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sexta-feira, 6 de maio de 2022

Linguagem e Poder


Língua e linguagem não são imutáveis, são construções sociais, sujeitas a mudanças e principalmente capazes de reproduzir os jogos de poder. Língua e linguagem podem ser instrumentos de exclusão e de dominação, há uma vastíssima bibliografia sobre isso. Todo língua é viva, tão viva que pode morrer, o latim é considerado uma língua morta, umas dentre tantas que ruíram junto com verdadeiros impérios, o que deixa evidente a relação entre língua/linguagem e poder. Enquanto viva a língua se transforma, “vossa mercê” se torna “você”, que se torna “vc”.

Há uma tentativa de reduzir a linguagem às normas gramáticas que regulamentam o uso formal do idioma, que na prática pouco ou quase nunca ocorre. É nestas normas gramaticais que aqueles que temem transformações sociais se apegam quando determinado uso da língua é apontado como capaz de validar um mecanismo de dominação, eles se esquecem, no entanto, que, ainda que de forma mais lenta, a norma culta também muda. O Brasil, vale lembrar, passou por reformas ortográficas internas em 1943 e 1971, e em 1990 assinou o acordo ortográfico que visava uniformizar o uso gramatical do português em todos os países que o têm como língua principal (até o momento apenas Brasil e Portugal colocaram o acordo em prática). 

O problema, contudo, é que a coletividade tende a aceitar melhor a imposição de determinado uso como norma culta quando este é posto por setores dominantes da sociedade, ainda que não façam sentido algum. Somos até mesmo capazes de aceitar que há alguma razão para a existência de vários tipos de porquês (junto, separado, acentuado e não acentuado), mas, tendemos a repudiar quando a forma adversa da linguagem (adversa no sentido de oposição mesmo) vem como resposta de setores tradicionalmente dominados.

Quando determinado grupo alerta sobre a carga pejorativa que determinados termos trazem (como no caso de “índios”, termo que deve ser substituído por “povos indígenas” ou “povos originários” ou “escravos”, que deve ser substituído por “escravizados”), a reação primeira de grande parte das pessoas é a de dizer que “este politicamente correto tá ficando muito chato”, “isso são só besteiras” ou que “não tem nada de errado porque todo mundo sempre falou assim”. Todavia, vale recordar: (1) rever posturas sempre será algo “chato” pra quem está apegado aos próprios erros; (2) não são só “besteiras”, são maneiras de exercício de poder que precisam ser confrontadas; (3) não foi sempre assim e não precisa continuar sendo porque a língua é vida. 

Outros poderiam dizer ainda que está em curso uma tentativa de politizar tudo, contudo, não é difícil compreender que tudo aquilo que afeta de algum modo a vida social é em sua essência um ato político, seja de contestação ou de conformação ao poder (ou aos poderes) estabelecido. O uso que fazemos da língua é político, sempre foi assim, ele confere e restringe acessos, reforça ou destrói pressupostos, valida ou desconstrói determinado sistema de dominação. 

A linguagem é, recorrendo a Heidegger e Gadamer, condição de possibilidade para se chegar a aquilo que é, deixando de lado aquilo que aparenta ser. Para se compreender o sistema de dominação como um todo é necessário “revolver o chão linguístico no qual está assentada determinada tradição”, ou em outras palavras é necessário mostrar aquilo que a linguagem está sendo usada para encobrir, pois o exercício do poder consiste justamente na substituição do que é, pelo que aparenta ser, ou vice versa.

No exercício de revolver o chão linguístico se descobre que encoberto pela tradição (o “isso sempre foi assim”) estão questões raciais, de classe e de gênero, que não precisam ser perpetuadas. Tanto o poder de outrora quanto o de hoje precisam ser confrontados para que tais questões deixem de ser instrumentos de dominação e esse confronto passa, necessariamente, pela linguagem.


Imagem ilustrativa encontrada AQUI

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