A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen) - 2006. Escrito e dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck. Direção de Fotografia de Hagen Bogdanski. Música Original de Stéphane Moucha e Gabriel Yared. Produzido por Florian Henckel von Donnersmarck, Quirin Berg, Dirk Hamm e Max Wiedemann. Wiedemann & Berg Filmproduktion / Alemanha.
Hauptmann Gerd Wiesler (Ulrich Mühe), o personagem central de A Vida dos Outros (2006), é um respeitado agente do serviço secreto da extinta República Democrática Alemã (a parte socialista do país que deixou de existir em 1990 com a reunificação), a ele é dada a missão de espionar Georg Dreyman (Sebastian Koch), um dramaturgo que vinha conquistando um considerável sucesso com suas peças humanistas , que começavam a chamar a atenção do público na parte ocidental do país. O temor de que ele poderia estar militando contro os 'camaradas' justifica a colocação de grampos e escutas em todo o seu apartamento do escritor, no entanto a questão em torno de sua fidelidade aos ideias socialistas não era a verdadeira causa da invasão de sua privacidade; Bruno Hempf (Thomas Thieme), o ministro da cultura, tinha motivações pessoais para tirá-lo de cena e estas motivações envolviam a bela Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), sua namorada e atriz principal de sua peça mais recente.
Ao contrário do que possa parecer à princípio, A Vida dos Outros não é tão somente um filme de cunho político sobre espionagem, sua principal temática é a meu ver a invasão de privacidade e o fascínio que por vezes alimentamos quando contemplamos o sucesso alheio. Na trama, Hauptmann se deixa ser contagiado pelo estilo de vida que Georg adota e esta admiração coloca em cheque todas as suas convicções, levando-o a repensar, à luz da ética, sua própria postura diante dos mandos e desmandos do regime. Os efeitos do fascínio despertado podem ser observado na sutil mudança de comportamento do espião, ele chega ao ponto de tomar para si um livro do Bertolt Brecht, que Georg ganhara de aniversário, a leitura da obra é uma das formas que ele encontra para entrar em um mundo que era, até então, totalmente desconhecido para ele. Em outra passagem, ele contrata uma prostituta logo depois de notar, pela escuta, que o escritor estava transando com a namorada, obviamente ele não alcança em sua rápida aventura sexual aquilo que esperava encontrar...
O distorcido processo de identificação retratado pelo filme, no qual o agente passa a ver na vida do dramaturgo um ideal de felicidade e prazer a ser alcançado, é similar aquele observado no efeito provocado pelos reality shows e até mesmo na observação da vida alheia, que comumente fazemos através da redes sociais. Tendemos a acreditar que a grama do vizinho é sempre mais verde e que a felicidade dos outros é sempre mais duradoura e consistente do que a nossa, é de tal idealização que nasce o fascínio pelo qual o espião é tomado. O roteiro salienta em determinados momentos a frustração que Hauptmann experimenta ao descobrir que a vida daqueles a quem ele observa não é tão perfeita quanto o imaginado... Ao descobrir a fragilidade de sua idealização, ele começa a fazer de tudo para mantê-la firme, como se dependesse dela para ter algo em que se apagar, isso lhe tira da condição de mero espectador, o que ocorre no momento em que ele passa a intervir na vida daqueles a quem, até então, só observava.
A Vida dos Outros chama a atenção para fragilidade e superficialidade das impressões que temos quando contemplamos a vida de outrem. A trama traça um interessante paralelo entre a atividade do espião e o teatro, não por acaso, dois dos personagens centrais aparecem pela primeira durante a apresentação de uma peça. Bertolt Brecht chegou a militar contra o tipo de produção teatral no qual o público era apenas mero espectador, para ele a platéia precisava interagir com o que estava sendo apresentado, ao ponto de se tornar coautora da obra; no filme, Hauptmann decida intervir na vida de Georg e Christa-Maria justamente depois de ler a obra Brecht, que roubara da casa suposto subversivo. Ao transcender sua condição inicial, que era caracterizada apenas pelo fascínio crescente, o agente consegue finalmente encontrar a si mesmo, comprovando a teoria defendida na peça de Georg (cuja encenação é retratada, em parte, em uma das primeiras sequências do filme): a de que as pessoas mudam...
É difícil imaginar que Florian Henckel von Donnersmarck é o mesmo cineasta que dirigiu O Turista (2010), filme que recebeu inúmeras críticas negativas, pois o seu desempenho em A Vida dos Outros, tanto como diretor quanto como roteirista, é digno dos mais sinceros elogios. O cuidado com a composição de cada sequência pode ser percebido na escolha dos enquadramentos e nos movimentos de câmera sutis, elementos estes que ajudam a despertar em nós espectadores o mesmo fascínio que Hauptmann experimenta. Outros detalhes sutis tornam a narrativa ainda mais rica, como por exemplo a lógica de algumas situações que se repetem no decorrer do filme, como nas duas sequências que mostram Christa-Maria tomando banho no apartamento do namorado, há um elemento da narrativa que liga os dois momentos em que isso acontece e perceber este elemento nos ajuda a compreender a complexidade da personagem e qual seria a motivação de algumas das decisões que ela toma no decorrer da história.
Ulrich Mühe, que morreria pouco tempo depois da conclusão do filme, constrói aquele que talvez seja o personagem mais humano da trama, a composição de seu Hauptmann salienta a frustração e o sentimento de não realização, que o caracterizam desde o início do filme, tudo isso é muito bem trabalhado por ele através do tom de voz manso e dos olhares melancólicos, que evocam num segundo momento a insatisfação que ele sente em relação ao regime, à sua vida e a tudo aquilo que ele construiu no decorrer dos anos em que se dedicou ao serviço. Sebastian Koch e Martina Gedeck também estão muito bem, seus desempenhos tornam seus personagens ainda mais cativantes, mesmo nos momentos em que são repreensíveis, e isso também ajuda a trama a desenvolver em nós espectadores o fascínio já comentado acima.
A Vida dos Outros transcende a condição de filme de gênero e este é a meu ver o seu maior trunfo. O viés humanista de sua trama o transforma em um filme universal e nem mesmo a questão ideológica, envolta em sua história, diminui o impacto que ele causa ao chamar a atenção, não para as questões sociais da República Democrática Alemã, mas para o drama de um indivíduo na busca pela sua própria identidade...
A Vida dos Outros ganhou o Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.
Parabéns pelo ótimo texto, uma merecida resenha para um belíssimo filme.
ResponderExcluirNão assisti ainda "O Turista", mas o que ocorreu com o diretor Donnersmarck deve ter sido semelhante a outro alemão, Oliver Hirschbiegel, que fez ótimos longas na Alemanha como "A Experiência" e"A Qudea - As Últimas Horas de Hitler", para em seguida se afundar no fraco "Invasores".
É bem provável que a influência dos produtores de Hollywood tenham detonado os filmes americanos dos dois diretores.
Abraço
Sim Hugo, a pressão dos produtores para enquadrar o filme em um modelo mais rentável acaba podando a criatividade e a liberdade do diretor. Provavelmente foi o que aconteceu em ambos os casos... Forte abraço!
ExcluirBrunão,
ResponderExcluirTexto lindo sobre um filme sensível e necessário.
Parabéns e um beijo de abraço ao som de SILVA :)
Grande filme.
ResponderExcluirhttp://ofalcaomaltes.com/
Parece ser um belo filme. Preciso conhecer.
ResponderExcluirótimo texto!
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