra de Aristóteles, uma compilação de anotações feitas para serem usadas por ele nas aulas que ministrava no Liceu em Atenas.
Apesar de pequena, a parte da obra que sobreviveu ao decorrer dos mais de dois mil anos é de uma densidade tamanha, dado o brilhantismo da análise, que serviria não só para esmiuçar cada um dos elementos narrativos da tragédia grega, mas como um verdadeiro manual sobre a literatura e o teatro clássico, que continuaria inspirando poetas, dramaturgos e cineastas até hoje.

É uma obra seminal pra entender a arte ocidental produzida nos dois últimos milênios, e aqui incluo a literatura, o teatro e o cinema. "Da Arte Poética" é tão importante que é cabível a simplificação de reduzir tudo o que veio depois como confirmação ou ruptura em relação às ponderações de Aristóteles.

Meu primeiro contato com a obra foi há quase 10 anos, por meio do livro "O Teatro do Oprimido" de Augusto Boal, que faz uma leitura crítica do pensamento de Aristoteles e, à luz das teorias de Brecht sobre o teatro épico, propõe uma superação do modelo clássico.

A crítica feita por Boal me deu uma noção ampla do quão arraigado o modelo trágico ainda está na produção literária/teatral/cinematográfica de nosso tempo. E, posições contrárias à parte, o que cabe destacar aqui é que o fato de ter perdurado por mais de dois mil anos por si só já é um indício da força que tal modelo possui.

Entender conceitos e elementos como a imitação, a peripécia, o reconhecimento, o patético e principalmente a catarse é essencial pra qualquer um que se proponha a compreender, analisar ou criticar qualquer obra dotada de narrativa.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

A Morte de Ivam Ilitch - Livro


A Morte de Ivan Ilitch de Leon Tolstoi. Lançado originalmente em 1886. Tradução de Vera Karam. Porto Alegre. L&PM Pocket, 2010.


"A Morte de Ivan Ilitch" de Leon Tolstoi é considerado uma das melhores novelas de todos os tempos, o que é plenamente justificável, uma vez que sua densidade, que abrange a profundidade psicológica do personagem central e suas inúmeras representações sociais, a tornam não só um clássico da literatura de ficção, mas uma obra de forte cunho filosófico e até político.
Há na história uma contundente crítica ao ideal de felicidade burguês, que inclui casamento, carreira e posse de bens. Na trama, o personagem central, Ivan Ilitch, é um renomado e respeitado juiz, que teve uma rápida ascensão no meio jurídico e se tornou, dentre seus pares, referencial de sucesso e prosperidade.

Sua constante preocupação em estar em conformidade com o padrão de vida, com hábitos e até com os trejeitos burgueses lhe garante acessos e posições cada vez mais alta na hierarquia do tribunal em que trabalha.

O casamento infeliz, mantido às custas da aparência e do temor da reprovação social, faz com que Ivan se mergulhe em seu trabalho a ponto de quase aniquilar por completo a sua vida social. O progressivo distanciamento da esposa e dos filhos, uma clara tentativa de evitar conflito, se torna a justificava interior para as horas a fio diante de processos e de dossiês da repartição.

Ao apresentá-lo como personagem, Toltoi diz muito coisa com pouco mais de duas linhas: "A história da vida de Ivan Ilitch foi das mais simples, das mais comuns e portanto das mais terríveis". Em poucas palavras já fica decretada a tragédia do protagonista, já denunciada no título da obra e abordada já em seu primeiro capitulo.

Ivan sucumbirá diante de uma doença misteriosa, que lhe consome em pouco mais de três meses. A agonia e a angústia advinda da ciência da finitude da vida leva o personagem a questionamentos filosóficos acerca do porquê do sofrimento e sobre a existência ou não de um sentido maior para a vida.

Em dada passagem ele indaga a uma voz interior o porquê de tamanha agonia, e ela apenas responde: "Por nenhuma razão. É assim e pronto." Diante disso sobra apenas o vazio e o fatalismo de que a inevitabilidade da morte física é a única certeza (certeza esta que ele evitou por toda sua vida).

Ivan se apega então a um último questionamento: teria a sua vida válido a pena? Algo dentro de si lhe diz que sim, afinal ele cumpriu todos os requisitos reconhecidos pela sociedade como necessários para uma vida boa. Mas, as recorrentes memórias da infância, período em que fora de fato feliz, lhe induzem a crer no contrário. Tal percepção lhe machuca mais que a dor intermitente decorrente da doença.

A contundência da obra está no fato de que ela nos leva a questionar o nosso próprio padrão de felicidade, que muitas vezes nem é uma criação nossa, mas um mero fruto de uma construção social. É atormentadora a ideia de que o medo da morte que Ivan experimenta não é um medo de perder a vida, mas o arrependimento de não tê-la vivido de fato, somado à ciência de que já é tarde demais pra voltar atrás...