A Espuma dos Dias (L'écume des Jours) - 2013. Dirigido por Michel Gondry. Escrito por Michel Gondry e Luc Bossi, baseado na obra literária de Boris Vian. Direção de Fotografia de Christophe Beaucarne. Música Original de Étienne Charry. Produzido por Luc Bossi. Brio Films, StudioCanal, Scope Pictures, France 2 Cinéma, Hérodiade, Radio Télévision Belge Francophone (RTBF) e Belgacom / França | Bélgica.
O filósofo Jean-Paul Sartre, um dos principais representantes da corrente existencialista, acreditava que o indivíduo só se definia como tal através de sua própria vivência; para ele a vida era absurda e destituída de qualquer sentido, sendo de tal modo caberia a cada um buscar a sua própria razão de ser (à qual ele chamou de essência) e não existia outra forma de encontrá-la a não ser através da experiência, ou seja, vivendo. Avesso à cultura do imediatismo, reforçada pelo consumismo capitalista, Sartre passou a defender a concepção de um 'projeto de vida', através do qual cada indivíduo, à sua maneira, estabeleceria uma meta, que o guiaria e motivaria cada uma de suas ações; ele acreditava que "o homem não é senão o seu projeto" e que ele "só existe na medida em que se realiza", não sendo portanto, "nada mais do que o conjunto dos seus atos, nada mais do que a sua vida". Sem este projeto o homem estaria condenado à agonia de apenas existir, sem jamais encontrar a sua verdadeira essência.
Em O existencialismo é um Humanismo, uma de suas obras mais importantes, Sartre defendeu que "o homem, antes de mais nada, é o que se lança para um futuro [...] um projeto que se vive subjetivamente,... nada existe anteriormente a este projeto;... o homem será antes de mais nada o que tiver projetado ser. Tal concepção, no entanto, pode representar um fardo demasiadamente pesado se for analisada por uma perspectiva diferente da adotada pelo filósofo em suas obras. A ideia de que o homem é o resultado de suas próprias ações e daquilo que planeja para a sua vida pode parecer um fruto de um humanismo quase positivista, contudo, esta mesma ideia joga sobre o indivíduo uma responsabilidade que na prática ele não é capaz de assumir e de suportar... Entender o conceito do 'projeto de vida' de Sartre e a crítica feita a ele é fundamental para que se possa compreender a trama e algumas das inúmeras metáforas presentes em A Espuma dos Dias, o novo filme de Michel Gondry, que pode ser analisado como uma crítica feroz à forma com que são interpretados alguns dos fundamentos do existencialismo.
A história contada pelo longa é uma verdadeira desconstrução da ideia do 'projeto de vida'. O roteiro, que foi adaptado do livro de Boris Vian, aborda a incapacidade do indivíduo de sustentar a motivação, que deveria lhe conduzir à sua própria essência, ao se encontrar diante de peripécias proporcionadas pela vida, sob as quais ele não exerce controle algum... Na trama, Colin (Romain Duris) é um rapaz de condição social abastada que encontra no amor uma razão maior para sua existência, que parecia ser até então completamente vazia. A paixão correspondida lhe dá algo que as regalias e excentricidades que seu dinheiro comprava nunca foram capazes de lhe proporcionar. Em Chloé (Audrey Tautou), sua amada, ele encontra algo que o completa e isso faz com que ele comece a fazer planos e o 'projeto de vida', tal como defendido por Sartre, passa a fazer sentido para ele. A convivência a dois parece proporcionar a Colin uma felicidade ainda não experimentada, no entanto tudo começa a desabar depois que Chloé recebe o diagnóstico de uma grave doença que, silenciosamente, tomara o interior de seu peito.
Rapidamente o amor idealizado e os planos para o futuro dão lugar a uma opressiva sensação de que a vida acabara de entrar em uma contagem regressiva. Tudo isso, no entanto, é contado pelo filme de uma forma poética e repleta de fantasia. A narrativa usa o surreal para representar o absurdo e a falta de sentido da existência, Michel Gondry cria então um realismo fantástico onde quase tudo é possível, à princípio toda a realidade diegética nos parece bela e extremamente cativante; de certo modo ela representa as inúmeras possibilidades de uma vida que se mostra como uma folha de papel em branco, pronta para ser preenchida com os frutos de sonhos e de ideais utópicos, todavia, a peripécia transforma aquilo que parecia um sonho em um pesadelo angustiante, a doença insurge como o fatalismo que mostra que nem tudo é possível. Pouco a pouco percebemos que é a realidade, tal como a conhecemos, que começa a macular a fantasia anteriormente observada.
A fragilidade dos planos de Colin (e da ideia do projeto de vida por extensão) fica evidente á medida que a doença de sua esposa se agrava e o filme retrata tudo isso de uma forma extraordinariamente bela e ao mesmo tempo dolorosa, através da fotografia e da direção de arte são construídas também metáforas visuais que apelam ora para o sensorial, ora para o emocional, nos conduzindo a uma experiência sem tantos similares no cinema contemporâneo. Mas, a surpresa proporcionada nos primeiros atos do filme pelos elementos fantásticos, que surgiam a todo instante na tela, de repente dá lugar a uma sensação constante de claustrofobia. O absurdo deixa de ser novidade e passa a ser encarado com o olhar da repetição, que pouco a pouco lhe transforma em algo trivial, quase banal (o que remete à forma com que encaramos o absurdo de nossas próprias vidas)...
