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terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

A lógica do trabalho em uma sociedade capitalista nas canções “Cotidiano” e “Valsinha” de Chico Buarque

Mais uma madrugada insone e eis que me pego refletindo novamente sobre canções do Chico Buarque, mas desta vez não é sobre “Com Açúcar e com Afeto”, objeto da polêmica dos últimos dias, mas sobre outras canções que trazem, igualmente, impregnado em si o peso do tempo no qual foram compostas. “Cotidiano” é uma outra canção na qual o Chico, como autor, adota a posição de um cronista; nela, o personagem narrador descreve o seu cotidiano e a presença da esposa em momentos diversos de seu dia, o café da manhã, o intervalo para o almoço, a chegada em casa no fim da tarde até as juras de amor eterno da esposa antes de dormir.

Na estória contatada, o homem que sai para o trabalho, enquanto a mulher fica em casa, o que aponta para a lógica predominante em um período em que a mulher ainda possuía pouca inserção no mercado de trabalho para além de empregos domésticos e outros cuja visão machista considerava (e ainda considera) inapropriados para homens. É evidentemente um contexto machista, mas, vale lembrar, toda obra é fruto de seu tempo. Compreender a obra tão somente por este aspecto talvez seja um reducionismo, há algo mais profundo ali, há uma crítica à lógica do trabalho em um modelo de sociedade capitalista e à forma com que ela mecaniza as relações.

O tom crítico está nas entrelinhas, as expressões  “todo dia” e “toda noite” indicam a repetição de uma rotina na qual os personagens estão aprisionados. A noção de prisão pode parecer exagerada, mas ela fica evidente na estrofe que fala do intervalo para o almoço: “todo dia eu só penso em poder parar, meio-dia eu só penso em dizer não, depois penso na vida pra levar, e me calo com a boca de feijão”. O personagem pensa em romper com a rotina, mas desiste porque há a “vida pra levar”, reparem que não é uma vida pra ser vivida, é uma vida pra ser levada, como se o sentido estivesse apenas em empurrar a passagem dos dias.

A introdução da musica, os primeiros 12 segundos, sempre me intrigou pois ela destoa do restante, ela me soa como algo que evoca fim, um final triste, opressivo. Mas, ela está no início, é como se o fim fosse o começo, o que já evoca a ideia de repetição. Há, após a introdução, uma rápida marcação de tempo mais lento na bateria, que, já na sequência dá lugar a um toque mais rápido.  É o ato de acordar descrito apenas pelo ritmo da bateria, de súbito se passa para de um ritmo lento para um mais rápido, como se o sujeito já acordasse em um ritmo frenético, correndo contra o tempo, a marcação se assemelha a um tic tac acelerado de relógio, que denota urgência. A cada final de estrofe há uma nova marcação que se assemelha a uma campainha, que indica tempo esgotado. É o dia, deste o seu primeiro minuto, pautado pela lógica do trabalho.

A repetição e a urgência tiram o sentido de tudo, todo dia a mulher diz para o marido se cuidar e “essas coisas que diz toda mulher”, seis da tarde ela o espera no portão “como era de esperar”, na hora de dormir a mulher pede para o marido não se afastar (mas ele já está complemente afastado, alienado), neste pedido está a tentativa dela de romper com a rotina, ela o abraça, ele sente sufocado pelo abraço, mas não faz nada. A marcação que remete ao som de uma campainha interrompe e a rotina recomeça. Não por acaso, a introdução da música evoca fim, talvez morte, algo ali já está morto e reagindo apenas de forma automática.

Algo interessante é que não é apenas o marido que é afetado pela lógica do trabalho, a esposa também é, a mesma lógica está reproduzida também no trabalho doméstico, a mesma prisão, o mesmo sistema de opressão, com o qual nem ele nem ela conseguem romper. Ao menos não nesta canção. 

Não sei se alguém já estabeleceu uma relação entre as duas canções, mas vejo “Valsinha”, também do Chico, como uma continuação de “Cotidiano” (ambas estão no álbum “Construção” de 1971). Esta outra canção também não escapa do peso do tempo, ela também reflete, como crônica, características de um momento histórico no qual situações de machismo eram pouco problematizadas e portando normalizadas. Este tipo de leitura crítica precisa ser feita, contudo, não precisa ser vista como a única leitura possível.

Em “Valsinha” há a ruptura com a lógica do trabalho que não vemos acontecer em “Cotidiano”. A narrativa já começa com a chegada do marido em casa (gosto de imaginar que os persongens das duas canções são os mesmos), porém neste dia ele chega diferente, olha a esposa de uma forma diferente e a convida para dançar. A esposa então se “faz bonita, como há muito tempo não queria ousar”. Aqui duas leituras é possível, uma machista segundo a qual a esposa se produziu para agradar o marido e outra segundo a qual ela se produziu para si mesma, o restante da música aponta para a segunda opção, explicarei.

A ousadia do gesto à qual a letra faz referência não é uma ousadia perante o marido, mas sim perante à lógica à qual ambos estavam até então inseridos. Aqui há uma transferência de lógica do individual para o coletivo e isso fica evidente na letra. O caso vai para a praça da cidade e ali começam a se abraçar, a vizinhança desperta, a felicidade deles ilumina a cidade toda. Nos últimos versos o narrador, que não é um dos personagens, afirma que o “o mundo compreendeu e o dia amanheceu em paz”. O que havia para ser compreendido? Aqui há uma margem enorme para interpretação, mas, eu prefiro retomar a noção que já havia sido explorada em “Cotidiano”, a de que a repetição e a perda do sentidos das coisas é uma consequência da lógica do trabalho em uma sociedade capitalista.

Em “Valsinha” é esta lógica que é rompida, há uma quebra no cotidiano opressivo e o ato de ir para a praça pública no meio da noite é uma metáfora de um romper de uma prisão. A cidade acorda, se ilumina, e compreende que a logica pode ser rompida. O amanhecer em paz é o oposto do amanhecer descrito em “Cotidiano”. Reparem que não há uma ruptura com o capitalismo como modelo de organização social, mas há, por algum momento talvez, uma ruptura com a lógica decorrente deste modelo: a de que somos meros instrumentos de produção e circulação de capital e, como tal precisamos estar sempre prontos para sermos usados, o que acaba por sujeitar tudo, da alimentação ao sono, ao mero utilitarismo. O ato de fazer algo que aparenta não ter utilidade alguma rompe com esta lógica.

E você, o que acha, canções como “Cotidiano” e “Valsinha” ficaram datadas ou têm ainda algo a nos dizer?





Um comentário:

  1. Adorei o texto!! Legal sua preocupação de fazer uma leitura das músicas sem cair nos clichês de sempre. Me considero uma mulher feminista, mas vejo essas músicas mais como uma crítica do período em que foram compostas bem como do sistema em que estamos inseridos até hoje do que letras pura e simplesmente machistas. Chico sabia aprofundar como ninguém sua visão da vida e da sociedade.

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