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quarta-feira, 24 de agosto de 2022

GAME OF THRONES - A Série

GAME OF THRONES - porque eu não consigo enxergar, para além dos aspectos técnicos, nada de extraordinário na série. 


Nos últimos dias descobri que não só as sobre política envolvem emoções à flor da pele e posições extremas. Discutir Game of Thrones pode ser mais arriscado do que debater se foi ou não golpe. O lado ruim de discussões acaloradas é que nem sempre escutam o que você diz e frequentemente lhe atribuem posições que você não defendeu. 


Pra tentar deixar claro o meu ponto de vista e a leitura que fiz das três temporadas da série que assisti, decidi escrever esta breve análise. Pra começar, preciso deixar claro que não acho a série ruim, longe disso, no tocante aos aspectos técnicos ela é grandiosa. O problema, como defendi desde a minha frustrada tentativa de fazer uma maratona, está no roteiro e na construção dos personagens. 


A trama é desinteressante? Não. Se o fosse a série não teria despertado a curiosidade de tanta gente. O que é necessário analisar é se há de fato valor artístico na construção da narrativa ou se há apenas mero entretenimento. Antes de qualquer consideração, é necessário distinguir arte de entretenimento, a arte pressupõe diálogo entre obra e  expectador, o entretenimento envolve apenas estímulos sensoriais.   


Mas, porque abordar isso? A pretenção artística é atributo necessário para a qualidade de uma obra? Não, a obra deve ser avaliada de acordo com aquilo que ela se propõe a ser. O equívoco talvez esteja no fato de que Games of Thrones é entretenimento, bom entretenimento por sinal, e andou sendo vendido, principalmente pelo público, como obra de arte. E, ao menos nas três temporadas que assisti, não há muito espaço para diálogo. 


A trama de Games of Thrones é simples e superficial, uma falsa noção de complexidade é criada pela presença de um grande número de personagens e de sub-tramas. Tal como num tabuleiro de xadrez, visto por alguém que analisa o jogo sem participar dele, o elemento surpreendente são os movimentos e os seus resultados e não as motivações que os tornaram possíveis. 


Em Games of Thrones a velocidade, advinda da necessidade de manter o expectador médio preso à série, sacrifica qualquer possibilidade de exploração das motivações e das bases subjetivas dos personagens. Desde a primeira temporada, criou-se a ideia de que todos são capazes de tudo, o que elimina a ponderação acerca de cada ato. Um personagem pode ordenar a degola de outro e isso causará surpresa, mas não o tipo de espanto que leva à reflexão, sequer há tempo ou espaço no desenrolar da trama para que o espectador reflita acerca dos estímulos que recebe.


O contexto extremamente adverso no qual a história se desenvolve brutalizou a grande maioria dos personagens, tirando-lhes a humanidade. A perda da humanidade, no entanto, não se dá em um processo, ela ocorre subitamente em alguns casos ou é inata aos personagens em outros, apenas um personagem foge à esta lógica, Tyrion Lannister. Há deste modo uma sujeição da maioria absoluta dos personagem aos mecanismos da narrativa. Abre-se mão daquilo que poderia ser uma base para a complexidade em prol de artifícios, que visam tão somente a produção de estímulos, que têm como fim a fidelização do expectador. 


Nos comentários do post que rendeu a discussão, defendi que, no tocante à construção dos personagens, até mesmo The Walking Dead, série irregular, era superior a GOT. A TWD soube em diversos momentos abrir mão da velocidade e da ação, pra desenvolver melhor as tramas e as relações que se dão entre os personagens. Há, tal como em GOT, uma situação de perda da humanidade, mas aqui ela se dá em um processo, no qual o maior inimigo de cada personagem não é um zumbi que possa estar à espreita, mas ele mesmo. A reflexão acerca de cada ato é o que confere valor artístico à narrativa.


O herói trágico, base de quase tudo que se produziu na literatura e em outras narrativas nos últimos milênios, tinha como principal característica a presença de uma falha de caráter ou pecado que o conduzia à peripécia, que por sua vez lhe levava à desgraça. Este formato funcionou e ainda funciona tão bem porque a simples presença de uma falha ética ou moral torna o personagem mais humano e é a sua reação ou reflexão diante desta falha que lhe torna complexo. Ainda que ele venha a se desumanizar, isso ocorre de forma gradativa, diferente do que ocorre com os outros persongens tidos como secundários, nos quais a superficialidade da construção pode não necessariamente se tornar um problema.


Em GOT não uma moral externa ou uma ética interna que possa servir como mediador de condutas ou base para conflitos internos ou perturbações. A ausência destes reguladores, que não é um defeito em si, torna a grande maioria dos personagens rasos e seus comportamentos previsíveis, ainda que o elemento surpresa esteja presente no efeito de suas ações. Se objetivo da série fosse o de retratar a trajetória de apenas um personagem, Tyrion, talvez o objetivo fosse alcançado com maior sucesso, mas a narrativa aposta na manutenção de diversos núcleos dramáticos, mas sem inserir neles personagens com um mínimo de profundidade.