A narrativa se vale de inúmeros elementos visuais para retratar o impacto da descoberta da doença (que é uma clara referência o câncer) na vida dos personagens; sombras, poeira e telhas de aranha começam a se espalhar pela casa tornando a cada vez mais sombria, as portas e janelas se encolhem reforçando a sensação de aprisionamento que o protagonista experimenta. É de uma construção formidável, por exemplo, a passagem na qual Colin toma ciência da gravidade da doença de sua esposa, esta sequência é uma das que mostram o quanto a ruptura com o realismo, adotada pela narrativa, contribui de fato com o desenvolvimento da trama e com a reação que ela é capaz de provocar no público (ou ao menos em uma parcela dele).
É interessante perceber que Nicolas (Omar Sy), o cozinheiro de Colin, também tem sua vida transformada pela doença de Chloé - ele envelhece oito anos em apenas dez dias - através dele a trama chama a atenção para um outro questionamento que também se choca com o penamento de Sartre: Estaria o indivíduo sujeito a sofrimento provocado pela falência do projeto de vida daqueles que estão à sua volta? Se a resposta a esta pergunta for 'sim', cai por terra boa parte dos pressupostas que sustentam o ideal do 'projeto de vida'. Esta e outras dúvidas levantadas pela trama nos conduzem à inúmeras outras questões, dentre elas uma que é de extrema importância para a construção da crítica ensaiada pelo filme: Há de fato alguma essência a ser encontrada, ou o que acreditamos ser a realização não passa de uma ilusão proporcionada pela crença em um ideal distante, que talvez nunca se realize?
Há ainda um outro personagem de extrema importância para a construção das referências à obra do já citado filósofo existencialista, ele é Chick (Gad Elmaleh), o melhor amigo de Colin, ele é um seguidor fanático do escritor Jean-Sol Partre (uma óbvia referência a Sartre, como o nome sugere), que prega uma versão satírica do projet de la vie, o jovem rapaz segue o pensamento de seu ídolo de uma forma religiosa e ele não está sozinho, Partre reúne em torno de si uma multidão de pessoas que anseiam por encontrar suas próprias 'essências'. Percebemos então que a crítica que o filme faz não é ao Sartre, mas ao que fizeram da filosofia dele. Não é por acaso que o personagem que o satiriza faz dos lançamentos de cada edição de seus livros algo similar a um culto, que reúne em polvorosa a sua legião de adoradores (ops, leitores); está aí uma crítica ao consumismo que esvazia de significado até a filosofia mais complexa e a converte em uma religião, algo superficial e facilmente digerível.
Outra passagem do filme mostra os livros de Jean-Sol Partre sendo vendidos em capsulas (das quais Chick logo se torna dependente) com esta inferência o filme associa o objeto de sua sátira - a filosofia de Sartre - às pilulas da felicidade (leia-se anti-depressivos, ansiolíticos, etc), medicamentos usados para aplacar os efeitos do contato com a falta de sentido da vida... Ao final de A Espuma dos Dias, a citação de Sartre que diz que "[...] o homem é responsável por aquilo que é, assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade de sua existência", chega a soar tão absurda quanto o mundo ao qual o filme nos apresentou em seu começo e é então que percebe-se o quanto Michel Gondry é bem sucedido em seu propósito, ele consegue nos inserir e nos conduzir por um processo mental que transforma aquilo que nos parecia absurdo em algo corriqueiro e aquilo que parecia ser tão coerente em um completo disparate...
Destaco, além do roteiro e dos elementos técnicos (fotografia, direção de arte, trilha sonora, figurinos e maquiagem), os bons desempenhos de todo o elenco principal, Romain Duris transita com notável desenvoltura pela realidade na qual seu personagem está inserido, a Audrey Tautou consegue com olhares e gestos sutis nos convencer da fragilidade de sua Chloé e Omar Sy nos presenteia mais uma vez com o alto poder de cativação que sua figura possui, o que é muito bem usado na trama para criar uma espécie de contraste entre os dois momentos retratados pelo filme... Como eu disse no início desta resenha, a compreensão dos pressupostos que serviram de base para a trama é de fundamental importância para uma apreciação plena daquilo que o filme tem a nos oferecer e sem ela tudo o que vemos nele pode parecer ser apenas um amontoado de esquetes surrealistas sem um significado maior. A Espuma dos Dias não é uma obra-prima, mas isso não tira o mérito de seus realizadores, que nos presentearam com uma das obras mais bonitas e complexas deste ano.
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra.
Parece o tipo do filme ideal para eu iniciar minhas férias.
ResponderExcluirEspero que seus elogios ao aspectos técnicos realmente sejam merecedores. Acho fundamental.
abraços
Bruninho... se tem a Audrey, eu já fico interessada!
ResponderExcluirAndo chateada. Tenho assistido poucos filmes nos últimos tempos! Isso não pode acontecer. :/
Pretendo voltar a assistir mais. Gosto tanto desse universo cinéfilo.
Saudades...
bjks
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Fui assistir no cinema e confesso que achei um tanto exagerado, dentro do universo característico do Michel Gondry. Quem sabe numa revisão eu passe a gostar. De qualquer forma, Tautou é apaixonante. Gosto tb do Omar Sy.
ResponderExcluirAbs.
Nossa, que resenha incrível
ResponderExcluirFilme muito bonito, e a relação com o sartre então...brilhante, mas achei que o filme fica um pouco cansativo com o excesso de fantasia.
A fantasia nesse filme é como o sexo em "Azul é a cor mais quente", legal é, mas é demais, não chega a ser necessario
Alguém saberia explicar o rato?
ResponderExcluirAmo esse filme e estou doida pra ler o livro do Boris Vian! Ficou muito boa a resenha. Me deu uma nova perspectiva sobre ele que eu não havia identificado.
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