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sexta-feira, 29 de junho de 2012

As Bicicletas de Belleville

As Bicicletas de Belleville (Les triplettes de Belleville) - 2003. Escrito e Dirigido por Sylvain Chomet. Música Original de Benoît Charest. Produzido por Didier Brunner e Viviane Vanfleteren. Les Armateurs, Production Champion, Vivi Film, France 3 Cinéma e Rija Films / França | Bélgica | Canadá | UK | Letonia.


A belíssima animação As Bicicletas de Belleville (2003pode ser vista de duas formas diferentes, ou como uma dramédia simplória e repleta de gags visuais ou como filme denso, complexo e cheio de significados não tão aparentes; isto, obviamente, dependerá de cada espectador, da bagagem que este trouxer consigo e do nível de atenção dedicado às mensagens não verbais, tão bem exploradas pelo diretor e roteirista Sylvain Chomet. O primeiro aspecto do filme que nos enche os olhos é o seu visual, nele tanto os personagens, quanto os cenários e objetos adquirem formas desproporcionais e bizarras, no entanto cada quadro é composto com um equilíbrio de cores tão bonito, que a desproporção não chega a nos causar tanto estranhamento, ainda que ela torne esta animação tão diferente das convencionais.

O filme conta a história de Champion, um menino tristonho que mora com a avó, a Madame Souza, em uma cidade que está localizada em algum lugar do interior da França. Percebendo a melancolia do neto, a avó tenta lhe agradar, lhe dando um filhote de cachorro, mas o mimo pouco adianta, o moleque só se anima de verdade depois de ganhar um segundo presente, uma bicicleta. A partir daí ele não desgruda mais do veículo, pedalar lhe traz uma satisfação que aparentemente ele não sentia já há muito tempo. Percebendo a aptidão do menino para o ciclismo a avó passa a lhe incentivar à prática do esporte... O tempo passa, a avó envelhece, o cachorro cresce (e muito) e o menino se torna adulto, mas a sua paixão pelo ciclismo permanece, bem como a vigilância da  Madame, que dá asas ao sonho que ele tem, de um dia se tornar um atleta vencedor.


Já adulto, Champion tem a grande oportunidade de realizar aquela que sempre foi a sua grande ambição, ser um esportista vitorioso, ele se inscreve para o Tour de France, uma das mais famosas competições de ciclismo do mundo, a sua avó lhe dá todo o apoio e durante a prova ela e o seu cachorro, a quem deram o nome de Bruno, o seguem de perto em um furgão ambulância. Apesar da dedicação e do treino árduo, Champion não consegue terminar o percurso, bandidos o sequestram junto com dois outros competidos e logo após o término da corrida eles são colocados em um navio e levados para uma grande metrópole que fica do outro lado do oceano. A  Madame Souza e o cachorro Bruno partem em uma jornada para resgatar o atleta e esta viagem os leva a Belleville, um lugar caótico e medonho, povoado por pessoas frias e de comportamentos reprováveis.


Em sua trama, As Bicicletas de Belleville tece uma contundente crítica à sociedade de consumo e aos valores que a sustentam. A metrópole mostrada no filme funciona como uma alegoria do mundo pós-moderno, nela e em seus habitantes é possível perceber representações de costumes e comportamentos típicos de nossa sociedade, dentre eles a ganância, o apego aos bens materiais e a falta do amor fraternal. A cidade de Belleville não possui o tom monocórdico de cinza que caracteriza os grandes centros urbanos, em seu lugar surge uma tonalidade amarelada, que nos remete à ferrugem, o visual composto por tal cromatização reforça a percepção do mecanicismo e da ausência de vida daquele lugar.


O filme chega a ser fatalista e um tanto pessimista ao abordar a questão do decorrer do tempo, numa de suas primeiras sequências, a que mostra a avançar dos anos da infância até a fase adulta de Champion, percebemos através da mudança num determinado cenário que o mundo caminha para uma situação cada vez pior, aquele cenário vai se tornando progressivamente mais descolorido e sombrio, até que um ambiente antes aconchegante se torna então opressivo e claustrofóbico. A ideia que o filme nos passa é a de que a sociedade está 'envelhecida', ou seja, o mundo já não funciona mais, aquilo que era natural fora substituído por uma estrutura artificial, que logo se desgastou.


No filme, a adoção de um estilo de vida não natural favorece a alta incidência de obesidade, que é uma característica comum a quase todos os personagens (inclusive o cachorro), não por acaso, Champion e outros ciclistas são alguns dentre os poucos personagens magros, pois ao contrário dos demais eles têm uma motivação que os tira do estado vegetativo, no entanto isto não os realiza e é aí que chegamos à uma das interpretações mais interessantes da obra: Champion também era obeso quando criança, a prática do ciclismo lhe dá já na vida adulta um outro porte físico, no entanto a alegria que ele experimentara ao ganhar a bicicleta desaparece à medida que o esporte deixa de ser uma diversão para se tornar apenas uma busca por títulos. O prazer primário, simples em sua essência, cede então lugar à competitividade, que desumaniza o personagem e suas atitudes - Esta é uma evidente crítica ao triunfalismo, que é apontado como um dos únicos caminhos que a sociedade oferece como alternativa para o estado vegetativo.


Há também na animação diversos elementos metalinguísticos, que são explorados através de referências à própria sétima arte, tais referências podem ser percebidas na sequência inicial, que remete à estética do cinema mudo, nas citações diretas a outros filmes (através por exemplo de cartazes que aparecem em determinados momentos e de rápidas sequências em live-action) e até mesmo através de anedotas visuais, como a que é percebida numa curta passagem que mostra um amontoado de prédios de Belleville, que formam uma imagem que lembra um castelo, com explosões acontecendo ao fundo; está sequência é uma referência quase óbvia à uma das vinhetas mais clássicas da Disney, que também mostra um castelo com fogos de artifício ao fundo... Já a aparência grotesca dos personagens e o forte viés fantástico da história, me lembram a estética felliniana, que também fora marcada pela reprodução de uma realidade grotesca com contornos oníricos.