Outro ponto que merece ser discutido é o suposto pioneirismo da série. A verdade é que não há nada de novo nela. Nem o sexo quase explícito, nem a violência ou a morte de personagens centrais é novidade. Hitchcock matou uma de suas protagonistas antes da metade do filme, isso em 1960. Em 1976, o filme Império dos Sentidos, um clássico de Nagisa Oshima, chocou meio mundo com sequências de sexo real e explícito - a primeira vez que isso acontecia fora de um filme pornô - perto da sequência em que um personagem introduz um ovo cozido na vagina de sua parceira e o come em seguida, as passagens picantes de GOT parecem saídas de programas adolescentes. O fato é que de lá pra cá tudo isso deixou de ser novidade, o mundo é outro, não há mais contestação em mostrar sexo ou violência, apenas uma satisfação dos desejos de uma parcela hipócrita da população que busca na ficção justamente aquilo que condena na vida real. 


Um último ponto que merece menção é a ancoragem da série na obra original, recorrente nos argumentos de quem defende a qualidade de seu roteiro, frequentemente ouve-se a justificativa: "no livro era assim", mas isso não deve ser argumento. Qualquer obra adaptada deve ser completamente independente da obra que a originou, se há uma relação de dependência é porque o processo de adaptação não foi bem sucedido. Não li os livros, mas aparentemente lá os personagens são melhores construídos, há evidentemente a questão do tempo, o ritmo literário abre mais possibilidades de desenvolvimento. Todavia, isso não é justificativa para a notável pressa e superficialidade da trama na série. 


A minha conclusão é a de que GOT pode ser um ótimo entretenimento, com notáveis atributos que justificam o hype criado em torno dela, isso, no entanto, não exclui o fato de que seu roteiro não possui absolutamente nada de extraordinário e seus personagens não passam de peças sujeitas às movimentações que objetivam tão somente levar aos sucessivos plot twists. 


P.S. Um último ponto, prometo: premiação não é sinônimo de qualidade. As entidades que organizam e entregam os prêmios agem seguindo a lógica do mercado e estão sujeitas às politicagens internas, compra de votos e pressões de canais de TV e produtoras. As injustiças não são raras, algumas delas são verdadeiras aberrações (David O. Russel manda lembranças). Isso quer dizer que todos os prêmios recebidos por GOT foram injustos? Absolutamente que não. Quer dizer apenas que tais premiações não devem servir de parâmetro para nada.r


Texto escrito e publicado no Facebook em 24 de agosto de 2017. 

domingo, 14 de agosto de 2022

Linguagem e Revolução em “Duas ou Três Coisas que eu Sei Dela” de Jean-luc Godard


“Os limites da minha linguagem denotam o limite do meu mundo”, disse Wittgenstein em sua primeira obra Tractatus Logico-Philosophicus de 1921. Godard retoma esta reflexão no filme “Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela” (1967), na passagem reproduzida abaixa. Na narração em off, feita pelo próprio Godard, a expansão da consciência é apontada como saída para a limitação imposta pela linguagem. 


Pode-se dizer que o que Godard propõe é uma ruptura com o modelo filosófico proposto pelo Wittgenstein naquela que é conhecida como sua primeira fase (a do Tractatus), e o caminho proposto é o inverso do percorrido pelo filósofo. Se este da um passo além  do paradigma da consciência ao considerar que o limite da linguagem é o limite do mundo do indivíduo, Godard da um passo atrás e conclui o inverso, que o mundo pode ser expandido através da consciência e o caminho para isso seria a subversão da linguagem.


O filme, contudo, não para nas reflexões de cunho ontológico, que encaram a linguagem como mero instrumento de decodificação do mundo, há uma forte crítica política ao capitalismo, à sociedade de consumo e à guerra do Vietnã, temas que podem ser facilmente correlacionados. O capitalismo se fortalece na medida em que impulsiona o consumo enquanto silencia os sistemas dissidentes, a guerra vende produtos, enquanto que outros produtos (como os mass medias) criam a ilusão de que a guerra é necessária e seus absurdos aceitáveis. 


Mas, de que forma as reflexões sobre a linguagem e as críticas políticas se relacionam? Vejamos: A revolução possível (aquela capaz de frear o estágio do capitalismo mostrado no filme) passa pela imaginação de um outro mundo possível, o que, para Godard,só poderia pode ser feito tendo como ponto de partida a subversão da linguagem. Se a linguagem convencional é um mero instrumento limitado pela visão de mundo, a experimentação no campo da linguagem pode revelar outros mundos. 


