Sr. Ninguém (Mr. Nobody) - 2009. Escrito e dirigido por Jaco Van Dormael. Direção de Fotografia de Christophe Beaucarne. Música Original de Pierre van Dormael. Produzido por Philippe Godeau. Pan Européenne Production / França | Alemanha | Canadá | Bélgica.
É no mínimo um absurdo classificar Sr. Ninguém (2009) , filme escrito e dirigido por Jaco Van Dormael, como uma ficção científica sobre viagens no tempo, geralmente aqueles que o fazem são os mesmos que acusam o longa de ser confuso e sem sentido. Um outro equívoco recorrente é a classificação da trama como sendo complexa, o que definitivamente ela não é. Caso a proposta do filme seja compreendida ainda no início de seu desenvolvimento, tudo nele se torna mais claro, o que faz com que ele chegue a parecer até simplório em algumas partes. Como nós espectadores temos o mau costume de criticar aquilo que não entendemos, corremos o risco de apontar nele defeitos que ele não tem e com isso acabar negligenciando outros problemas menores, estes reais e perceptíveis em seu desenvolvimento.
Sr. Ninguém é sobre as escolhas que fazemos durante nossa vida e como elas determinam quem na verdade somos, na história contada pelo filme, Nemo (Jared Leto), o personagem central, se encontra em algum lugar no futuro, um tempo em que as pessoas se tornaram imortais e ele é o último ser humano mortal ainda vivo. Através de uma espécie de reality show, as pessoas desta época tentam descobrir quem ele foi quando jovem e o que ele tem para contar sobre uma época em que a vida era tão diferente. Ele, no entanto, não enxerga na própria vida o sentido que os outros buscam nela, ele, apesar de guardar memórias do passado, não sabe dizer quem na verdade é, ele esteve constantemente preso á ideia de a vida era determinada pelas suas próprias ações, o que é uma ideia controversa, uma vez que cada indivíduo está inserido em uma rede complexa e não simples de causas e consequências.
Quando criança, Nemo dizia ter o dom de enxergar o futuro e de esquecer o passado, tal declaração, que ele faz ainda no início do filme, coloca pulgas atrás das orelhas de muita gente, todavia, nela não há nada de sobrenatural, na verdade ela seria, ao meu ver, apenas um fruto de uma fantasia do menino, no entanto, ela é capaz de explicar o modo de vida que ele adotaria da infância ao ocaso de sua existência. Nemo condicionou suas escolhas à crença de que elas eram capazes de impedir coisas que ele imaginava que poderiam vir a acontecer. Por conta disso, só lhe sobrava um único caminho a seguir e isso sequer podia ser chamado de escolha, pois na maior parte das situações ele sequer fazia uma opção, por acreditar que "enquanto não se escolhe tudo permanece possível". Já na velhice, ele não consegue descobrir quem na verdade é, simplesmente porque durante toda a sua vida ele não foi corajoso o suficiente para tomar decisões que o ajudassem a descobrir sua verdadeira identidade.
Toda a narrativa do filme se baseia naquilo que o personagem poderia ter vivenciado caso tivesse feito pequenas e grandes escolhas, por isso vemos situações que parecem se repetir durante o desenvolvimento do longa, porém de uma forma diferente. Aquilo que muita gente confundiu com idas e vindas no tempo são na verdade abstrações da mente do personagem, que tenta imaginar as consequências das escolhas que poderia ter feito e como cada uma delas poderia ter lhe marcado e ajudado a compor aquilo que o diferenciaria como indivíduo. Em cada uma das reconstruções de sua própria vida, Nemo escolhe ficar com um dos pais e não com o outro, casa com uma mulher diferente, tem um emprego diferente e morre de uma forma diferente, porém, em nenhuma delas ele consegue chegar aos 117 anos, idade na qual se encontra ao ensaiar suas reminiscências, mas em todas elas ele é feliz, simplesmente por ter vivido de verdade.
É possível perceber durante todo o filme um toque onírico, que torna cada passagem parecida com algo que poderia ter saído de um sonho, pode-se reparar também que há no longa uma predominância de padrões estéticos que não condizem com a percepção da realidade, tudo é colorido demais, cada coisa está em seu devido lugar e isso reforça a ideia de que o que vemos não são lembranças, não é real, mas tão somente uma construção um tanto romantizada da mente do personagem central. A fotografia confere ao filme um visual belíssimo, que faz jus à intensidade de cada uma de suas temáticas e dos sentimentos experimentados pelo protagonista. A trilha sonora, que conta com nomes como Pixies, Buddy Holly, Ella Fitzgerald, e Eurythmics, é simplesmente maravilhosa, cada uma das canções utilizadas se encaixa perfeitamente com a passagem em que toca, gerando assim alguns momentos sublimes.
Todo o elenco do filme está muito bem, principalmente o Jared Leto, que chama a atenção não só pelas diversas caracterizações de seu personagem, mas também pelas sutis variações na construção do mesmo, que podem ser percebidas em cada uma das memórias/imaginações que compõem a trama. O filme peca pela sua longa duração, que acho desnecessária, uma vez que o essencial da trama caberia em um tempo bem menor, e também pelas variações de ritmo, que ele sofre em algumas passagens, o que chega a prejudicar o impacto provocado por ele, principalmente em seu desfecho. Mas nada disso tira do filme o brilhantismo que ele tem, ele não é uma obra perfeita, mas é sem dúvidas um filme que merece ser visto e acima de tudo refletido.
Sr. Ninguém é no fim das contas uma exaltação humanista à vida e à cada uma das experiências que ela nos oferece, sejam elas boas ou ruins. Ele me fez lembrar de que é melhor assumir as consequências de uma escolha do que permanecer passivo diante dela, afinal, tudo pode até permanecer possível enquanto uma escolha não é feita, mas isso não é uma garantia de que ao menos uma das possibilidades venham a se concretizar de fato e de nada vale uma longa vida não vivida... Assista ao filme! Nunca se esqueça de viver!
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.