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sábado, 5 de outubro de 2013

A Caça

A Caça (Jagten) - 2012. Dirigido por Thomas Vinterberg. Escrito por Tobias Lindholm e Thomas Vinterberg. Direção de Fotografia de Charlotte Bruus Christensen. Música Original de Nikolaj Egelund. Produzido por Sisse Graum Jørgensen , Morten Kaufmann e Thomas Vinterberg. Zentropa Entertainments / Dinamarca.



Podem ser desastrosos os efeitos de um julgamento equivocado, vidas inteiras podem ser destruídas em um curto espaço de tempo e ainda que a verdade venha à toda e o julgamento inicial seja revisto, dificilmente o estrago pode ser reparado por completo. É em torno desta temática que o roteiro de A Caça (2012), o mais recente filme do cineasta Thomas Vinterberg, se desenvolve. Sua trama acaba nos proporcionando muito mais do que simples história sobre uma acusação injusta, ao explorar questões ainda mais complexas como a fragilidade dos laços que criamos com as pessoas com quem convivemos no dia-a-dia e a maleabilidade da moral constituída... Em dado momento, um dos personagens, aturdido pela culpa, pondera: "existe muita maldade no mundo...", esta declaração aponta para uma visão amarga da vida (e por extensão das relações humanas) que está presente em todo o filme, isso se reflete na narrativa, que segue a crueza que já se tornou uma das características mais marcantes da filmografia do diretor dinamarquês

Lucas (Mads Mikkelsen), o protagonista, começou a trabalhar no jardim de infância depois que perdeu seu emprego de professor em um colégio, ele está em processo de divórcio e, devido a uma decisão judicial, ele acaba tendo pouco contato com seu único filho, Marcus (Lasse Fogelstrøm). A vida relativamente pacata que Lucas leva na pequena cidade onde mora é completamente abalada depois dele ser acusado de abuso sexual. Klara (Annika Wedderkopp), uma aluna do jardim da infância de apenas cinco anos, conta para a diretora da escolinha que Lucas teria lhe mostrado seu órgão genital. As perguntas que são feitas para a garota a partir de então são sugestivas e a induzem a dar um falso testemunho acerca dos fatos. Partindo da premissa um tanto absurda de que 'uma criança nunca mente', a diretora afasta Lucas do trabalho e convoca uma reunião com os pais dos outros alunos para expor o ocorrido. A partir de então, mesmo sem uma investigação criteriosa dos fatos, quase todos passam a considerá-lo culpado.


Alguns dos amigos de Lucas se afastam, outros passam a agredi-lo verbalmente e até fisicamente, isso faz com que sua vida se torne um verdadeiro inferno, pouco a pouco ele acaba perdendo tudo aquilo que mais valorizava. Seu filho Marcus escolhe permanecer ao seu lado, contrariando a vontade da mãe, e por isso acaba sendo mais uma vítima da agressividade de vizinhos e conhecidos da família. Em determinada cena o garoto perde o controle, devido à situação a que é exposto, e acaba sendo agredido por um antigo amigo de seu pai, esta passagem deixa claro o tipo de reflexão que o filme evoca, ela nos leva a questionar o valor da moral enquanto regulador social, uma vez que esta mesma moral "permite" a agressão de um garoto por um crime do qual o pai dele (e não ele) é apenas suspeito. O absurdo da situação fica ainda mais evidente pelo fato desta agressão também se tratar de um caso de violência contra uma criança, o que parece ser completamente ignorado no trama.


Theo (Thomas Bo Larsen), o pai de Klara, é o melhor amigo de Lucas, eles se conhecem há muito tempo, no entanto nem a força deste relacionamento é suficiente para que Theo questione a veracidade das declarações de sua filha, sua reação comprova o quão frágil era o laço de amizade que existia entre eles... Na primeira sequência do filme vemos Lucas, Theo e diversos outros personagens (todos eles caçadores) em um momento de descontração á beira de um lado. Nesta passagem nem o tom amistoso das "brincadeiras" tira o aspecto animalesco que pode ser percebido no comportamento de boa parte destes homens. Analisando esta passagem, pode-se perceber que ela constitui um primeiro estudo dos personagens e do ambiente no qual eles estão inseridos. A caça, que é também uma espécie de rito compartilhado na cidade, evoca o embrutecimento daqueles indivíduos, o mesmo embrutecimento que volta à tona no decorrer do filme.


