Beijo Estranho, quarto disco de estúdio do Vanguart, tinha lançamento previsto para o dia 28 de abril. O single homônimo já tinha sido lançado no início daquele mês e denotava uma aventura da banda por uma sonoridade diferente da explorada nos trabalhos anteriores. A ansiedade de parte do público já era alta, mas havia o receio de que as expectativas pudessem ser frustradas, uma vez que não seria fácil manter o alto nível dos álbuns anteriores. Horas antes do previsto alguém queimou a largada, o disco foi postado em uma das plataformas de streaming, pouco tempo depois aconteceria o lançamento oficial nas outras plataformas.
Diante da notícia de que o álbum já tinha caído na rede, experimentei um daqueles raros momentos de realização em que o mundo todo pausa para que possamos fazer algo de extrema importância; eu não teria como descrever aqui a sensação de estar diante de um material inédito de uma das minhas bandas favoritas - Neste exato ponto desta resenha, penso que cabe lembrar que este é um texto pessoal, sem qualquer compromisso com a objetividade ou com qualquer tipo de distanciamento - naquele momento, estranhamente, era como se eu esperasse encontrar no disco não a banda, mas a mim mesmo.
Os discos Boa Parte de Mim Vai Embora e Muito Mais que o Amor marcaram fases distintas de minha vida e era natural, ao menos pra mim, que eu buscasse no novo álbum um fio que me reconduzisse de volta às experiências e reminiscências destes períodos. Mas, ao invés de um fio que me conduzisse de volta para o passado, encontrei uma porta que se abria para o desconhecido.
Dei o play no álbum no Spotify, optei por não pular a primeira faixa, a já conhecida faixa título, eu queria sentir o disco em sua totalidade, e sentir era mesmo a palavra mais adequada. Beijo Estranho, tal como seus antecessores, transbordava sentimentos e sensações. Ouvi o disco completo sem avançar nenhuma faixa, tentei absorver cada acorde, cada estrofe, cheguei ao final e voltei ao início, ouvi de novo e voltei outra vez, e outra, e outra... caminhava a madrugada a passos largos e à medida em que ela avançava, mais denso e interessante o disco ficava.
Mas, nestas primeiras audições ainda me faltava uma noção da totalidade, o disco ainda me soava fragmentado, como se cada canção transitasse por um universo próprio de questões e de sensações distinto das demais. Entretanto, a cada nova audição as pontas, que eu acreditava estarem soltas, se juntavam uma às outras deixando transparecer algo maior. Ao contrário do que eu cheguei a supor, havia sim uma unidade em Beijo Estranho, algo que o localizava entre a nebulosidade do Boa Parte de Mim Vai Embora e o clima ensolarado de Muito Mais que o Amor.
Beijo Estranho, eu ousaria dizer, é um disco sobre amor e medo; não por acaso, estas são as palavras mais recorrentes nas letras das onze canções que o compõem; ouso dizer ainda que não só há uma unidade entre essas canções, como também há um todo maior que liga o disco aos seus antecessores. Beijo Estranho é uma espécie de continuidade dos álbuns de 2011 e de 2013, uma vez que a reflexão proposta em cada um está entrelaçada à temática predominante nos outros.
Boa Parte de Mim Vai Embora evocava a dor e o sofrimento advindos do rompimento com uma pessoa amada, enquanto que Muito Mais que o Amor era sobre redescobrir o amor idealizado, romântico em sua essência, aquele capaz de renovar as esperanças e a própria vida. Beijo Estranho ésobre descobrir a si mesmo, é sobre se reconhecer no amor que oferta a alguém. A vivência da auto-descoberta inclui tanto a noção de que o amor pode ser doloroso e abrir feridas profundas quanto o reconhecimento de que é preciso vencer o medo que sufoca e tolhe a experiência do amor real, um medo que paralisa e acomoda.
"Quente é o Medo" não é a minha música favorita, mas talvez seja a mais emblemática do disco (abro um parêntese aqui para defender que ela deveria ter dado nome ao disco), é uma canção que possui certa dubiedade e que, por isso, abre margem para interpretações diversas e principalmente para reflexões sobre - adivinhem - amor e medo. Outras faixas dão sequência à mesma reflexão; "Todas as Cores", que começa em um tom de conselho, fala sobre o aprendizado adquirido por meio dos erros cometidos, um aprendizado que ajuda a vencer o medo de apaixonar de novo. "Quando Eu Cheguei na Cidade" fala sobre a coragem de se reabrir para um amor que já causou muita dor. "Menino" incita a fazer o seu próprio tempo ao invés de esperar o tempo certo, que talvez nem exista.
"Casa Vazia", que também diz muito sobre o álbum como um todo, em seus versos lembra que a natureza do amor é determinada mais pelo amante do que pelo objeto deste amor, o que está diretamente ligado à ideia de reencontrar, conhecer e amar a si mesmo antes de oferecer amor a outrem. "Homem Deus" dá ares filosóficos à reflexão; em seus versos, todos (o homem, Deus, a natureza) são um só e o amor é o elemento que confere tal unidade. O amor é o elemento capaz de elevar o homem e colocá-lo em contato com o sublime.
Vencido o medo, vem a oportunidade de viver uma entrega plena, capaz de proporcionar a vivência do amor real. Nesta onda de reflexão vêm "Beijo Estranho", que aborda a auto-descoberta de alguém que dedicara a própria vida à outra pessoa e finalmente descobre o quão destrutivo era este relacionamento. "E o Meu Peito Mais Aberto que o Mar da Bahia" fala sobre a entrega irrestrita, exaltando a felicidade e a liberdade que dela decorrem. "Eu Preciso de você", minha favorita do disco, é outra ode à entrega - perfeita a metáfora do trem desgovernado. A derradeira do álbum, álbum, "Pancada Dura", condensa em si toda a reflexão que permeia o disco, ela o fecha falando de coragem e conclui: vale a pena morrer de amar!
Musicalmente, apesar da mudança recente na formação, a banda aparenta estar no ápice de seu entrosamento e potencial criativo. Helio Flanders e Reginaldo Lincoln tiraram de suas mangas verdadeiras pérolas, ambos estão cantando como se estivessem com a alma a ponto de sair pela boca. O violino da Fernanda Kostchak nunca esteve tão expressivo, ele geme, grita, chora, sorri e corre solto se destacando mesmo nas faixas em que surge acompanhado por outros instrumentos de corda (em belíssimos arranjos). O baixo do Reginaldo e a guitarra do David Dafré, estão lá, também em perfeito entrosamento, para nos lembrar porque o Vanguart é o Vanguart.
Destaco as participações especialíssimas do lendário Wagner Tiso (autor dos arranjos de boa parte dos clássicos do Clube da Esquina), que compôs os arranjos de "Homem-Deus", do Thiago França (Metá Metá), que gravou o Sax e a Flauta na canção "Quando eu Cheguei na Cidade" e do eterno Vang Luiz Lazzaroto, que gravou o órgão em "Menino".
Relevem o fato de que nesta resenha a persona fã gritou mais alto que a do jornalista e crítico e anotem o que eu estou dizendo: "Beijo Estranho" figurará em algumas listas dos melhores do ano, mas certamente será um disco que crescerá com o tempo. Ele fará, junto com os seus antecessores, que o Vanguart seja lembrado daqui a alguns anos como uma das melhores e mais originais bandas de nosso tempo. Anotem.
Dá o play no disco e aciona o repeat!