Me proponho a escrever estas breves linhas não como uma resenha do filme em si, mas como uma crítica de parte das críticas que li sobre ele. Decido fazê-lo porque algo que considero um equívoco se mostrou de forma reiterada em grandes partes das análises que li. Apesar de eu ter gostado muito do filme, eu não o colocaria no topo de meu ranking pessoal das obras do cineasta espanhol. Ressalto de antemão que minha divergência em relação a tais críticas não se dá por elas serem negativas, mas por adotarem premissas que, ao meu ver, estão erradas.
Antes de adentrar no ponto central deste breve texto, penso que é necessário fazer algumas considerações, a primeira é a de que Almodóvar é um homem, e, portanto, sua visão sobre o universo feminino, como autor, sempre vai ser a partir da perspectiva de um homem, não deveria haver dificuldade para entender isso, mas aparentemente ainda há. Algumas análises apontam isso como demérito e não como fatalidade.
Outro ponto que vale ressaltar é que os filmes de Almodóvar não são e não devem ser analisados como tratados sobre o universo feminino, eles não possuem pretenções sociológicas e possuem pouco compromisso com a ideia de se fazer um retrato da vida como ela é, o que é uma característica essencial do melodrama, subgênero pelo qual Almodóvar sempre transitou.
O problema, extremamente recorrente em muitos críticos, e aqui chegamos no ponto central deste texto, é querer que a obra seja como eles próprios a imaginaram e não como ela é. Sempre defendi que a análise de uma obra de arte deve ser pelo que é e nunca pelo que poderia ter sido. O campo do “poderia ter sido” será sempre demasiadamente grande e tão diverso quanto o número de críticos que se proponha a idealiza-lo.
Este é o problema em boa parte das análises de “Madres Paralelas” que li. Curiosamente, percebo que há uma preguiça dos autores de tais análises de tentar relacionar os dois arcos narrativos presentes no filme, aí fica a impressão de que um invade o outro em dado momento da narrativa, sendo que ambos estão entrelaçados desde o início. Faltou nestes casos a compreensão de que uma das “madres” às quais o título faz referência é a pátria espanhola e que a conotação política não emerge apenas no final do filme. Deveria ser algo óbvio, mas pra muitos aparentemente não foi.
Parte das críticas negativas que li se concentrou no fato de que Almodóvar deixou de aprofundar determinados aspectos da narrativa. Porém, este não aprofundamento é em si uma opção narrativa. Se ao escrever um roteiro eu deixo de aprofundar um aspecto em especial, eu estou tacitamente dizendo que o foco deve estar em outro. Mas, parafraseando um personagem de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, enquanto Almodóvar está apontando para a lua, os imbecis continuam a olhar para o dedo.
Há notadamente nas críticas às quais me refiro um conflito entre realidade, o que o filme é, e expectativa, o que o filme poderia ter sido. O que não é algo novo. Fenômeno semelhante ocorreu há mais de 60 anos, em “A Aventura”, clássico de Antonioni, nele há uma expectativa de que a trama se desenvolva em uma direção, o desaparecimento de uma personagem, mas ela acaba tomando outra, a contemplação do vazio existencial de outros dois personagens. Há também em uma obra clássica de Hitchcock uma formidável quebra de expectativa quando aquela que foi a protagonista durante a primeira parte da trama morre e é substituída por outra.
Tanto em “A Aventura” e no filme de Hitchcock (que evito nominar por conta do spoiler), quanto em “Madres Paralelas” a expectativa criada é um problema do espectador, não do filme como obra de arte. É o ego do crítico/espectador tentando dizer mais sobre a obra que o próprio autor, e neste processo acaba sendo perdido o essencial, a noção do que de fato a obra se propunha a ser. Em, “A Aventura”, por exemplo, quem esperar pelo reencontro da personagem desaparecida não conseguirá embarcar na reflexão proposta sobre a banalidade da existência e sua completa falta de sentido. Em “Madres Paralelas” a atenção dedicada a aspectos secundários da trama pode impedir a compreensão do essencial, a existência do conflito ético entre o que se espera como ser político e o que se faz ou se pretende fazer como indivíduo.