A metáfora da cidade de Paris, que passava na época por processos de modernização estrutural e por uma expansão tecnológica da industria, remete às teorias estruturalistas, nas imagens que da cidade, que surgem a todo momento na tela, o que se vê é a composição ou revitalização das estruturas sobre as quais está sendo edificado um novo estágio social: Edifícios, vias, pontes, viadutos… todas estas edificações remetem à solidez de uma estrutura social que se encontra ainda em expansão. “Objetos mortos permanecem vivos, pessoas estão frequentemente mortas”, conclui o narrador.


O mundo físico e não sua representação na linguagem é a metáfora porque o fundamento último do modelo de organização social se encontra na própria linguagem. É na linguagem que está a estrutura que precisa ser reconhecida como tal e destruída para abrir caminho para a idealização do novo. Esta seria a revolução possível. Plenamente consciente disso, Godard faz do próprio filme um jogo de metalinguagem: ele aborda a subversão da linguagem como tema ao mesmo tempo em que subverte a linguagem cinematográfica como experimento.


Toda a reflexão, no entanto, não deixa de soar um tanto datada, visto que Godard aparentemente ignora as contribuições do Wittgenstein da segunda fase, que vai muito mais além ao romper com as pressupostos da primeira fase, ao reconhecer o caráter intersubjetivo da linguagem, rompendo, deste modo, em definitivo com o paradigma da consciência. Ao considerar que a linguagem possui caráter intersubjetivo, infere-se que haja um freio social que impede que a linguagem seja desconstruída no âmbito da consciência de um único sujeito (os elementos da linguagem não podem ser simplesmente aquilo que o indivíduo quer que eles sejam). 


A revolução possível, ao contrário do que imaginou Godard, não se efetiva apenas pela ruptura com modelos de linguagem no âmbito da consciência de cada indivíduo. Há toda uma tradição (um chão linguístico) que precisa ser enfrentada coletivamente tendo o reconhecimento da linguagem não apenas como mero instrumento, mas como condição de possibilidade de qualquer compreensão e da própria existência do indivíduo no mundo (como Heidegger bem compreenderia).

A cara do bolsonarismo



O bolsonarismo raiz pra mim tem um rosto. Toda vez que eu penso no quão absurdo é a adesão a um programa baseado em morte e destruição, eu lembro deste rosto. O rosto é de uma pessoa com quem eu convivi boa parte da infância e da adolescência. Tão ou quase tão pobre quanto eu, sem talentos e de cognição rarefeita, ele se acreditava parte de uma elite, exaltava uma suposta ascendência europeia e apontava uma família predominantemente negra, que morava na mesma rua, como a “causadora de todos os problemas do bairro”. 

Tentou diversas vezes o concurso da polícia militar, dizia que queria ser PM pra “botar ordem” no bairro e que quando lá estivesse, pintaria uma suástica na roda da viatura e passaria devagarzinho na ronda pelo morro. Ser o terror de seus iguais para se sentir diferenciado, aquele era o seu delírio de grandeza. Apesar das diversas tentativas, nunca chegou nem perto de passar nos concursos que tentou. O limite de idade ou a exigência de nível superior (o que veio antes) serviu para enterrar o seu propósito, felizmente.

Invejava a vida de um outro vizinho, que aparentava ser boa parte daquilo que ele queria pra si e sabia que jamais conseguiria. O nível da inveja aumentou quando o outro vizinho começou a namorar uma menina de quem ele gostava. Defensor da moral e dos bons costumes, era incapaz de viver o básico daquilo que apregoava, assediava mulheres casadas do baixo naqueles chats dos primórdios da internet usando perfis fakes, perdia o controle de si quando bebia, tirava a roupa em público, e no ápice da paranoia, em uma noite de réveillon, jogou o chevette velho que tinha contra contra pessoas que participavam de uma festa na casa de um vizinho; não chegou a ferir ninguém, saiu ileso.

Frustração, baixa capacidade cognitiva, inveja, machismo, racismo, falso moralismo, delírios de grandeza e propensão para condutas violentas foram os ingredientes que o tornaram um bolsonarista antes do bolsonarismo. O bolsonarismo que sempre foi incapaz de criar qualquer coisa, não criou nem a si mesmo, apenas aproveitou algo que já existia, como idelogia não é algo novo, é algo que sempre esteve aí, e este meu ex-vizinho é a prova disso.

Por todo o tempo que eu convivi com este indivíduo, eu sempre percebia todos os traços repulsivos presentes no comportamento dele como um elemento cômico. E era uma espécie de Cérebro (aquele do desenho Pinky e Cérebro), um mero camundongo de laboratório com pretenções de dominar o mundo, e aquilo pra mim parecia ser muito engraçado. Hoje percebo que eu estava errado, não havia nada de engraçado, camundongos de laboratório dominados pelo ódio podem se tornar um problema quando o número deles se torna demasiadamente grande; e foi o que aconteceu.


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