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sexta-feira, 6 de maio de 2022

Realidade e expectativa em “Madres Paralelas” de Almodóvar


Me proponho a escrever estas breves linhas não como uma resenha do filme em si, mas como uma crítica de parte das críticas que li sobre ele. Decido fazê-lo porque algo que considero um equívoco se mostrou de  forma reiterada em grandes partes das análises que li. Apesar de eu ter gostado muito do filme, eu não o colocaria no topo de meu ranking pessoal das obras do cineasta espanhol. Ressalto de antemão que minha divergência em relação a tais críticas não se dá por elas serem negativas, mas por adotarem premissas que, ao meu ver, estão erradas.

Antes de adentrar no ponto central deste breve texto, penso que é necessário fazer algumas considerações, a primeira é a de que Almodóvar é um homem, e, portanto, sua visão sobre o universo feminino, como autor, sempre vai ser a partir da perspectiva de um homem, não deveria haver dificuldade para entender isso, mas aparentemente ainda há. Algumas análises apontam isso como demérito e não como fatalidade. 

Outro ponto que vale ressaltar é que os filmes de Almodóvar não são e não devem ser analisados como tratados sobre o universo feminino, eles não possuem pretenções sociológicas e possuem pouco compromisso com a ideia de se fazer um retrato da vida como ela é, o que é uma característica essencial do melodrama, subgênero pelo qual Almodóvar sempre transitou.

O problema, extremamente recorrente em muitos críticos, e aqui chegamos no ponto central deste texto, é querer que a obra seja como eles próprios  a imaginaram e não como ela é. Sempre defendi que a análise de uma obra de arte deve ser pelo que é e nunca pelo que poderia ter sido. O campo do “poderia ter sido” será sempre demasiadamente grande e tão diverso quanto o número de críticos que se proponha a idealiza-lo.



Este é o problema em boa parte das análises de “Madres Paralelas” que li. Curiosamente, percebo que há uma preguiça dos autores de tais análises de tentar relacionar os dois arcos narrativos presentes no filme, aí fica a impressão de que um invade o outro em dado momento da narrativa, sendo que ambos estão entrelaçados desde o início. Faltou nestes casos a compreensão de que uma das “madres” às quais o título faz referência é a pátria espanhola e que a conotação política não emerge apenas no final do filme. Deveria ser algo óbvio, mas pra muitos aparentemente não foi. 

Parte das críticas negativas que li se concentrou no fato de que Almodóvar deixou de aprofundar determinados aspectos da narrativa. Porém, este não aprofundamento é em si uma opção narrativa. Se ao escrever um roteiro eu deixo de aprofundar um aspecto em especial, eu estou tacitamente dizendo que o foco deve estar em outro. Mas, parafraseando um personagem de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, enquanto Almodóvar está apontando para a lua, os imbecis continuam a olhar para o dedo.

Há notadamente nas críticas às quais me refiro um conflito entre realidade, o que o filme é, e expectativa, o que o filme poderia ter sido. O que não é algo novo. Fenômeno semelhante ocorreu há mais de 60 anos, em “A Aventura”, clássico de Antonioni, nele há uma expectativa de que a trama se desenvolva em uma direção, o desaparecimento de uma personagem, mas ela acaba tomando outra, a contemplação do vazio existencial de outros dois personagens. Há também em uma obra clássica de Hitchcock uma formidável quebra de expectativa quando aquela que foi a protagonista durante a primeira parte da trama morre e é substituída por outra. 

Tanto em “A Aventura” e no filme de Hitchcock (que evito nominar por conta do spoiler), quanto em “Madres Paralelas” a expectativa criada é um problema do espectador, não do filme como obra de arte. É o ego do crítico/espectador tentando dizer mais sobre a obra que o próprio autor, e neste processo acaba sendo perdido o essencial, a noção do que de fato a obra se propunha a ser. Em, “A Aventura”, por exemplo, quem esperar pelo reencontro da personagem desaparecida não conseguirá embarcar na reflexão proposta sobre a banalidade da existência e sua completa falta de sentido. Em “Madres Paralelas” a atenção dedicada a aspectos secundários da trama pode impedir a compreensão do essencial, a existência do conflito ético entre o que se espera como ser político e o que se faz ou se pretende fazer como indivíduo.