No início desta resenha eu comentei que o filme poderia ser visto de duas formas diferentes, volto ao assunto para concluir que a percepção e consequente avaliação que tivermos e fizermos dele dependerão da forma com que cada um o assistir. Sendo assim, a minha dica é a de que se você prefere filmes leves e de fácil assimilação esqueça os significados e mensagens implícitas e aproveite o visual belo e o viés cômico da animação, pois ela funciona muito bem de tal forma. Mas, se você valoriza um roteiro crítico e inteligente, As Bicicletas de Belleville funcionará ainda melhor, pois a sátira social e a ironia (nem sempre politicamente corretas) são na minha opinião os seus grandes trunfos. Recomendo!

As Bicicletas de Belleville recebeu indicações ao Oscar nas categorias de Melhor Animação e Melhor Canção Original.

Assistam ao trailer de As Bicicletas de Belleville no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

25 comentários:

  1. Essa é uma animação cabeça né Brunão!
    Um amigo me trouxe esse dvd, eu assisti, mas minha esposa detestou e foi dormir. Hahahahahaha, mas eu adorei e fiquei com esse filme alguns dias na cabeça!

    Mais uma bela resenha amigo!

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    1. Fica mesmo André, principalmente porquê ele não é mesmo um filme fácil, ele é pesado e melancólico o que faz com que a maioria das pessoas se distanciem...

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  2. Bruno,

    Tudo bem? Esse filme é tudo isso que você diz e prefiro olhar ele como "complexo e cheio de significados", pois ele fala de amor, esperança, medo, ambição, egoísmo, indiferença e outros sentimentos que nos coloca em uma condição de humanos imperfeitos. Muito bom!

    Beijos.

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    1. Eu também prefiro ver ele em toda sua complexidade, pois ela que o torna, ao meu ver uma obra prima do gênero...

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  3. Bruno, sinceramente fiquei dooooido para ver esse filme. Adoro esse tipo de longa. Vou procurar imediatamente assisti-lo!

    http://monteolimpoblog.blogspot.com.br/

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  4. gostei mesmo deste texto José.... conseguiu me deixar muito curioso para assistir ao filme. abraço.

    leituradecinema.blogspot.com.br

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    1. Que bom Matheus, assista a ele sim, já estou curioso para saber o que você achará dele!

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  5. Boa tarde, Bruno.
    Eu curto bastante desenhos animados com uma pegada mais adulta, e este é um que quero muito assistir, assim como O Mágico e O Segredo de Kels.
    Infelizmente, um traço comum do mundo atual é substituirmos o prazer pela competição, o que nada traz de bom.
    Abraço, Bruno.

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    1. Eu também quero assistir "O Mágico" Jacques, ele já está na minha lista há algum tempo.

      O fato de o filme funcionar como um retrato metafórico do mundo atual é um de seus melhores aspectos!

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  6. Esse filme está na minha lista há algum tempo, mas sempre o deixo para ver depois. Logo pretendo vê-lo, decerto parece bom.

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    1. Já tinha bastante tempo que eu estava com ele e só então decidi vê-lo e não me arrependi, faça o mesmo Luís!

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  7. Bruninho,
    não assisti a este, mas já ouvi falar nessa animação, cujo roteiro me pareceu muito interessante, e agora me lembrando de qualquer coisa que li na época por meio do teu texto, se tornou novamente interessante e me parece imperdível mesmo. E só a Tour de France já seria grande motivação para isso :)
    Beijos!

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    1. Cissa, você precisa assisti-lo, tenho certeza de que você irá gostar!

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  8. Amo essa animação. Tem poesia, sinceridade e romantismo, na minha visão.

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    1. É o tipo de filme que aflora nossa sensibilidade, ainda que de uma forma não tão agradável, é poesia pura...

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  9. Excelente resenha, Bruno.
    Este filme me parece interessante da forma como você mencionou.
    Nunca tinha ouvido falar dele antes. Mais uma dica sua que vai pra minha listinha, ehehehhehe

    Beijão!
    Cléo - Acesse o blog Vejo Por Aí... Onde o útil, o fútil e o inútil se encontram.

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    1. Tente assisti-lo Cléo e me conte depois o que você achou!

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  10. Este filme é mesmo um achado. Vi sem muitas expectativas, mas me surpreendi demais. Desde o visual lindo até o roteiro, tudo redondo. Gostei muito das suas interpretações acerca do longa! E O Mágico, gosta? Eu acho muito bacana também, e uma grande homenagem ao Jacques Tati.

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    1. Júlio, ainda não assisti "O Mágico" e não conheço praticamente nada ada filmografia do Jacques Tati, o pouco que conheço dele veio de leituras sobre suas obras e não filmes em si. Pretendo ver "O Mágico" em breve!

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  11. Sabe que não tinha parado para observar a obesidade como vc comentou no filme?! Muito interessante mesmo..
    O filme é de um trabalho gráfico maravilhoso... Um pouco fatalista, como vc mesmo disse, mas, como é num tom adulto combina!

    ;D

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    1. O trabalho gráfico do filme é impressionante, acho muito interessante como ele usa técnicas diferentes, mas sem perder a identidade visual...

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  12. Otimo filme! - Marcio Silva de Almeida

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  13. Gostei muito de sua visão do filme, Bruno. Nela, por meio de suas palavras, pudi revisitar os sentimentos conscientes e sensações do inconsciente experimentados quando assisti ao filme. Assistirei novamente para confronta-los! Obrigada.

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