Sangue Negro (There Will be Blood) - 2007. Escrito e Dirigido por Paul Thomas Anderson, baseado na obra literária de Upton Sinclair. Direção de Fotografia de Robert Elswit. Trilha Sonora Original de Jonny Greenwood. Produzido por Paul Thomas Anderson, Daniel Lupi e JoAnne Sellar. Paramount Vantage, Miramax Films e Ghoulardi Film Company / EUA.
No livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo o economista e jurista alemão Max Weber, tido como um dos fundadores da sociologia, vincula o surgimento do modelo capitalista à doutrina pregada por João Calvino, teólogo cristão que apontou o enriquecimento como uma evidência da graça divina. O lucro, que durante muito tempo trouxera consigo o estigma do pecado, passaria a ser visto, após a reforma protestante, com bons olhos por diversas correntes que acreditavam na doutrina da predestinação, segundo a qual, a prosperidade era a mais notável evidência de que um homem nascera previamente destinado à salvação eterna... Em determinada passagem do livro, Weber ressalta que: "o homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da vida", para ele tal situação "expressa um tipo de sentimento que está intimamente ligado a certas ideias religiosas"... Ao rever Sangue Negro (2009) no último final de semana, pensei que seria interessante analisá-lo à luz de tal filosofia...
A história dos Estados Unidos está diretamente ligada à esta teoria, pode-se dizer que a 'ética protestante' e o 'espírito do capitalismo' são dois dos alicerces mais importantes da formação daquele país. Da abstração filosófica proposta por Max Weber pode-se extrair dois arquétipos, o do homem de negócios sem escrúpulos e o do religioso dogmático. No épico Sangue Negro, o diretor e roteirista Paul Thomas Anderson cria uma situação conflituosa e insere nela um representante de cada um destes arquétipos; o primeiro, o capitalista, ganha expressão na figura do produtor de petróleo Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis), o segundo através do jovem pastor Eli Sunday (Paul Dano). Ambos representam de igual forma a distorção da moral constituída e das virtudes que deveriam resultar do comportamento ético de cada indivíduo; numa perspectiva mais ampla eles representariam o próprio Estados Unidos e a degradação da consciência coletiva de seu povo, degradação esta que imputaria ao país um alto preço.
A primeira sequência de Sangue Negro mostra Daniel Plainview escavando sozinho um poço de petróleo (estamos em 1898), ele sofre um acidente durante a perfuração e com muito esforço consegue se safar da situação em se metera - esta sequência é de estrema importância para o filme. A segunda passagem, que acontece alguns anos depois, já mostra Plainview trabalhando com alguns empregados na perfuração de um outro poço (estamos em 1902), é notável que ele alcançou um relativo sucesso profissional nos anos que se passaram desde o evento mostrado nas primeiras cenas, além de ter diversos homens debaixo de sua autoridade, ele agora já tem uma estrutura mais avançada para extrair o petróleo. Nesta segunda sequência um novo acidente acontece e um homem acaba morrendo, Daniel então assume a responsabilidade pela criação do filho ainda bebê que o infeliz deixou...
Mais um avanço no tempo (estamos agora em 1911) e desta vez vemos Plainview em uma conferência com donos de terras, ele está lhes oferecendo uma parceria, um comodato para a extração de petróleo em suas propriedades. Neste ponto da história Daniel já tem uma grande companhia de perfuração e seu poder já está consolidado, no entanto ele quer mais... Ele, que é dono de uma excelente oratória, passa a usar o filho adotivo, H. W. (Dillon Freasier), para facilitar suas transações negociais, a presença do garoto nos momentos em que ele fecha seus contratos reforça a imagem de 'empresa familiar', que ele usa para dar credibilidade à sua companhia...
O conflito dramático que sustenta o filme surge no momento em que um jovem vindo de outro estado, Paul Sunday (também vivido por Paul Dano), procura Daniel para lhe recomendar a compra de uma propriedade rural, que pertence à sua família. Estas terras estariam, segundo ele, em uma região onde o petróleo é tão abundante que brota naturalmente do chão. Mesmo desconfiado, Daniel paga uma grande quantia em dinheiro para Paul, como recompensa pela informação privilegiada que este lhe dera.
Plainview parte junto com H. W. em uma expedição para conhecer a região onde a propriedade estava localizada, chegando lá ele se passa por um caçador de codornas para ganhar a confiança da família do rapaz e assim poder comprar as terras por um preço bem abaixo do que elas de fato valeriam. Mais uma vez a presença do menino dá credibilidade ao discurso que ele faz, o patriarca da família Sunday acada caindo fácil em sua lábia. No entanto, Eli Sunday, irmão gêmeo de Paul, não é tão ingênuo quanto o restante de sua casa, ele intervém na negociação que o pai estava fazendo e consegue fechar a venda por um valor bem mais alto do que aquele que fora inicialmente proposto.
Ao comprovar suas expectativas em relação à abundância de petróleo na região, Daniel decide comprar também as propriedades da vizinhança, é então que seus interesses começam a entram em conflito com os de Eli Sunday... Eli, apesar de jovem, é um respeitado líder religioso, através de seus sermões ele exerce uma grande influência sobre a população local, todavia, com a chegada de Plainview, ele percebe que o controle que detém sobre aquelas pessoas simplórias pode estar com os dias contados. O que se dá a partir de então é um verdadeiro embate para ver quem é capaz de exercer maior influência e de deter o maior poder. Para ambos o enriquecimento se torna a principal meta a ser alcançada e para consegui-lo eles passarão por cima de tudo, inclusive de seus próprios princípios e de suas próprias dignidades.