Talvez por estarmos tão apegados a uma narrativa convencional, qualquer ruptura com o esquema baseado em causa/consequência acabe por nos causar certo desconforto. A reação aos saltos no tempo e às abordagens superficiais de temas espinhosos (que não são o foco da narrativa) em “Madre Paralelas” não difere muito da repulsa que filmes com finais abertos normalmente causa em quem se acostumou a ver sempre finais com todas as pontas da trama cuidadosamente amarradas.

Linguagem e Poder


Língua e linguagem não são imutáveis, são construções sociais, sujeitas a mudanças e principalmente capazes de reproduzir os jogos de poder. Língua e linguagem podem ser instrumentos de exclusão e de dominação, há uma vastíssima bibliografia sobre isso. Todo língua é viva, tão viva que pode morrer, o latim é considerado uma língua morta, umas dentre tantas que ruíram junto com verdadeiros impérios, o que deixa evidente a relação entre língua/linguagem e poder. Enquanto viva a língua se transforma, “vossa mercê” se torna “você”, que se torna “vc”.

Há uma tentativa de reduzir a linguagem às normas gramáticas que regulamentam o uso formal do idioma, que na prática pouco ou quase nunca ocorre. É nestas normas gramaticais que aqueles que temem transformações sociais se apegam quando determinado uso da língua é apontado como capaz de validar um mecanismo de dominação, eles se esquecem, no entanto, que, ainda que de forma mais lenta, a norma culta também muda. O Brasil, vale lembrar, passou por reformas ortográficas internas em 1943 e 1971, e em 1990 assinou o acordo ortográfico que visava uniformizar o uso gramatical do português em todos os países que o têm como língua principal (até o momento apenas Brasil e Portugal colocaram o acordo em prática). 

O problema, contudo, é que a coletividade tende a aceitar melhor a imposição de determinado uso como norma culta quando este é posto por setores dominantes da sociedade, ainda que não façam sentido algum. Somos até mesmo capazes de aceitar que há alguma razão para a existência de vários tipos de porquês (junto, separado, acentuado e não acentuado), mas, tendemos a repudiar quando a forma adversa da linguagem (adversa no sentido de oposição mesmo) vem como resposta de setores tradicionalmente dominados.

Quando determinado grupo alerta sobre a carga pejorativa que determinados termos trazem (como no caso de “índios”, termo que deve ser substituído por “povos indígenas” ou “povos originários” ou “escravos”, que deve ser substituído por “escravizados”), a reação primeira de grande parte das pessoas é a de dizer que “este politicamente correto tá ficando muito chato”, “isso são só besteiras” ou que “não tem nada de errado porque todo mundo sempre falou assim”. Todavia, vale recordar: (1) rever posturas sempre será algo “chato” pra quem está apegado aos próprios erros; (2) não são só “besteiras”, são maneiras de exercício de poder que precisam ser confrontadas; (3) não foi sempre assim e não precisa continuar sendo porque a língua é vida. 

Outros poderiam dizer ainda que está em curso uma tentativa de politizar tudo, contudo, não é difícil compreender que tudo aquilo que afeta de algum modo a vida social é em sua essência um ato político, seja de contestação ou de conformação ao poder (ou aos poderes) estabelecido. O uso que fazemos da língua é político, sempre foi assim, ele confere e restringe acessos, reforça ou destrói pressupostos, valida ou desconstrói determinado sistema de dominação. 

A linguagem é, recorrendo a Heidegger e Gadamer, condição de possibilidade para se chegar a aquilo que é, deixando de lado aquilo que aparenta ser. Para se compreender o sistema de dominação como um todo é necessário “revolver o chão linguístico no qual está assentada determinada tradição”, ou em outras palavras é necessário mostrar aquilo que a linguagem está sendo usada para encobrir, pois o exercício do poder consiste justamente na substituição do que é, pelo que aparenta ser, ou vice versa.

No exercício de revolver o chão linguístico se descobre que encoberto pela tradição (o “isso sempre foi assim”) estão questões raciais, de classe e de gênero, que não precisam ser perpetuadas. Tanto o poder de outrora quanto o de hoje precisam ser confrontados para que tais questões deixem de ser instrumentos de dominação e esse confronto passa, necessariamente, pela linguagem.


Imagem ilustrativa encontrada AQUI