Renoir - 2013. Dirigido por Gilles Bourdos. Escrito por Gilles Bourdos, Jérôme Tonnerre e Michel Spinosa, baseado na obra de Jacques Renoir. Direção de Fotografia de Ping Bin Lee. Música Original de Alexandre Desplat. Produzido por Olivier Delbosc e Marc Missonnier. Fidélité Films / França.
O que é capaz de conferir valor artístico à uma determinada obra? Alguns dirão que é tão somente o olhar de quem a contempla. Outros dirão que basta a intenção do autor. Eu, porém, acredito que tal valor nasce é do diálogo que se dá entre o público (personificado por cada indivíduo que o compõe) e o artista, tendo a obra como canal. Penso que se este diálogo não existe, o valor artístico também não. Tal pressuposto explica o fato de que uma mesma obra possa ter um valor incalculável para uma pessoa e, ao mesmo tempo, ser absolutamente descartável para outra. Ao nos colocarmos diante de uma obra de arte, levamos junto uma enorme bagagem, dentro da qual estão nossos sentimentos, nossas experiências e toda a singularidade da forma com que enxergamos e interpretamos o mundo à nossa volta, em última instância, é esta bagagem que ditará o tom deste diálogo.
Em algumas situações o processo de comunicação supracitado acontece de forma fluída e sem tantos ruídos, já em outras há a intervenção de fatores (internos e/ou externos à cada uma das partes) que influenciam na mensagem que está sendo decodificada. Quando isso acontece há uma boa chance de que a mensagem recebida pelo indivíduo que contempla a obra não seja a mesma que fora emitida pelo artista, o valor artístico, todavia, não é necessariamente afetado quando isso acontece. Ouso dizer que é a presença de tais ruídos, que convertem a mensagem original em outras novas mensagens, adaptáveis ao olhar de cada um, é o que torna a experiência artística tão sublime e interessante de ser analisada. A cinebiografia Renoir (2013), dirigida por Gilles Bourdos, aborda em sua trama diversas questões que estão associadas a este diálogo tramado entre o artista e seu público.
O filme retrata os últimos anos da vida do pintor francês Pierre-Auguste Renoir, período no qual ele esteve recluso em sua imensa propriedade, que era quase um oásis em meio ao terror proporcionado pela primeira grande guerra. O foco da narrativa se encontra sobre os relacionamento de Renoir (Michel Bouquet) com sua musa, a jovem e bela Andrée Heuschling (Christa Theret), e seus filhos, o futuro cineasta Jean Renoir (Vincent Rottiers) e o rebelde Coco Renoir (Thomas Doret). Como pano de fundo, o longa retrata a criação de algumas das obras mais belas do artista, cuja sensibilidade parece ter sido aguçada pelo avanço da doença degenerativa que tem e pela ciência da proximidade da morte. O filme é quase uma ode à beleza, tanto àquela que pode ser encontrada na natureza, quanto àquela que vem à existência através da criação artística.
A questão acerca do valor atribuído à arte, que está presente do início ao fim do filme, ganha expressão no comportamento e nas atitudes de cada um dos personagens. Coco não consegue enxergar beleza alguma nas obras pintadas pelo pai, traumatizado pelos horrores da guerra, ele cria sua própria forma de expressão, que só tem valor e significado para ele mesmo. Em Jean, se materializa a paixão pela arte, que se manifesta em um misto de respeito, admiração e curiosidade, é evidente que ele tem o pai como uma referência e isso certamente influenciaria no futuro a sua própria obra. Andrée, por sua vez, não consegue fazer um mergulho tão profundo nas obras, à princípio o que desperta seu interesse é apenas a beleza estética e a oportunidade de se juntar a alguém respeitado no meio artístico.
A visão do próprio Pierre-Auguste Renoir é, no entanto, a mais interessante, ele enxerga a criação artística como um mero ofício, em dado momento ele chega à compara-la à carpintaria e outros trabalhos manuais. Estas visões distintas acerca da arte constitui um dos aspectos mais interessante do filme, que é capaz de evocar inúmeras reflexões sobre o tema. Outra reflexão pertinente surge da dicotomia entre a arte, apresentada como um ato de criação e vida, e a guerra, que seria a oposição de tudo isso, representando portanto a destruição e a morte. Em dada passagem, o pintor lamenta a a ida de um dos filhos para a guerra e sentencia que quem deveria ir para o front não são os jovens, mas os velhos e enfermos. Tal reflexão me leva a crer que a arte se tornara para ele uma motivação para se manter vivo e para não se tornar uma vítima de sua própria sentença, acabando assim em guerra travada contra si mesmo...
Renoir não foi tão bem recebido pelo crítica nem pelo público, em parte devido ao convencionalismo evidente do desenrolar de sua trama, que evoca diversos lugares comuns que geralmente associamos às produções hollywoodianas. Todavia, o seu valor não se encontra na trama nem nos acontecimentos presentes em seu desenvolvimento, mas sim nas entrelinha, nos momentos de silêncio e contemplação, nas questões que são levantas em cada diálogo e nas considerações feitas por cada um dos personagens; e aqui cabe a mesma reflexão que propus no início desta resenha: o valor artístico de Renoir se encontra é justamente no diálogo que ele é capaz de estabelecer com cada um de nós espectadores, diálogo este que pode culminar em uma profunda reflexão sobre a natureza da arte e os processos de criação e apreciação.
Destaco as boas atuações (Michel Bouquet está excelente) e todo o aparato técnico do filme. Os primorosos trabalhos de fotografia, figurinos, maquiagem e direção de arte conferem ao longa uma incrível beleza visual, que constitui por si só um convite à contemplação. A trilha sonora de Alexandre Desplat também merece destaque, apesar dele recorrer em alguns momentos à uma dramatização característica de compositores como John Williams, suas canções não soam em nenhum momento apelativas ou enfadonhas, elas ajudam a ditar o ritmo e tom reflexivo que o filme adquire em diversas passagens. Não creio que Renoir seja um filme impecável, nem tão pouco pode ser considerado uma obra prima de seus realizadores, mas ainda o vejo como um bom drama biográfico com algo a mais e, neste caso, este algo a mais pode fazer toda a diferença.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.