Em A Caça não há praticamente nada do Dogma 95, movimento do qual Thomas Vinterberg foi um dos idealizadores. Tal como Lars Von Trier, outro mentor da corrente, ele optou, já há muito tempo, por subverter as suas próprias regras e o que sobra aqui como distinção de sua marca autoral é apenas a sua visão amarga da vida, perceptível em suas obras na reprodução de um mundo sombrio, inóspito e extremamente cruel com os mais fracos. Desapegado das restrições autoimpostas de outrora, o cineasta entrega um filme de inquestionável excelentcia técnica. A variação de tons na fotografia é sutil, mas coerente com a proposta do filme, é interessante perceber que os tons quentes surgem nos momentos em que há algum tipo de manifestação de humanismo, enquanto os tonalidades frias, predominantes na maior parte do filme, se manisfestam nas passagens que retratam a injustiça, a dor e a falência do ser humano como ser social.


As atuações, que são destituídas de qualquer exagero dramático, reforçam o realismo e a crueza da trama e na sutileza da composição de cada um dos personagens se encontra um dos grandes trunfos do filme. Mads Mikkelsen, por exemplo, constrói um personagem complexo e plausivelmente real, suas ações e reações nos levam a crer que ele próprio é tão embrutecido quanto aqueles que o acusam, no entanto, o sofrimento o torna emocionalmente mais frágil e a expressão de tal fragilidade se dá de forma contida, sem obviedades, e o ator a expressa de uma forma brilhante. Podemos notar a angústia e o medo estampados no olhar trêmulo nas feições abatidas e no olhar trêmulo de Lucas, sua expressão facial remete à imagem de um animal forte, robusto, que se encontra acuado diante da ameça representada pela arma de um caçador, que se encontra apontada em sua direção... Destaco ainda os desempenhos de Thomas Bo Larsen e da pequena Annika Wedderkopp.


A Caça definitivamente não é um filme de fácil digestão, o incômodo que ele é capaz de nos causar não é puramente sensorial. O desconforto que sentimos durante sua exibição não é provocado por elementos técnicos como trilha sonora, fotografia ou movimentos de câmera, mas sim pela reflexão à qual a trama nos conduz. Ouso dizer que seu valor artístico está atrelado à disposição de cada expectador de embarcar na angustiante reflexão que ele propõe sobre a falência do indivíduo e da sociedade que ele integra; sem a participação ativa do público ele é apenas um bom suspense, com ela ele se torna digno do título de obra de arte. 




Assistam ao trailer de A Caça no You Tube, clique AQUI !

A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.

7 comentários:

  1. Um dos melhores filmes do ano, não tenho dúvidas quanto a isso.

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  2. Que bom que gostou do filme!
    Caso seja o pretendente da Dinamarca para concorrer ao Oscar, e acredito que será, poderá desbancar todos os outros. Filme tenso e cru; um belo trabalho de Vinterberg.

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  3. Adorei esse filme, e muito pela interpretação de Mads Mikkelsen. Trata-se de um ator que me chamou a atenção em Cassino Royale, mas nunca alugaria um filme por causa dele. A partir desse filme, meus critérios se alteraram a seu respeito tamanha a boa impressão que essa produção me causou. Claro, a trama também mexeu...

    abraço

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  4. Filmaço, que mostra bem como o ser humano pode ser cruel.

    Grande atuação de Mikkelsen, que deu um salto na carreira após este trabalho.

    Abraço

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  5. O filme reflete bem o comportamento de manada, no qual a hipocrisia dita as regras. Não é muito diferente de nossa sociedade massificada pelos meios de comunicação! Excelente filme e excelente texto Bruno!

    Abraço!

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  6. Sem palavras. Belíssimo texto, meu amigo!!!! Concordo com estes seus elogios!!

    FILMAÇO! FILMAÇO! FILMAÇO! FILMAÇO!

    Mikkelsen é foda!!

    Também escrevi sobre ele, já faz um tempo já: http://www.leituradecinema.com.br/2013/04/a-caca_9068.html


    Abraço.

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  7. Sensacional
    Angustiante
    Nos faz pensar na fragilidade das consideradas grandes verdades

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