Apesar de serem personagens antagônicos, Eli e Daniel não são tão diferentes entre si, eles são regidos por um mesmo código moral e por uma mesma determinação. A sede de poder, que ambos detêm, os conduzirão no decorrer do filme à situações nas quais eles se verão diante de contundentes dilemas morais e éticos. Como eu já havia dito, estes dois personagens representam arquétipos que podem ser facilmente associados à formação dos Estados Unidos como nação, a teoria weberiana, que associa o capitalismo à doutrina protestante da predestinação, aproxima ainda mais o comportamento social dos dois. À luz de tal pensamento, compreendemos que os comportamentos de Eli e de Daniel podem constituir um fato social resultante dos princípios que norteiam a sociedade na qual eles estão inseridos.
Paul Thomas Anderson incluiu a primeira sequência no filme para nos mostrar que Daniel Plainview é um típico self made man, ele começou do nada e construiu seu império sozinho, sua condição de 'vencedor' o torna uma pessoa agraciada segundo a ótica da doutrina de João Calvino e admirável de acordo com o 'espírito capitalista'. Max Weber, recorrendo às ideias do escritor puritano Richard Baxter, escreve : "De fato, se Deus, cujas mãos os puritanos viam em todas as ocorrências da vida, aponta para um de Seus eleitos uma oportunidade de lucro, este deve segui-la com um propósito, de modo que um cristão de fé deve atender a tal chamado tirando proveito da oportunidade". De acordo com este pensamento, Daniel seria um exemplo vivo de cristandade e sua prosperidade comprovaria que ele é um dos predestinados à salvação. Irônico não?
Eli Sunday, por sua vez, é tão capitalista e ambicioso quanto o explorador de petróleo, a fantasia de espiritualidade que ele veste esconde sua verdadeira pretensão, o acúmulo de bens materiais. Em determinada passagem ele tenta extorquir dinheiro de Daniel para reformas em sua igreja, à primeira vista esta parece ser uma boa intenção, mas ela não é, o que o jovem pastor quer realmente é dinheiro e poder; ele espera que ao fortalecer sua igreja, como instituição, ele também será forte. Na história o comportamento dele é tido como um exemplo de retidão e não é por acaso que ele consegue exercer um influência tão forte na população local, suas atitudes são condizentes com a doutrina que aponta a prosperidade como evidência da graça divina. Eli é portanto um capitalista nato, ele é dominado pelo dinheiro e suas atitudes são guiadas pela sua ambição.
As personalidades de Daniel e de Eli acabam se confundindo quando observadas a partir desta ótica e é nesta simples constatação que está uma das sacadas geniais do roteiro do filme. Tomando-se como base os princípios morais, pelos quais os dois personagens são guiados, nenhum deles pode ser considerado um vilão, apesar de suas atitudes serem potencialmente reprováveis. A complexidade do comportamento de ambos nos instiga à reflexão, reflexão esta que me levou à questão dos arquétipos que mencionei no início desta resenha, se o explorador de petróleo e o pastor são representes de aspectos da formação cultural dos Estados Unidos, há portanto no filme uma contundente crítica ao american way of life, o que fica evidente na progressiva decadência moral e ética que os personagens experimentam. Não é a toa que o desfecho do filme acontece durante um período da história americana que ficaria marcado pela queda da bolsa de Nova Iorque... Concluo portanto que o filme é uma contundente crítica aos Estados Unidos e à moral que os guia como nação desde que se tornaram independentes.
A grandiosidade artística de Sangue Negro, no entanto, não se deve apenas à complexidade de seu roteiro e às diversas reflexões e interpretações que ele evoca, ela se deve também a cada um dos aspectos técnicos, que o compõem em sua totalidade de uma forma tão impecável. A trilha sonora original, composta pelo Jonny Greenwood (guitarrista do Radiohead), é soberba, ela pontua cada momento de tensão do filme e ainda acentua em diversos momentos a confusão psicológica e os conflitos do personagem central.
A fotografia é simplesmente um deleite para os olhos, ainda que fosse apenas uma sequência aleatória de imagens o filme mereceria ser visto, tamanha beleza de cada um de seus enquadramentos (que nos remetem à estética dos westerns clássicos) e o mais interessante e importante é que a fotografia não é tão somente um embelezamento, ela funciona perfeitamente como um dos principais elementos da narrativa. A reconstrução de época que Sangue Negro faz também é perfeita, com destaque para os figurinos, cenários e para a excelente direção de arte.
Todo o elenco do filme está muito bem, o jovem Paul Dano está ótimo em seu personagem, no entanto o maior destaque, não só dentre as atuações, mas de de todo o filme, é o desempenho de Daniel Day-Lewis, ele está formidável, transbordando verdade em cada gesto, olhar e palavra, chega a ser assustador contemplá-lo em um de seus rompantes de raiva e violência, definitivamente ele não é um ator, é um monstro! Sem medo de estar exagerando, afirmo que Sangue Negro está à altura de alguns dos maiores clássicos da história da sétima arte e é sem dúvidas um dos filmes mais bem realizados de nosso tempo, obrigatório para qualquer um que se disser cinéfilo. Ultra recomendado!
Sangue Negro ganhou o Oscar nas categorias de Melhor Ator (Daniel Day-Lewis) e Melhor Fotografia, tendo sido indicado também aos prêmios de Melhor Filme, Diretor, Direção de Arte, Roteiro Adaptado, Montagem e Edição de Som. No Globo de Ouro ele venceu na categoria de Melhor Ator em um Filme de Drama (Daniel Day-Lewis), além recebido uma indicação na de Melhor Filme de Drama.
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A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra,